Recursos hídricos e a energia elétrica
12 de dezembro de 2003Como gerenciar o uso da água para produzir a energia que realiza trabalho e move o mundo?
Raymundo Garrido: todas as entrevistas dadas à Folha do Meio Ambiente sobre recursos hídricos vão virar um livro |
Folha do Meio – Uma dúvida que está sempre na cabeça das pessoas: economizar energia elétrica aqui no Brasil é o mesmo que economizar água de nossos rios?
Raymundo Garrido – Podemos dizer sim, pois a energia elétrica produzida no Brasil provém de fonte hidrelétrica, em cerca de 92%. Se houver economia de energia, vamos estar economizando água em cerca de 92% da economia feita com a energia elétrica. Assim, uma maneira indireta de cuidar de nossos mananciais é justamente economizando energia nas residências, nas fábricas, nas escolas, nos prédios públicos, nos clubes, nas igrejas e onde mais for possível.
FMA – E quais são as outras fontes de energia elétrica?
Garrido – São várias. Além da hidrelétrica, já mencionada, existe, também, a energia térmica, eólica, das marés, da biomassa, além da termo-nuclear e da energia solar. A energia térmica e a hidrelétrica costumam ser as mais utilizadas, por permitirem a construção de plantas produtivas de médio e grande portes, podendo formar verdadeiros parques organizados de geração de energia, o que não sucede necessariamente com todas as fontes de energia elétrica.
No Brasil, começa a desenvolver-se, também, a energia eólica, que resulta da transformação da força dos ventos em energia elétrica, por meio dos aerogeradores, que são grandes cataventos. Mas sua participação na geração de energia elétrica aqui ainda é algo desprezível.
FMA – Houve avanços na gestão de recursos hídricos em relação à geração hidrelétrica como setor usuário da água?
Garrido – Houve inúmeros. O mais significativo desses avanços foi a transferência da gestão dos recursos hídricos do setor elétrico para o lugar certo: a área de recursos hídricos. A geração hidrelétrica é um setor usuário da água, tal como é a geração térmica, a irrigação, o saneamento, a indústria, a navegação, a mineração, a pesca e outros mais.
O que ocorre é que o setor elétrico promovia essa gestão sem a necessária legitimidade, eis que, ao decidir sobre o uso do manancial, atuava ao mesmo tempo como gestor e parte interessada, usuário que era, também, da mesma água que tinha que ser repartida.
Antes da criação da Agência Nacional de Águas, o antigo Dnaee, e mesmo a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, como sucedânea do departamento, emitia outorgas de concessão para a geração hidrelétrica sem que houvesse, necessariamente, articulação com os órgãos e entidades responsáveis pelas outorgas para outros usos da água. É que essa outorga de concessão já incluía, sem explicitar, a outorga de direito de uso da água. Isto perdurou até a criação da ANA, a partir de quando a necessidade da articulação prévia entre as duas agências ficou clara, na própria lei, homenageando o princípio dos usos múltiplos da água. Foi um passo fundamental para a boa gestão dos recursos hídricos.
FMA – Existem alguns outros avanços?
Garrido – Claro. Um outro avanço, que independeu de legislação e que já vem de pelos menos uns dez anos é a modificação do conceito de aproveitamento ótimo de uma bacia para a geração hidrelétrica.
Trata-se de um aprimoramento promovido pelo próprio setor elétrico, pelo qual o velho conceito de maximizar o potencial hidrelétrico como único objetivo cedeu espaço, pouco a pouco, para um critério de otimização do uso das águas da bacia, que passou a levar em conta as demandas dos demais tipos de uso. Tal avanço nada mais refletiu senão a conscientização ambiental do setor hidrelétrico brasileiro. Foi um amadurecimento do pensamento dos dirigentes, públicos e privados, e dos técnicos.
Setor hidrelétrico tem importância múltipla para a economia
Além da energia que leva a iluminação, ganham também a irrigação e o abastecimento das cidades
A foto mostra as instalações de Paulo Afonso, um dos maiores complexos hidrelétricos do Brasil, com uma potência total instalada de 3.984 MW. |
FMA – E houve algum retrocesso?
