Em depoimento inédito, sindicalista acreano relata o drama da luta que ele e seus companheiros enfrentaram para frear a devastação da Amazônia
26 de janeiro de 2004Chico Mendes por ele mesmoEsse é documento mostra a importância de Chico Mendes para a História do Brasil contemporâneo. Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, em 22 de dezembro de 1988 Romerito Aquino, de BrasíliaO presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de reverenciar a memória do brasileiro que, assassinado por defender… Ver artigo
Chico Mendes por ele mesmo
Esse é documento mostra a importância de Chico Mendes para a História do Brasil
contemporâneo. Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, em 22 de dezembro de 1988
Romerito Aquino, de Brasília
O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de reverenciar a memória do brasileiro que, assassinado por defender a floresta amazônica, se transformou num símbolo da luta pela preservação do meio ambiente no mundo. Poucas horas antes, Lula havia chorado no túmulo de Chico Mendes, companheiro com quem dividia, já na década de 80, suas preocupações com o futuro da maior floresta do planeta. Nas muitas vezes em que foi ao Acre, nos últimos 23 anos, Lula esteve lado a lado com Chico Mendes para apoiar a luta dos seringueiros, índios e trabalhadores rurais daquele estado pelo desenvolvimento sustentável das riquezas existentes na grande floresta. Como o presidente ressaltou seus compromissos com a história. Mais do que uma entrevista, esse é um documento inédito que mostra a importância de Chico Mendes para a história do Brasil contemporâneo. Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, em 22 de dezembro de 1988, a mando de fazendeiros e latifundiários contrários à sua luta em favor da preservação e do desenvolvimento sustentável da floresta amazônica.
Falta do “saber” nos seringais
No início de seu relato, Chico Mendes se apresenta e diz porque os seringueiros eram explorados. Seus filhos não tinham direito de estudar, mas só produzir borracha para bancar os estudos dos filhos do seringalistas nas grandes cidades do Norte e Centro-Sul do País
“Meu nome é Francisco Mendes Filho, mais conhecido tradicionalmente como Chico Mendes. Nasci no seringal Equador, localizado em Xapuri, a poucos quilômetros da fronteira com a Bolívia. Aos nove anos de idade, comecei a trabalhar no extrativismo da borracha. Era, naquela época, o primeiro ABC que o filho do seringueiro começava a aprender. Porque, para o seringalista, o filho do seringueiro estudar criava um desestímulo para a produção de borracha. E o patrão precisava que sua produção de borracha fosse aumentando cada vez mais porque ele tinha que colocar seus filhos para se formar em Belém, Rio de Janeiro, Fortaleza e também porque precisava comprar apartamento no Sul do país. O direito do seringueiro era apenas o de colocar o filho de oito, nove anos, para cortar seringa na selva”.
Colonização foi feita com o tráfico de escravos
Na visão do sindicalista, que depois de assassinado virou símbolo mundial de luta contra as agressões ao meio ambiente do planeta, a ida dos nordestinos pobres e famintos para a Amazônia foi um tráfico de escravos disfarçado
“Naquela época, de 1880 até 1940, era muito maléfico a vinda das famílias nordestinas para desbravar a Amazônia. Isso era considerado tráfico de escravos disfarçado. Formavam aqueles grupos de nordestinos desesperados pela fome e pela seca e eles se transformavam numa forma de mercado escravo para a Amazônia. E aí eles trabalhavam para o seringalista, que explorava a Amazônia. Ao mesmo tempo, os nordestinos eram preparados para lutar contra os índios, os verdadeiros donos da terra. Resumindo essa história de todo o massacre do seringueiro no tempo do patrão, o seringueiro era explorado, tirava o seu saldo e, no final do ano, o patrão pagava no balcão, mas lá na mata já estava o pistoleiro para matar ele e o dinheiro era devolvido para o patrão novamente. Aconteceu muito disso. Agora, tinha uma coisa. Você não tinha perigo de ficar sem a floresta. Essa era uma das grandes vantagens daquela época”.
