Índios brasileiros querem renda e não política de subsistência
12 de dezembro de 2003Eduardo Almeida: Congresso, Judiciário e a tecnoburocracia são instituições “brancas” e, de certa forma, herdeiras da tradição colonialista excludente
Folha do Meio – Como está o indigenismo brasileiro?
Eduardo Almeida – O indigenismo brasileiro está na UTI, o que é uma lástima. Mal ou bem, o Brasil criou uma tradição indigenista positiva e até de vanguarda em alguns momentos, apesar de muitas vezes nos mostrarmos pessimistas e abatidos ante a força política recorrente dos que sempre querem impedir a vigência de direitos aos povos indígenas e a aceitação e o respeito ao Brasil indígena. Correlação de forças favorável aos índios no Congresso, no Judiciário e na tecnoburocracia nós nunca tivemos. Nem nunca teremos. Essas instituições são ainda “brancas” e, de certa forma, herdeiras da tradição colonialista excludente. Temos uma vocação democrática, que precisa ser aprofundada sem meias palavras. Deve crescer no Brasil nos próximos anos, ao lado do orgulho da afrodescendência, também a luta da “índiodescendência”, que até aqui anda meio latente, embora haja iniciativas novas nesse sentido. O indigenismo brasileiro, que tem marcos em Rondon e outros paradigmas louváveis, precisa ser retomado, porque ele tem um papel a cumprir, hoje, mais que nunca, ao lado do protagonismo político dos próprios povos indígenas. Precisamos pensar que daqui a algumas décadas, a Funai, pelo menos tal como é hoje, não tenha mais necessidade de existir. Mas para chegar lá, precisamos curar o indigenismo.
FMA – Qual é sua opinião sobre a eterna polêmica de que as reservas indígenas são superestimadas e que comprometem a produção agroindustrial e de outras atividades econômicas?
EA – O conceito de reserva não mais se aplica às terras indígenas identificadas e demarcadas nos termos da nossa Constituição de 1988. Chamamos apenas “terras indígenas”, definidas a partir de um direito originário sobre o território “tradicionalmente ocupado”. Não conheço nenhuma situação de área superestimada. Há algumas, porém, subestimadas, sobretudo casos de demarcações feitas antes de 1988. Atividades econômicas os índios também desenvolvem. O Brasil precisa acabar com essa conversa de que índio atrapalha desenvolvimento, sob pena de nos igualarmos àquele apartheidismo da África do Sul, do Zimbábwe e outros países. Demarcar e respeitar terra indígena é um ato de desenvolvimento.
FMA – Como se fosse possível dimensionar, qual seria a extensão justa das terras indígenas…
EA – Verdade. Não é possível imaginar uma dimensão “justa”, porque toda terra indígena, ao ser demarcada, é antes identificada por estudos coordenados por antropólogos que seguem o que prescreve a lei. As terras indígenas não são concedidas como se fosse uma esmola, uma compensação, mas são sim reconhecidas e identificadas. Só dois estados brasileiros ainda não apresentam povos e terras indígenas: Piauí e Rio Grande do Norte. Atualmente cerca de 500 terras indígenas já foram identificadas. Faltam aproximadamente 300 delas a serem demarcadas.
FMA – O comprometimento do governo com o crescimento econômico poderá ditar prioridades em detrimento de outras causas, como a indígena?
EA – É certo que o país depende de seu balanço comercial e de pagamentos, mas qualquer oscilação da Bolsa de Chicago é mais impactante para a economia do país do que a demarcação de terras indígenas. Por exemplo, a super-produção brasileira está derrubando o preço da soja e daqui a seis meses os produtores podem não estar se incomodando com a demarcação das terras indígenas. Ou seja, a soja pode passar a ser um mau negócio, por causa da própria ganância dos produtores. Está faltando ao governo um pouco de percepção das coisas. O deslumbramento pelo poder afeta a capacidade de raciocinar e de usar a sensatez. Eu acho que o Brasil tem tantas outras possibilidades, temos de lutar na OIC para enfrentar o protecionismo americano e europeu para exportar calçados e outros produtos brasileiros, por exemplo. Para que ficar negociando a demarcação das terras indígenas? Existem outras questões mais importantes a serem administradas pelo governo.