Garrido – Olha, praticamente nenhum. Se formos rigorosos podemos lembrar de um pequeno detalhe da legislação que, de alguma maneira não condiz com o avanço esperado. Trata-se da questão da operação dos reservatórios, prevista na Lei Federal no 9.984, de 17 de Julho de 2000, que criou a ANA. As condições de operação dos reservatórios devem-se dar, diz a lei, de sorte a garantir os usos múltiplos da água. Entretanto, o referido texto legal estabeleceu que, no ato de definição dessas condições de operação, a ANA deve articular-se com o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, deixando de incluir o papel do comitê de bacia, este sim, comprometido verdadeiramente com os usos múltiplos da água.
É verdade que o inciso XII do artigo 4o refere-se à conformidade da operação de reservatórios com os planos de recursos hídricos, os quais são aprovados pelo comitê. Entretanto, na prática, quando as condições de operação tiverem que ser definidas com maior acuidade, com maior agudeza de percepção, ocorrerá, em um número apreciável de casos, que a circunstância será algo especial, seja pela escassez de água que se prenuncie, seja por vazões inundantes que estejam prestes a chegar. E, nessa hora, ninguém pensa em Plano de Recursos Hídricos e sim em conseqüências que precisam ser evitadas de qualquer maneira. Daí, pergunta-se: como se manifestará o ONS ao contracenar com a ANA? Refletindo, é lógico, e nem poderia ser de outro modo, a preocupação do setor hidrelétrico em primeiro lugar, ficando os demais usos da água sem um representante nessa importante discussão.
FMA – E isto não foi discutido antes, durante a elaboração da lei?
Garrido – Bem, aqui quero fazer até um depoimento. Tive o privilégio, por orientação do então Ministro Sarney Filho, do meio ambiente, de ser interlocutor do hoje presidente da ANA, Jérson Kelman, durante a redação das seguidas minutas do Projeto de Lei que deu origem à criação da agência. Trata-se de um trabalho que Kelman fez com o maior esmêro e, portanto, digno das melhores referências. Convergimos, ele e eu, na maior parte dos dispositivos, mas, com certeza absoluta, não neste da operação dos reservatórios.
FMA – E que importância tem a geração hidrelétrica para a gestão de recursos hídricos?
Garrido – O setor de geração hidrelétrica, além de produzir esse elemento vital que é a energia, tem um forte caráter impulsor da economia das bacias hidrográficas onde se faz presente.
É pelo uso da energia elétrica que a água é bombeada para campos de irrigação, para estações de potabilização. É também à custa da energia gerada que cidades inteiras são iluminadas, o equipamento fabril é acionado, os elevadores dos edifícios e os hospitais funcionam, televisores, rádios, computadores, internet, quase tudo na vida moderna depende da energia.
Convém assinalar que o potencial hidrelétrico brasileiro é estimado em 260 GW, portanto cerca de quatro vezes o que se encontra atualmente instalado. Desse total, 83% estão nas bacias amazônica (40%), do rio Paraná (23%) e Tocantins e São Francisco, cada uma com 10%.
Além disso, o setor hidrelétrico é um rico sinalizador para a boa gestão de recursos hídricos, porquanto ajuda a “domesticar” as águas dos rios, introduz o conceito de planejamento de longo prazo e contribui, de modo expressivo, com a economia dos municípios, das bacias e mesmo dos estados onde se faz presente, pois recolhe 6% do valor comercial da energia gerada, à União, estados e municípios, a título de compensação financeira.
E tem uma outra coisa: o setor elétrico deu o exemplo de ser o primeiro usuário-pagador pelo uso das águas de domínio da União. Esse pagamento corresponde a 0,75% do referido valor comercial da energia, e tem sido decisivo para alavancar o instrumento da cobrança no Brasil.
FMA – Hoje se fala muito sobre as pequenas centrais hidrelétricas. Tem alguma vantagem para o gerenciamento dos mananciais?