Igreja e Contag foram decisivas para a luta
Aqui, Chico Mendes dá detalhes de como nasceu a resistência dos seringueiros. Apoiados pela Igreja Católica e a Contag, eles foram instruídos de como reagir à violência provocada no campo por parte daqueles que mal chegavam no Acre e, com o apoio da classe política da época, logo iam botando banca de novos donos do estado
“A partir de 1973, 1974, a igreja (Católica) do Acre começa então a se preocupar com a situação desse êxodo rural e da violência no campo. Mas não tinha nenhum trabalho organizado de base. O trabalho da igreja tinha como objetivo tentar rearticular e levar uma orientação melhor para o homem do campo. Ou seja, a Igreja levou uma campanha de opção pelos pobres, denunciando os conflitos e a violência no campo. No final de 1974, por solicitação já da igreja, chega no Acre a primeira comissão da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) para fundar os primeiros sindicatos. A partir de 1976, eu estava completamente no seringal vendo essa situação acontecendo de uma forma desesperadora, mas sem saber o que fazer. A gente tentava denunciar, mas não havia espaço para nós. E aí, de repente, surge como um milagre a notícia da fundação dos primeiros sindicatos dos trabalhadores rurais. Uma comissão da Contag, com o apoio da igreja, que cedeu toda a sua estrutura nos municípios, foram realiados os primeiros cursos de sindicalismo e tal. Esse primeiro curso foi organizado na cidade de Brasiléia e eu já corri para lá para participar desse curso. Funda-se, então, em 1975 o Sindicato de Brasiléia. A partir daí a luta começa. Começa a luta”.
Acre é manchado de sangue
O sindicalista começa, então, a descrever uma das páginas mais tristes da história do Acre, quando, a partir da década de 70, centenas de latifundiários, apoiados pelo governo e pela Justiça, mancharam de sangue e sofrimento as matas acreanas, matando seringueiros, queimando suas casas e os expulsando para as periferias miseráveis das cidades do estado
“A partir da década de 70, com a queda do monopólio da borracha e com uma mudança violenta, aí a situação é outra e passa para uma nova fase a vida do seringueiro. A partir da década de 70, o governo do Acre vai ao Sul do país e faz a propaganda junto às empresas e aos grandes latifundiários dizendo que o Acre tinha terra farta e barata, que o povo acreano era um bando de malandros e que precisava haver progresso para o estado. Então, a partir daí, começaram a chegar as primeiras levas de empresários do Sul, que com o apoio dos incentivos fiscais da Sudam compraram, de 1970 a 1977, aproximadamente seis milhões de hectares de terras. A região mais afetada foi a que abrange o Vale do Acre, que vai de Rio Branco, Xapuri, Brasiléia, até Assis Brasil, porque nessa região já tinha a estrada [BR-317, hoje a Estrada do Pacífico] aberta. E, em poucos anos, de 1970 a 1977, mais de 10 mil famílias de seringueiros foram expulsas por meio dos métodos mais violentos. Xapuri foi o município de maior vítima dessa violência. Dezenas de jagunços foram mandados para os seringais para derrubarem as casas dos seringueiros, para queimarem as casas dos seringueiros. Os seringueiros, que nasceram e cresceram nos seringais, foram de repente obrigados a sair sem receber nenhum tostão pelo seu trabalho. E o desespero dominou essa população de modo que uma grande parte dos seringueiros, talvez 50% das 10 mil famílias, foram para as periferias das cidades. Rio Branco foi realmente a cidade de preferência para o êxodo do pessoal. Eles chegavam aqui e como não tinham trabalho, não tinham profissão nenhuma, não tinham saber algum, só sabiam cortar seringa e colher castanha, foram ocupar as periferias das cidades. Rio Branco é o espelho dessa realidade. A outra parte, que achou que tentar a vida nas cidades seria arriscado demais, se mandou para a Bolívia. Nós hoje já temos de 10 mil a 20 mil famílias de seringueiros que se encontram em territórios boliviano, peruano, na chamada Amazônia internacional”.