Programas sociais ainda significam intermináveis reuniões e oficinas
FMA – Os programas sociais lançados pelo governo Lula atendem os povos indígenas?
EA – Os povos indígenas ainda não foram incluídos efetivamente em nenhuma ação finalística dos programas sociais do governo federal lançados, até o presente momento. O Fome Zero, por exemplo, mostra-se ainda tímido e complicado. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Programa Nacional de Agricultura Familiar estão realizando uma sucessão interminável de reuniões e oficinas. Vamos aguardar os resultados e iniciativas práticas destas reuniões e como os povos indígenas serão incluídos e atendidos pelos projetos, que estão sendo concebidos pelo governo federal.
FMA – Qual a importância da articulação da Funai com o Ibama, Incra, Polícia Federal e Forças Armadas?
EA – Sem dúvida essa articulação com Ibama, Incra, PF e Forças Armadas precisa ser muito boa. Infelizmente, no nível mais amplo, tem sido pequena ou mesmo nenhuma essa articulação. Entendemos que era preciso investir muito nisso. Particularmente com o Ibama e com a PF tentamos melhorar substancialmente essa interação. Com o Incra estávamos tentando reviver um convênio importantíssimo, por meio do qual acreditávamos que iríamos minorar muitos conflitos no processo de demarcação de terras indígenas, onde há pequenos posseiros não-índios. Com o Exército, particularmente em áreas de fronteira, um entrosamento maior seria de extrema valia. Em algumas regiões essa interação vinha acontecendo positivamente.
Com o Ibama, começamos uma articulação mais estreita. Mas como o próprio Ibama reconhece, há segmentos e culturas muito preconceituosas em relação aos índios e isso precisa, evidentemente, ser superado logo. Também, nesse caso, o Governo está pressionado pela cooperação internacional a não mais empurrar com a barriga o caso das superposições de terras indígenas com unidades de conservação, o que é positivo, mas vergonhoso. É no mínimo constrangedor, sempre fazermos nossos deveres e transformações em nosso país só quando a pressão internacional chega no limite.
FMA – A Constituição brasileira atende aos interesses dos povos indígenas como está ou deveria sofrer alguma mudança?
EA – A Constituição atende bastante bem os povos indígenas. No momento a grande prioridade é termos o novo Estatuto dos Povos Indígenas, cuja tramitação no Congresso esperamos possa ser retomada ainda este ano.
FMA – Quais são os principais conflitos existentes hoje no país na área indígena?
EA – Fica até difícil elencar os principais conflitos de tantos e tão preocupantes que são. Temos alguns casos que têm sido citados mais freqüentemente, como o da invasão garimpeira na terra dos Cinta-Larga, em Rondônia e Mato Grosso; o que diz respeito à demarcação da Raposa – Serra do Sol, em Roraima; o que envolve a terra dos Pataxó Hãhãhãe, na Bahia; e da terra dos Xokleng, em Santa Catarina; casos em Pernambuco; a retificação de áreas no Mato Grosso, como algumas terras Xavante e o próprio Parque do Xingu; a Terra Indígena Baú, dos Kayapó, no Sul do Pará; as terras dos Guarani-Kaiwá; e também dos Terena, no MS; entre outras.
As situações graves de conflitos são infelizmente numerosas. Envolvem sim, muitas vezes, recursos naturais, como madeira de lei, por exemplo. O melhor caminho e que nós estávamos trilhando, era acelerar os trabalhos de demarcação e regularização. Defendemos a idéia de que o governo deve virar essa página, no essencial, nesses quatro anos vindouros. Precisamos ainda incrementar os trabalhos de fiscalização e gestão, pelos próprios índios, de seus territórios e recursos naturais.
