Iceberg ambiental

Minas sofre desastres ambientais em cascata

26 de janeiro de 2004

Governo de Aécio retoma processo de articulação dos órgãos de meio ambiente para acabar com passivos ambientais






Dos 33 vagões, 18 tombaram. Oito vagões transportavam 381 toneladas de produtos tóxicos. Em 2000, a FCA já havia sido multada em R$ 3,5 milhões pelo Ibama, por acidente que causou o lançamento de 100 mil litros de óleo diesel em rios da região metropolitana de Belo Horizonte

Este último desastre foi provocado pela Ferrovia Centro-Atlântica – FCA, que tem a Vale do Rio Doce como principal acionista. O trem vinha de Camaçari, na Bahia, e seguia para Paulínia, em São Paulo. O acidente foi próximo à cidade de Uberaba, a 472km de Belo Horizonte. O prefeito decretou estado de calamidade pública no município, que teve o fornecimento de água cortado. A causa foi a contaminação do rio Uberaba – único que abastece a cidade – por carga tóxica que vazou após acidente.


Para o secretário do Meio Ambiente de Uberaba, Carlos Nogueira, alguns bairros foram afetados pelo corte de água e a cidade entrou em colapso. “Mas ainda nem sabemos a extensão do dano ambiental nem a quantidade de material escoado para o córrego Alegria, afluente do rio Uberaba”, disse.


Dos 18 vagões que tombaram – a composição era formada por três locomotivas e 33 vagões -, oito transportavam 381 toneladas de metanol; cinco, 245 toneladas de octanol; dois, 94 toneladas de isobutanol e três, 147 toneladas de cloreto de potássio.


Carga perigosa
Relação das substâncias tóxicas que vazaram dos vagões. Quantidades e características de cada produto e seus efeitos sobre o meio ambiente e pessoas.


381 toneladas de metanol
O líquido é altamente inflamável e solúvel em água. A intoxicação pode ocorrer por ingestão, inalação ou absorção através da pele. O contato com os vapores de metanol causa narcose (entorpecimento dos sentidos), irritação dos olhos, da pele e das vias respiratórias. A exposição mais prolongada pode causar cegueira e lesões em fígado, rins, coração e sistema reprodutivo. É o produto mais perigoso entre os que vazaram em Uberaba.


94 toneladas de isobutanol
O líquido oleoso e inflamável que se mistura facilmente à água. A inalação ou ingestão do produto pode causar narcose e irritar os olhos, a pele e as vias respiratórias.


245 toneladas de octanol
O álcool líquido e transparente, com cheiro penetrante, é altamente inflamável. A inalação ou ingestão irrita olhos, pele e provoca náuseas.


Mata ciliar destruída e espuma química no rio
A cascatinha foi coberta logo por uma espuma química, enquanto a mata ciliar virou cinza.
A contaminação atingiu o solo, a mata e os recursos hídricos









Técnicos ambientais de Minas puderam comprovar a contaminação do rio Uberaba, já coberto por uma espuma química



A tristeza
de ver a mata ciliar estorricada pelos produtos tóxicos…



… e os peixes mortos


147 eladas de cloreto de potássio
O pó usado como fertilizante não oferece riscos ao ser humano quando aplicado em pequenas doses. O problema é a grande quantidade despejada no ambiente e o contato com a umidade. O produto pode absorver vapor d’água do ar e se dissolver, contaminando cursos d’água e o lençol freático. O contato com a água contaminada causa irritação dos olhos e problemas hepáticos.


A ferrovia, um iceberg ambiental
A Ferrovia Centro-Atlântica, do grupo da Vale do Rio Doce, foi multada pelo Ibama em R$ 10 milhões e o próprio Ibama, segundo seu representante na região, Huyghens Caetano, encaminhará denúncia de crime ambiental ao Ministério Público e manterá o trecho do acidente interditado até que o dano ambiental seja dimensionado.


Huyghens Caetano deu ainda uma explicação técnica importante. Disse o representante do Ibama que o transporte conjunto de substâncias tóxicas diferentes é permitido, desde que licenciado no órgão ambiental competente.


Em 2000, a FCA já havia sido multada em R$ 3,5 milhões pelo Ibama, por acidente que causou o lançamento de 100 mil litros de óleo diesel em rios da região metropolitana de Belo Horizonte. Nos últimos três anos, foram cinco descarrilhamentos.