Seringueiros, únicos heróis da revolução
Chico Mendes faz aqui uma pausa no relato de sua luta para colocar um pouco de ordem na história do Acre. Diz que a Revolução Acreana, por exemplo, foi uma guerra de interesses de multinacionais e seus únicos heróis foram os seringueiros e não os patrões seringalistas, que são os que aparecem nas fotos históricas da revolução. Muitos dos seringalistas, segundo Chico, mandavam matar os seringueiros para não pagar seus soldos
“Nós sabíamos que no Acre dificilmente alguém tinha documento, título definitivo da terra porque o Acre foi uma conquista. O Acre foi anexado ao Brasil por uma luta armada liderada pelo gaúcho Plácido de Castro. Só que essa guerra também era uma guerra de interesses de multinacionais, já naquela época. Só depois, há muito tempo, é que a gente vai descobrindo essa realidade. E o seringueiro foi o grande articulador, foi quem lutou, foi o soldado. A história hoje mostra – pelo menos você vê documento na Fundação Cultural do Acre – os velhos heróis, que eram os heróis que aparecem hoje na história registrada nas fotos. Eram exatamente aqueles patrões que mandavam matar seringueiros para não pagar seus saldos. Mas quem lutou, quem derramou seu sangue, quem morreu, quem defendeu, quem foi a razão da anexação do Acre ao Brasil foram os seringueiros. Mas isso não está na história. Esse foi o importante papel dos seringueiros naquela época. Então, na década de 70, começa então as brigas de terras. Em muitos lugares, não havia o legítimo proprietário de terra. Seringalista era um posseiro também. Ele chegava numa área virgem, desbravava o seringal e se tornava posseiro”.
Títulos de terras comprados por dinheiro
Chico Mendes continua, então, sua narrativa da luta revelando que Xapuri foi o município mais bombardeado do Acre pela ação devastadora dos latifundiários, que compravam com dinheiro títulos de propriedade de terra que nunca existiram no Estado
“Os fazendeiros chegaram, iam nos cartórios, com muito dinheiro. Forjavam documentos às custas de muito dinheiro. E, de repente, quando os fazendeiros chegaram nos cartórios, começaram a aparecer documentos, títulos definitivos de terras, proprietários de terra, tudo isso à custa de dinheiro. Então, foi a partir daí que começa essa luta. Aí começa logo a grande desmatação no estado. Começa a destruição, o fogo começa a dominar e começa o seringueiro a ser substituído pelo boi. Essa foi uma situação muito difícil. Xapuri é o grande centro, é a cidade que foi arrasada. Xapuri, hoje, parece ter saído de um bombardeio, de uma guerra, exatamente porque foi um dos municípios mais bombardeado pelo latifúndio. Então, a gente começa a pensar no que fazer depois de criado o sindicato. A mata continua a cair de modo que, até 1978, foram destruídos entre os municípios de Xapuri e Brasiléia cerca de 180 mil árvores de seringueira, mais de 80 mil árvores de castanheira e mais 1 milhão e 200 mil árvores de madeiras de outras espécies. Então, a gente começou a lutar. Como fazer para evitar o desmatamento? Aí o sindicato tinha assessoria jurídica. Quando começava uma área de posseiro a ser ameaçada pelo desmate e perder suas colocações, nós recorríamos à Justiça. Só que a Justiça estava do lado do latifúndio, não do nosso lado.
A Justiça estava sempre do lado mais forte
Chico Mendes mostra como os fazendeiros compravam os títulos de terra, como compravam a Justiça e mostra que a única saída que tiveram foi se armarem e se entrincheirarem para, pela força, não verem sua floresta pegar fogo e virar pastagem
“Daí os processos corriam numa forma muito lenta, de modo que quando um fazendeiro ia desmatar, a gente denunciava. Mas quando aquele processo tinha solução na Justiça a mata já tinha sido derrubada.
