Caro leitor

12 de dezembro de 2003

O século 21 é assim: nos países ricos, a produção de automóveis ultrapassou a taxa de natalidade, ou seja, nascem mais carros do que crianças. As novas tecnologias deixam rapidamente obsoletos computadores, celulares, eletrodomésticos, Tvs e brinquedos, enquanto a força do marketing incentiva as pessoas a trocarem equipamentos mais antigos por versões mais modernas. Acrescente… Ver artigo

O século 21 é assim: nos países ricos, a produção de automóveis ultrapassou a taxa de natalidade, ou seja, nascem mais carros do que crianças. As novas tecnologias deixam rapidamente obsoletos computadores, celulares, eletrodomésticos, Tvs e brinquedos, enquanto a força do marketing incentiva as pessoas a trocarem equipamentos mais antigos por versões mais modernas. Acrescente a todo esse arsenal facilitador de um consumo compulsivo à comodidade dos descartáveis: fraldas, toalhas, guardanapos, luvas, coadores de café, embalagens de vidro, de plástico, de lata e de papel, todas cada vez mais resistíveis.


O século 21 é assim: a Terra com mais de seis bilhões de habitantes caminhando para uma saturação do uso de recursos naturais e, evidentemente, de muito mais lixo.


Dois exemplos nada sustentáveis da vida moderna que precisam ser revistos estão nesta edição da Folha do Meio: o primeiro é o caso do re-uso de água, uma medida de gestão dos recursos hídricos que precisa ser encarada com seriedade pelas autoridades. O século 21 deve ir além do economizar e não desperdiçar água. Chegou a hora do re-uso da água para irrigação, do re-uso da água nas cidades e da recirculação da água de processo industrial. A entrevista do professor Raymundo Garrido sobre re-uso da água mostra bem toda esta questão.


E o segundo caso é outra tendência comportamental típica da vida neste século 21: o marketing e o anúncio de produtos e serviços a qualquer custo. Por exemplo, desde o inoportuno telemarketing enviando mensagens pelo celular ou telefonando na sua própria casa para oferecer produtos e candidatos de ocasião até a enxurrada de anúncios pelas avenidas, ruas e parques com painéis luminosos e spot-lights, numa poluição mais do que visual, pois para ter melhor visualização dos painéis, fazem-se de qualquer jeito podas de árvores, arrancam-se árvores e até matam-se árvores com venenos. Os exemplos desta violência silenciosa estão aí e aumentam a cada dia. Em Brasília, empresários do setor mataram cambuís e pau-ferro para que o painel luminoso ficasse mais visível. O caso foi acabar na justiça. E, em Belo Horizonte, um biólogo luta para diminuir essa tendência de se eliminarem árvores para facilitar a colocação de outdoors. Quando se comemora o início da Primavera – e o Dia da Árvore no Centro-Sul do País – nada melhor do que repensar e refletir um pouco sobre esta violência rotineira que empresários inescrupulosos e uma fiscalização conivente deixa que todo esforço de se fazer uma arborização urbana tombe tristemente aos pés de outdoors e painéis luminosos.


O século 21, amigo leitor, pode estar sendo assim para alguns egoístas, mercenários, interesseiros e gananciosos. Se a ética para eles não existe, que exista pelo menos a censura da sociedade e a punição da Justiça. O século 21 não pode continuar sendo o século da impunidade, geradora principal da audácia de quem não pensa no bem comum.


Obrigado,
Silvestre Gorgulho


Dear Reader:


The 21st century in wealthy nations signifies that the production of automobiles has surpassed the birth rate, i.e., there are more cars delivered than children. New technologies quickly render computers, cellular phones, home appliances, televisions and toys obsolescent, while marketing drives encourage people to trade in older equipment for newer more modern ones. And you can add to this arsenal, at the ready disposal of the impulsive shopper, the convenience of disposable products: diapers, paper towels and napkins, gloves, coffee filters as well as glass, plastic, metal and paper packagings which are growing more resistant to the elements.