Grito de alerta!
Brasil ainda tem 500 Cataguazes prestes a explodir


Agora devem ser 499, pois mais uma já explodiu em Uberaba. Na edição de maio, a Folha do Meio trouxe uma ampla entrevista com o novo diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Flávio Montiel, um ex-ativista do Greenpeace. Na entrevista, Montiel destacou que o Ibama está em estado de alerta máximo: “Estamos montando um Observatório Nacional de Monitoramento Ambiental, onde terá uma sala para monitorar empresas com passivos ambientais durante 24 horas/dia”. Algumas colocações de Flávio Montiel:







“Estamos montando aqui no Ibama uma sala de acidentes em emergências ambientais, que estará trabalhando com sistema de monitoramento para queimadas ou derramamento de óleo, que funcionará como um sensor”


“É importante observar o acidente em Cataguases. Quando surgiu o problema, teve o jogo de empurra. A competência seria do Ibama, que foi avisado, mas não fez nada. Ou quem deveria fazer era o estado, que licenciou e não fiscalizou. O importante é haver um mapeamento de todas estas 500 cataguases que existem por aí…”


“Ao voltar para Brasília, passei pela represa de Três Marias (MG), onde existe colada ao rio São Francisco uma empresa que trabalha com metais voláteis. No caso, ferro gusa. Ou seja, está à beira do rio e dentro de APP (Área de Preservação Permanente). Quer dizer, a empresa foi instalada naquele local, há anos, mas de maneira totalmente irregular”.


“O Estado brasileiro tem que estar devidamente aparelhado para que possa monitorar e ter uma capacidade de resposta imediata para acidentes e emergências ambientais. Esta diretriz está sendo implantada pelo Ibama”.


“O que ocorre é que temos técnicos de excelente nível, que na hora de um problema sabem como
solucionar. Porém, sentem falta de uma linha de procedimentos previamente estabelecidos. Temos competência técnica, mas o que falta é uma articulação traduzida num manual operacional que diga o ‘passo-a-passo’. Como agir em situações específicas de emergência. Para acidentes envolvendo fogo e vazamento nós temos, mas para outros tipos de acidentes ainda não”.


“A grande maioria das empresas de médio ou grande porte está licenciada. Creio que muitas delas devam estar com licenças vencidas ou com seus equipamentos destinados à mitigação de impactos, como filtros, estruturas de represas ou sistemas de tratamento de destinação final, um pouco obsoletos”.


Conheça alguns dos maiores crimes ambientais desde março de 1975


Março de 1975
Um cargueiro fretado pela Petrobras derrama 6 mil toneladas de óleo na Baia de Guanabara.


10 de março de 1997
O rompimento de um duto da Petrobras que liga a Refinaria de Duque de Caxias (RJ) ao terminal da Ilha D’Água provoca o vazamento de 2,8 milhões de óleo combustível em manguezais na Baía de Guanabara.


13 de outubro de 1998
Uma rachadura de cerca de um metro que liga a refinaria de São José dos Campos ao Terminal de Guararema, ambos em São Paulo, causa o vazamento de 1,5 milhão de litros de óleo combustível no rio Alambari. O duto da Petrobras estava há cinco anos sem manutenção.


6 de agosto de 1999
Um vazamento de 3 mil litros de óleo no oleoduto da refinaria da Petrobras que abastece a Manaus Energia (Reman) atinge o Igarapé do Cururu (AM) e rio Negro. Os danos ambientais ainda não foram recuperados.


Novembro de 1999
Uma falha no campo de produção de petróleo em Carmópolis (SE) provoca o vazamento de óleo e água sanitária no rio Siriri (SE). A poluição das águas acabou com a pesca no local.


18 de janeiro de 2000
O rompimento de um duto da Petrobras que liga a Refinaria Duque de Caxias ao terminal da Ilha d’Água provocou o vazamento de 1,3 milhão de óleo combustível na Baía de Guanabara. A mancha se espalhou por 40 quilômetros quadrados.


16 de março de 2000
O navio Mafra, da Frota Nacional de Petróleo, derramou 7.250 litros de óleo no canal de São Sebastião, litoral Norte de São Paulo. O produto transbordou do tanque de reserva de resíduos oleosos, situado no lado esquerdo da popa. O Cetesb multou a Petrobrás em R$ 92,7 mil.


26 de junho de 2000
Nova mancha de óleo de um quilômetro de extensão apareceu próximo à Ilha d’Água, na Baía de Guanabara. Desta vez, 380 litros do combustível foram lançados ao mar pelo navio Cantagalo, que presta serviços à Petrobras. O despejo ocorreu numa manobra para deslastreamento da embarcação.


16 de julho de 2000
Um vazamento de 4 milhões de litros de óleo da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), em Araucária, na região metropolitana de Curitiba, contamina o solo da região.