Aí, nós tivemos que pensar em outra alternativa. Aí partimos para os empates. E foi em março de 1976 que num momento de desespero um grupo de posseiros do município de Brasiléia, no seringal Carmem, desesperados porque as suas colocações estavam ameaçadas por 100 peões de fazendeiros lá dentro, acampados para desmatar, a gente viu que pela via judicial não tinha jeito.
Aí o grupo de 60 posseiros se entrincheiraram na área e teve uma grande repercussão na época. A região estava numa faixa de fronteira, área de segurança nacional, em pleno período da ditadura militar. A partir dali, começam os primeiros avanços. O Incra começou a distribuir os lotes de terra. Não foi uma vitória porque o pessoal negociou.
Um pegou um lote de terra, 30 hectares, outro pegou 50 hectares, outro pegou 100. Só que aquilo, naquele momento, para nós parecia um avanço, uma vitória. Só que ninguém previu que nós tínhamos caído numa armadilha. Aquele loteamento tinha acabado com toda a nossa tradição.
De repente, seringueiro estava sendo transformado em colono, agricultor, coisa que ele não tinha experiência, não sabia fazer, não tinha costume para isso. Assim, essas terras legalizadas acabaram caindo nas mãos dos fazendeiros em posse legal porque o seringueiro não se adapta à agricultura e depois era muito diferente porque o seringueiro fazia dez quilos de borracha e, por mais barato que fosse, todo mundo queria comprar.
Eles produziam um saco de feijão, levava para a cidade e muitas vezes eram obrigados a voltar com a produção porque não tinha quem comprasse. Aí ele entra em desespero e abandona a terra, vende por qualquer preço.
Ele tinha o título, mas ficava lá sem assistência médica, sem transporte, sem uma política de crédito para ele começar a trabalhar. Acho que isso era estratégico para expulsar o homem do campo de uma forma legal para o latifúndio ocupar esse espaço.”
Wilson Pinheiro, o grande líder sindical
Chico Mendes explica as razões que levaram ao assassinato de Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. O próprio Chico Mendes reconhece Wilson Pinheiro como o maior líder do movimento sindical acreano
“A partir de 1980, os empates já tinham se generalizado por toda a região. A coisa ficou triste. Naquela época o movimento sindical estava sendo liderado por Wilson Pinheiro, que era o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, que se identificava como a maior liderança do movimento sindical do estado. O que fizeram os latifundiários? Previram esse lance, esse ponto fraco do nosso meio e programaram a morte de Wilson Pinheiro.
Se reúnem, pagam pistoleiros e no dia 21 de julho de 1980, Wilson Pinheiro é assassinado. Isso foi uma das formas de esvaziar o movimento sindical. Aí, o que faz o governo? Para dar uma de bonzinho, desapropria naquela época 90 mil hectares de terras. O governo dizia que estava resolvendo o problema da questão agrária e mais uma vez a gente embarca nessa canoa furada. Hoje, 70% dessas terras já voltaram novamente para as mãos dos latifundiários, da mesma forma que ocorreu anteriormente. A partir de 81, o sindicato de Xapuri começa a discutir uma nova fórmula e é aí que a gente começa a descobrir que fomos derrotados e caímos em várias arapucas. Nós negociamos muitas vezes na tentativa de resolver os conflitos porque, naquela época, a gente achou que o importante era se-gurar um pedaço de terra para os companheiros, não tinha outra alternativa. Seria melhor continuar sofrendo na área rural do que ir para a periferia pobre das cidades. Mas não deu certo porque a política do governo contribuiu para que isso não desse certo.
Em Xapuri, começamos então a discutir uma outra fórmula. Não vamos sentar mais com os fazendeiros para negociar, fazer acordos espúrios que só têm trazido prejuízos para nós. E começa, então, a resistência para não se permitir indenização nenhuma, nem loteamento nenhum. A questão passa a ser empatar mesmo. E começa a resistência.