The 21st century also signifies there are over six billion inhabitants on Earth, headed toward exhausting its natural resources while at the same time creating more and more trash.


There are two examples which are not in the least sustainable in modern life which need to be reviewed and are featured in this edition of the Folha do Meio: the first is the recycling of water, a water management measure which needs to be seriously looked at by the authorities. The 21st century must go beyond saving and not wasting water. The time has come to re-use water for irrigation, re-using the city water and recycling the water in the manufacturing process. The interview with Professor Raymundo Garrido concerning the re-use of water provides a very good insight into the entire water issue.


The second case is another behavior trend typical of life in this 21st century: the marketing and advertising of products and services at any cost. For example, since the onset of annoying telemarketing techniques such as sending messages by cellular phone or calling your own home to offer products or to gain support for current political candidates and even the epidemic of ads found along our avenues, streets and parks on illuminated and spot lighted billboards, creating more than visual pollution. So that the billboards can be seen better, trees are pruned any old way, uprooted or even killed off by poisoning. Examples of this silent violence are all around and they are growing each day. In the capital city of Brasilia, business sector executives killed cambuís and pau-ferro (different species of hardwood trees) so that an illuminated billboard could be made more visible. The case ended up in courts. In the city of Belo Horizonte a biologist battles to decrease this trend toward wiping out trees to put up billboards. When we celebrate the beginning of spring and Tree Day in the central southern region of the country, we could do nothing better than to re-think and reflect a little about this routine violence that unscrupulous business men and a conspiring inspection system which forces all efforts to create a tree filled urban environment kowtow forlornly at the feet of the billboards and illuminated advertising panels.


The 21st century, dear readers, is this for some selfish, mercenary, narrow minded and greedy people. If ethics do not exist for them, then the censure of the community and punishment by the courts should. The 21st century cannot continue to be the century of impunity, the main reason that there are those who dare to ignore the common good.


SG

Caro leitor

12 de dezembro de 2003

Dois grandes brasileiros se foram neste agosto velho de guerra. Um viveu quase um século e o outro pouco mais de meio século. Essa diferença de 50 anos não impediu que ambos cumprissem uma santa missão de fazer o Brasil ser admirado e respeitado em quase todos os países do mundo. O primeiro apresentou o… Ver artigo

Dois grandes brasileiros se foram neste agosto velho de guerra. Um viveu quase um século e o outro pouco mais de meio século. Essa diferença de 50 anos não impediu que ambos cumprissem uma santa missão de fazer o Brasil ser admirado e respeitado em quase todos os países do mundo. O primeiro apresentou o Brasil de dentro para fora e o segundo apresentou o Brasil de fora para dentro. Um tornou o Brasil conhecido lá fora pela audácia empresarial, pela criatividade de seus artistas, pelas diversidades de sua cultura, de sua natureza e de sua gente. O outro tornou o Brasil conhecido pelo seu trabalho sério para união dos povos, pelo esforço que empreendeu pela paz mundial, pela defesa das nações mais fracas e necessitadas e por unir inteligência, gestão de conflitos, rigor intelectual, simpatia e administração do caos. Ambos foram figuras de proa da história contemporânea. O Brasil perdeu, em agosto, dois filhos de um mesmo Estado, o Rio de Janeiro. Totalmente diferentes em formação e personalidade, eles, ao morrer, ocuparam a mídia nacional e mundial. Ambos pelo dever cumprido. Um pelo que construiu de saber, de informação e por levar a cultura brasileira no mais distante país do planeta. E sem sair do Brasil. O outro pelo que lutou pela paz e pelo bem-estar da humanidade, atravessando fronteiras. Sempre longe de sua terra natal.


O jornalista Roberto Marinho morreu aos 98 anos, dia 6 de agosto. Deixou como herança um sofisticado império de comunicação – jornais, rádios, tevês, revistas e publicações on line – que integrou o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, mobilizando a opinião pública com notícias, esportes, programas educacionais e culturais e muitas campanhas de utilidade pública.