Garrido – Há inúmeras vantagens. A primeira é a complementaridade com as grandes centrais hidrelétricas. São considerados pequenos aproveitamentos aqueles cuja potência instalada não supere 30 MW.
A segunda vantagem é a de afetar pouco o regime hidrológico do curso d’água, porquanto essas PCHs podem operar a fio d’água ou exigindo apenas a formação de pequenos reservatórios, com espelho d’água não superior a 3 km2 e de regularização diária ou mensal.
Além do critério de classificação quanto à capacidade de regularização, acima referido, as PCHs também são classificadas quanto ao sistema de adução, em função da pressão a que a água é submetida, e quanto à potência instalada além da queda de projeto.
O Manual da Eletrobras estabelecia outras condições para que um aproveitamento pudesse se enquadrar como PCH. Entre estas, a vazão de dimensionamento da tomada d’água não podia ser maior do 20 m3/seg, além de as estruturas de barramento não poderem superar 10 metros e não haver necessidade de túneis e outras obras de engenharia.
Em 1998, a Aneel simplificou esse conjunto de requisitos, limitando-os à potência, que fica na faixa de 1 a 30 MW, e ao tamanho do reservatório, já mencionado.
Seus baixos custos, de investimento e operacionais são, também, uma vantagem, e a necessidade de vazões que as PCHs impõem, ajuda a disciplinar a repartição destas entre os usos consuntivos da água, seja a montante seja a jusante de uma PCH.
Faltou investimentos no setor hidrelétrico
Sem regras definidas, os investimentos privados também não apareceram
FMA – Uma dúvida: em 2001 houve o apagão. A culpa foi da gestão de recursos hídricos?
Garrido – Bem, a verdade é que a redução da produção de energia elétrica em algumas grandes regiões do País não se deu exclusivamente por falta de água nos mananciais. Apesar de a pluviometria ter sido amplamente desfavorável no período em que se esperava o enchimento de reservatórios do Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, outros fatores influíram nesse episódio, como a insuficiência de investimentos ao longo dos anos 90, que ficou na casa de entre 4 e 5 bilhões de dólares por ano, quando vinha em um ritmo de US$10 bilhões anuais, até o final do governo Sarney, em 1989.
É bom salientar a extrema e tradicional dependência brasileira da fonte hidrelétrica que, na altura, correspondia a 93,2% da produção nacional, ao lado de 4,2% das térmicas, 1,6% da nuclear e 1,0% de energia importada.
FMA – Como foram os investimentos nesses anos?
Garrido – Olha, como os tradicionais investimentos públicos foram excessivamente reduzidos, era preciso definir um novo modelo de financiamento do setor, além de mudar sua estrutura. Houve consenso em relação à reorganização da área que passaria a basear-se em um mercado competitivo no atacado, com livre acesso dos agentes às redes de transmissão, associado ao fortalecimento dos produtores independentes e à desverticalização da estrutura.
Entre 1991 e 1995, entraram em funcionamento 5.897 MW novos, metade do que o mercado requeria, mas havia uma “gordura” não utilizada nas usinas feitas, o que reduziu as probabilidades de um colapso mais cedo.
De 1996 a 2000 o incremento foi de 15.502 MW, graças sobretudo a investimentos privados.
Em 2000, quando chegaram novos 5.200 MW, a crise já estava instalada, pois os reservatórios vinham se deplecionando silenciosamente por anos seguidos.
Ao lado disso, boa parcela de energia excedente em Itaipu não podia ser transmitida a São Paulo por falta de linhas e de limitações na estação de Ivaiporã (Paraná) e na subestação de Tijuco Preto (SP).
FMA – Mas a criação da Aneel e as privatizações não vieram justamente para imprimir mais ritmo ao setor?
Garrido – A criação da Aneel, tanto quanto o programa de privatização do setor elétrico, vieram na esteira da reforma do aparelho do Estado, que entendeu a necessidade de a gestão de atividades exclusivas de Estado ser entregue a agências reguladoras com novos perfis estruturais, dotadas de flexibilidade operacional, além de permitir que a iniciativa privada passasse a atuar nas atividades de produção de bens e serviços. Isso deu sentido à privatização de alguns setores da economia brasileira.