Começa o apoio do exterior,mas a UDR se organiza
Aqui, em sua narrativa, Chico Mendes confessa que a batalha contra a devastação desta parte da Amazônia só foi possível com o apoio de pessoas e entidades nacionais e internacionais, que lhe ajudaram a denunciar ao mundo as atrocidades dos latifundiários
“Em 1984, a gente começa a perceber que, nesse tipo de resistência, a gente estava ficando muito isolado. O que fazer? Temos que sensibilizar as autoridades federais, gritar para o mundo que a situação está feia. E aí começamos a nos articular com o apoio de alguns companheiros, de algumas entidades para a realização do primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros em Brasília. Não tínhamos nem idéia de como isso ia ser.
Puxa, lá em Brasília, o pessoal deve achar que nem existe mais seringueiros. Então, nós temos que dar um jeito de chegar lá para dizer que o seringueiro existe, ele está lutando e está querendo continuar sua luta na defesa da floresta. E em 1985, com o apoio do Pró-Memória [órgão ligado ao Ministério da Cultura], da Oxfan [agência internacional], da Mary Alegretti [na época Mary estava no Instituto de Estudos da Amazônia] e de outras entidades, conseguimos realizar o I Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília.
E a gente percebeu também que apesar do trabalho do sindicato dos trabalhadores, o seringueiro prefere criar uma entidade própria, sua, para forçar o reconhecimento nosso como classe.
E aí nasce a idéia de criar o Conselho Nacional de Seringueiros. Já existia o Conselho Nacional da Borracha, mas quem está naquele conselho são os grandes latifundiários, os grandes industriais, que aparecem como os produtores de borracha. Lá, naquele momento, quem era o produtor de borracha era o sindicalista. E a gente foi lá para Brasília dizer que quem produzia borracha éramos nós, os seringueiros.
A idéia de criar o Conselho Nacional dos Seringueiros deu certo. Foi criado e hoje essa luta começou a extrapolar e só passamos a ter algumas pequenas vitórias a partir do momento que essa luta começou a ser divulgada para o Brasil todo e para o mundo.
E aí despertou também o interesse dos movimentos ecológicos internacionais, a partir dos Estados Unidos. E aí a coisa começou a se expandir. Hoje, nós temos muita coisa pela frente. A situação é difícil porque a UDR [União Democrática Ruralista] por conta disso, também começa a se organizar, os latifundiários começam a se organizar, o poder também porque ele pesa sempre mais para o lado do latifúndio.
Mas nós temos um grande lado favorável, que é a possibilidade de divulgar essa luta para o mundo inteiro, denunciando para o mundo inteiro, através das entidades internacionais, tudo o que está acontecendo aqui. Isso a gente considera como grande avanço, mas para chegar até aqui, foi uma luta, foi sacrifício, foi ameaça, foi morte.
Eu e muitos companheiros quantas e quantas noites tivemos que dormir com uma arma ao lado ou passando a noite vigiando a gente mesmo. Ou mudando para lugares diferentes. Não tem sido fácil resistir, mas pelo menos hoje esta luta já se expande pelo mundo inteiro”.
112 dirigentes sindicais foram presos
Chico Mendes explica como os seringueiros sozinhos começaram a
perder feio e por isso mudaram de tática
Em 1981, nós tivemos mais de 112 dirigentes sindicais presos, encurralados em caminhões pela Polícia Militar, cercado por metralhadoras, presos, batidos. Apesar disso, a avaliação nossa é que tínhamos de resistir na luta. E foi se generalizando em 1982, 1983, 1984. Foram empates muito quentes e muitas derrotas da nossa parte. Por que? Porque como os fazendeiros têm grande influência junto ao poder político do Estado, eles contam com o aparato policial. Mas a gente ia lá enfrentar esse povo, que estava portando metralhadoras. Então a gente começou outra tática, de levar mulheres, crianças e todo mundo para a frente dos empates, para a frente de luta. E as mulheres assumiam a frente de comando porque eles iam pensar duas vezes em atirar numa criança. E a gente foi na base da tensão”.