FMA – Como está a situação das terras indígenas situadas nas fronteiras com países vizinhos?
EA – Sobre problemas em fronteiras, na verdade eles têm sido episódicos. O que mais tem preocupado ultimamente são problemas em dois trechos da fronteira com o Peru, diante da intensificação de atividade madeireira do lado peruano, com incursões em território brasileiro, sobretudo em terras indígenas, e há denúncias de envolvimento também de tráfico de drogas e armas.
FMA – Atualmente qual é o número de nações indígenas no Brasil?
EA – Esse é um número que cresce nos registros da Funai, não só pelo maior conhecimento de grupos arredios como pela apresentação de grupos “resistentes”, que expõem sua identidade indígena após anos ou séculos em que se viram compelidos a resguardar-se ante ao cerco e invasão da sociedade envolvente. Trabalhávamos com o quantitativo de 220 etnias.
O número de etnias sem contato ou arredios também não é preciso. De uns anos para cá a Funai evoluiu para uma estratégia de não forçar contato, apenas garantir proteção e anteparo. Segundo a Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) esta é a situação: AM (14), RO (09), PA (06), MT (04), AC (02), AM (01) e MA (01). Desse total de informações, 235 índios estavam sendo monitorados pela CGII.
FMA – O senhor acredita na auto-suficiência dos povos indígenas?
EA – Eu acredito que sim. Isto já vem acontecendo em outros países, como no Canadá. Lá o governo investiu muito no chamado etno-desenvolvimento. Há muitos projetos sociais e produtivos feitos com os índios. Em algumas regiões montam-se indústrias, em outras pólos de artesanato ou manejo florestal ou de exploração mineral etc. Lá não existe mais uma Funai. Investiram muito em educação de acordo com o projeto político dos índios, com a autodeterminação deles. Esses projetos de educação procuram valorizar os costumes e tradições indígenas e oferecem a eles a oportunidade seletiva de como eles querem entrar no mundo moderno.
O indígena não precisa se transformar num cidadão branco para ser um cidadão. Os povos indígenas brasileiros já colocam concretamente a necessidade da renda monetária como reivindicação. Eles não querem só a subsistência. Eles também querem dinheiro para comprar relógio, computador, celular etc. A questão da tutela do índio é um tabu para alguns setores da Funai, alguns deles são compostos por pessoas bem-intencionadas, mas que ainda não aceitam bem esta possibilidade. Espero que a Funai não seja mais necessária, daqui a alguns anos.
Mércio Gomes Pereira
O novo presidente da Funai
O antropólogo Mércio Gomes Pereira é o 33ª presidente da Funai. Mércio, que tomou posse no Ministério da Justiça, tem larga experiência com povos indígenas de diversas etnias. É autor de muitas publicações e artigos sobre a questão indígena e trabalhou longo tempo com antropólogo Darcy Ribeiro. Sua experiência político-administrativa mais recente foi na prefeitura de Petrópolis, onde se responsabilizou pela elaboração do plano da Universidade Livre de Petrópolis. Além disso, também atuou na Secretaria de Educação e de Cultura do Rio de Janeiro (1991 a 1994). Para suas pesquisas antropológicas, Gomes esteve entre os índios Tenetehara, Awá Guajá, Parakanã, Avá-Canoeiro, Juruna, Assurini, Araweté, Xikrin do Bacajá,Arara, Urubu Kaapor, Krikati, Canela e Waimiri-Atroari. Entre suas principais publicações destacam-se: “O Índio na História – O povo Tenctehura em busca da liberdade” (2002); Por uma Antropologia Ontossistêmica” (2001); Darcy Ribeiro (2000); “The Indians and Brazil” (2000); “O Futuro dos Índios”, Revista Carta (1993); “Os índios e nós”, na Revista do Brasil e “Por que Índio briga com Posseiro”, nos Cadernos da Comissão Pró-Índio (1979).