Sucede que a regulação do setor foi sendo elaborada e posta em prática ao mesmo tempo em que se ensaiavam os primeiros passos da privatização. Nem todas as regras estavam adequadamente definidas nesse período. Isto refreou o ritmo dos investimentos privados, para os quais a expectativa era grande.
A verdade é que a alteração estrutural do setor energético enfrentou um certo vazio no que concerne a regras bem definidas. Isto afetou o avanço do processo de privatização. O motivo é simples: o investidor privado tem aversão quando as regras do jogo não são claras. O programa de privatização do setor ficou, então, reticente…
A própria legislação também não trouxe a mais adequada das regras, o que se comprova pela assimetria de tratamento que o Mercado Atacadista de Energia – MAE confere aos agentes.
Mas tudo isto foge ao setor hídrico. Apenas aproveito a oportunidade para reiterar que o apagão encontrou suas causas mais decisivas no seio do próprio setor elétrico, talvez pela ação política, e tanto menos no gerenciamento hídrico do País.
FMA – Como o setor hidrelétrico pode ser parceiro na gestão dos recursos hídricos em termos ambientais?
Garrido – De várias formas. A Folha do Meio Ambiente já se ocupou da matéria, em sua edição número 122, de dezembro de 2001, que comenta o papel e a importância das grandes barragens. Ali estão relacionados, entre outros requisitos, o da sedimentação, como fenômeno que pode encurtar a vida útil da barragem; o problema do reassentamento das populações deslocadas pela inundação do reservatório; a necessidade de se manter a biodiversidade do sítio da barragem, de seu lago e do entorno deste; por igual, a manutenção do estoque pesqueiro, da hidrologia de jusante, da emissão de gás metano em decorrência da putrefação da matéria orgânica inundada, da qualidade da água no novo ecossistema formado, e outros aspectos mais de relevo quanto à preservação do meio ambiente. Caso tenha mais interesse, recomendo o leitor consultar essa edição de dezembro de 2001. Vale a pena.
FMA – Já que o assunto é gestão, o que o setor elétrico pode fazer para economizar água dos mananciais?
Garrido – Bem, há alguns pontos a considerar. Volto à questão relativa ao papel do Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, cuja atribuição principal é encarregar-se da coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados.
Não há dúvida alguma de que o ONS deve programar as vazões turbinadas e vertidas, além dos níveis dos reservatórios. Também faz parte das preocupações do ONS a previsão de afluências nos horizontes de planejamento do setor e o planejamento para enfrentar as cheias.
Ao Operador Nacional do Sistema Elétrico também cabe considerar, em seus estudos de vazão, as demandas já comprometidas com outros usos da água, em especial os consuntivos e as condições de navegabilidade dos cursos d’água navegáveis. Por isto é importante a gestão compartilhada, envolvendo todo os representantes dos setores usuários, os segmentos da sociedade civil organizada e os três níveis do Poder Executivo.
Na verdade este conjunto de forças escolheu um fórum para cohabitar, que é justamente o Comitê de Bacia.
GLOSSÁRIO
Potabilização – Atividade produtiva para tornar a água potável para consumo humano
Deplecionando – Deplecionar é o mesmo que esvaziamento. Em hidrologia e hidrogeologia, significa a redução do volume do reservatório, superficial e subterrâneo, respectivamente. O verbo “deplecionar” não existe. Todavia, foi consagrado pelo uso na literatura das duas ciências acima mencionadas, tendo nascido do aportuguesamento do verbo regular “to deplete”.
Sedimentação – Deposição de partículas de tamanhos diversos, minerais ou orgânicas, em fundos de corpos d’água. É um fenômeno que se segue aos da erosão e transporte dessas partículas.
Vazões turbinadas – Volumes de água que geraram energia ao passar pela turbina.