14 anos depois…
semeador e semente
Os acreanos consideram que o maior legado deixado por Chico Mendes é o atual governo do estado, que eles conhecem muito mais como “Governo da Floresta”. Esse foi o slogan escolhido pelo governador Jorge Viana e pela ministra Marina Silva, amigos e aliados de Chico Mendes, para classificar os projetos e ações de governo que o sindicalista defendia em favor da preservação e do desenvolvimento sustentável dos mais de 15 milhões de hectares que formam hoje a floresta do estado.
Enquanto o governo estadual põe em prática tudo o que Chico Mendes pregava em favor da melhoria da qualidade de vida dos povos da floresta, a memória do sindicalista é cuidada hoje pela Fundação Chico Mendes, com sede em Xapuri. Presidida pela viúva do sindicalista, Ilzamar Mendes, a entidade deve ser parceira no Memorial Chico Mendes, que será construído em breve, em Xapuri. A Fundação Chico Mendes se dedica também a apoiar projetos comunitários de manejo de recursos florestais, como o do Seringal Cachoeira, em Xapuri, visitado pelo presidente Lula.
Neste seringal, funciona um projeto comunitário de exploração por manejo sustentável de várias árvores da floresta, atividade que permitiu melhoria da renda de dezenas de famílias de seringueiros e serviu, inclusive, de modelo para o decreto que o presidente Lula assinou no Dia Mundial do Meio Ambiente, condicionando a exploração do mogno no país a planos de manejo florestal.
Ao assinar o decreto no Palácio do Planalto, Lula resumiu numa frase a grande extensão do verdadeiro legado deixado pelo seringueiro e sindicalista Chico Mendes. “A partir da morte de Chico Mendes, em 1988, o Brasil e o mundo começaram a perceber que o destino da natureza e o destino da sociedade humana, em especial nos países mais pobres, estão visceralmente ligados”. (RA)
E Chico Mendes vira tese na UFRJ
Antropóloga defende tese mostrando a dimensão da luta de Chico Mendes na Amazônia
Quando a antropóloga Lucy Paixão Linhares(foto) encontrou-se, em 1988, com o sindicalista Chico Mendes, para ouvir o relato de sua luta em favor da preservação da floresta, já sabia que estava diante de um homem obstinado, corajoso e destemido. Afinal, a antropóloga estava ouvindo o lado mais fraco da verdadeira guerra em que se transformou, nas décadas de 60, 70 e 80 a situação fundiária do Acre, onde fazendeiros e seringalistas tiveram como cúmplices os governos locais, a Justiça, bons escritórios de advocacia, entidades influentes como a UDR e até o próprio Incra.
Enquanto isso, Chico Mendes e seus companheiros contavam basicamente com a união de homens, mulheres e crianças, que se punham na frente das armas dos jagunços para “empatarem” as derrubadas da floresta que tinham por objetivo fazer pastos para a criação de gado, no lugar dos antigos seringais produtores de borracha.
A antropóloga ouviu demoradamente Chico Mendes antes de concluir a sua tese de pós-graduação, que recebeu o nome de Animus Domini (expressão do latim que quer dizer “ânimo do dono”) e se constituiu nas suas 259 páginas numa análise da política de discriminação de terras pública no Acre.
“Dediquei o meu trabalho a Chico Mendes, que cedo reconheceu o animus domini dos seringueiros acreanos em relação à floresta que ocupavam”, diz a antropóloga, que denunciou o jogo imposto pela ditadura militar em sua desastrosa política de ocupação de terras na Amazônia. Sua tese foi publicada em 1992.
Lucy Linhares concluiu que, durante a ditadura militar, o Incra legislou com exposições de motivos (consideradas depois inconstitucionais) para legalizar a posse de terras públicas no Acre numa intensidade muito maior do que a legislação permitia. Segundo Lucy Linhares, concedendo liminares aos proprietários contra os “empates” executados pelos seringueiros, “a atuação da Justiça fez recrudescer a onda de violência no estado, criando um novo momento para o movimento social e revelando que as atribuições formais da burocracia e da justiça eram instrumentos materializados de um poder que emanava das alianças de classe entre governo e proprietários de terras”. (RA)