O embaixador Sérgio Vieira de Mello morreu aos 55 anos, dia 19 de agosto, no campo de batalha, reconstruindo o Iraque. Morreu como Alto Comissário da ONU no auge de sua capacidade de trabalho e de sua atuação política, social e humanitária. Depois de trabalhar no Líbano, quando da invasão israelense, na Iugoslávia, na Bósnia, em Kosovo, teve a missão de estancar o genocídio em Ruanda, foi coordenador humanitário em várias nações da África. Plantou um país de língua portuguesa na Ásia, o Timor Leste. Agora foi para sua última missão em Bagdá, ajudando pela enésima vez a reconstruir um país e a devolver a paz ao seu povo.


Do empresário Roberto Marinho guardo a lembrança de um almoço (ver Coluna do Meio) e de uma frase: – Meus amigos, a maior virtude humana é o bom senso. Sem bom senso, até a maior das virtudes fica chata.


E do embaixador Sérgio Vieira de Mello guardo também uma frase dita pouco antes de sair para sua última viagem: – A imprensa livre, a imprensa responsável é uma das instituições mais importantes na defesa dos direitos humanos e da qualidade de vida do cidadão.


Ao jornalista Roberto Marinho, as nossas homenagens pelo que construiu.


Ao embaixador Sérgio Vieira de Mello, além de nossa saudade, que o mundo lhe preste uma última e merecida homenagem: o Prêmio Nobel da Paz.


Muito obrigado,


Dear Reader:


Two great Brazilians have left us this August. One lived almost a century, and the other a little over half a century. This fifty year difference did not get in the way of either to carry out the mission of making Brazil admired and respected by almost all countries in the world. The first presented Brazil from inside out, and the other presented Brazil from the outside in.


One made Brazil known for its business audacity, the creativity of its artists, the diversity of its culture, its nature and its people. The other made Brazil known for its serious work to unite the people, for its effort to reach world peace, for defending nations both weaker and in need, for uniting intelligence, conflict management, intellectual rigor, sympathy and chaos administration. Both were cutting edge leaders in contemporary history.


In August, Brazil lost two sons of the same state, Rio de Janeiro. Totally different in origin and personality, in death, both occupied the national and international media. Both for the duties that they carried out. One, for what he constructed of knowledge and information and for taking the Brazilian culture to the furthest corners of the world, without leaving Brazil. The other, for fighting for peace and the well being of humanity, traveling across borders and always far from home.


The journalist Roberto Marinho died at 98 years of age, on the 6th of August. Leaving as inheritance a sophisticated communication empire – newspapers, radios, TV’s, magazines, and on-line publications – which integrated Brazil from north to south, east to west, stimulating public opinion with news, sports, cultural and educational programs and many public campaigns.


The ambassador Sérgio Vieira de Mello died at 55 years of age, on the 19th of August in the battlefield reconstructing Iraq. He died as the highest ranking officer of the U.N., at the pinnacle of his work, political, social and humanitarian capacity. He worked in Lebanon during the Israeli invasion, in Yugoslavia, in Kosovo, had the mission to halt genocide in Rwanda, and was the humanitarian coordinator in several African nations. He also worked for the independence of a Portuguese speaking country in Asia, East Timor. Recently, he had left for his last mission in Baghdad, helping for the millionth time to reconstruct a country and restore peace to its people.


From the business man Roberto Marinho, I keep the memory of a meal together (see Coluna do Meio) and a phrase: My friends, the highest human virtue is good sense. Without good sense even the highest virtues become leaden.


From the Ambassador Sérgio Vieira de Mello, I keep a phrase spoken before his last trip: The free press, the responsible press, is one of the most important institutions in the defense of human rights and the quality of life of the citizen.


To the journalist Roberto Marinho, we pay tribute to what he has built.


To the ambassador Sérgio Vieira de Mello, who will be sorely missed, may the world pay a last and deserving homage: the Nobel Peace Prize.