13 de maio de 2002
O navio Brotas da Transpetro, subsidiária de transportes da Petrobras, derrama cerca de 16 mil litros de petróleo, na baía de Ilha Grande, na região de Angra dos Reis, litoral sul do Rio de Janeiro.


25 de junho de 2002
Um tanque de óleo se rompe no pátio da empresa Ingrax, em Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR), deixando vazar 15 mil litros da substância.


31 de março de 2003
O rompimento de um reservatório de dejetos industriais da Cataguazes Papéis, na cidade mineira de Cataguases, despeja 1,2 bilhão de litros de substâncias tóxicas nos rios Pomba e Paraíba do Sul. A mancha deixou 600 mil pessoas de oito municípios de Minas e do norte do Rio sem água durante uma semana, contaminando inclusive as praias do norte fluminense e sul do Espírito Santo. A Cataguazes foi interditada e multada em R$ 50 milhões.


Ponto de Vista


Meio ambiente: compromisso de Minas
De como a valorização excessiva do licenciamento ambiental, deixando a descoberto a fase de
operação do empreendimento, contribuiu para os desastres de Cataguases e Uberaba









“Vamos propor o abandono do atual modelo de licenciamento, tipicamente cartorial, para dar lugar a outro modelo em que o processo de licenciamento passe a representar, de fato, um dos mais valiosos instrumentos para a proteção e conservação do meio ambiente.”


José Carlos Carvalho (*)
Ao longo das últimas décadas, a administração pública criou um número muito excessivo de normas para regular a gestão ambiental, partindo do falso princípio de que quando mais normas existissem mais eficientes seriam os controles. Ao mesmo tempo, os órgãos responsáveis pela administração ambiental passaram a valorizar de forma excessiva o processo propriamente dito de licenciamento ambiental, deixando a descoberto a importante fase da operação do empreendimento, sem as ações de monitoramento, controle e fiscalização indispensáveis para assegurar a proteção do meio ambiente nesses cenários. Estas distorções, de certa forma, muito contribuíram para a ocorrência de desastres ecológicos como os que assistimos em Cataguases e, mais recentemente, em Uberaba. Isso para citar apenas os que ficaram mais conhecidos.


Licenciamento, a maioria das reclamações
Ao assumir o governo de Minas Gerais, o governador Aécio Neves, fez incluir no elenco de programas que passaram a compor as macro diretrizes de sua administração, a promoção do desenvolvimento econômico e social em bases sustentáveis. Esta decisão resultou na necessidade de adoção imediata de medidas visando a modernização da gestão ambiental mineira, tarefa esta atribuída à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.


Diagnosticados os principais problemas nesta área, passou-se à fase do seu enfrentamento com determinação e ousadia responsável para eliminação dos pontos de estrangulamento, com destaque para o sistema de licenciamento no qual se concentram a maioria das reclamações da sociedade.


Legislação ambiental: hora da revisão
Primeiramente, tratou-se da revisão e modernização da legislação ambiental estadual incorporando a ela inovadores princípios de gestão ambiental. Esta fase está concluída, com cinco leis e oito decretos publicados até a Semana de Meio Ambiente deste ano.


A consolidação desta nova política já está em fase adiantada e, até março de 2004, qualquer cidadão que dispuser de uma linha telefônica simples e de um computador também simples poderá acessar todas as informações armazenadas nas bases de dados dos órgãos ambientais do Estado. Inclusive requerer licenciamento pela internet. Hoje, muitos desses dados já estão disponíveis no site da Secretaria: <www.semad.mg.gov.br>


Nova gestão: o novo desafio
Fazem parte desta nova plataforma de mecanismos de gestão:
1 – A implantação do Sistema de Informação Ambiental, por meio da unificação das bases de dados das entidades dos sistema – Feam, IEF e Igam – em uma plataforma única, atualizada e georreferenciada;
2 – A unificação do sistema de licenciamento ambiental visando integrar as entidades vinculadas à Secretaria (IEF, Igam e Feam);
3 – A regionalização do Conselho Estadual de Política Ambiental – Copam, em parceria com a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil, para desconcentrar fisicamente o sistema, hoje centralizado em Belo Horizonte;
4 – A criação dos Núcleos de Gestão Ambiental nas Secretarias de Estado com representação no Copam, com o objetivo de internalizar a gestão ambiental na formulação das políticas públicas setoriais a cargo daquelas Secretarias e para subsidiar sua participação no Copam;
5 – A construção e oficialização de índices de qualidade ambiental, por região do Estado, a serem observados na concessão do licenciamento ambiental;
6 – A reorganização do Grupo Coordenador da Fiscalização Ambiental Integrada – GCFAI reunindo todos os órgãos ambientais com poder de polícia administrativa, incluindo o policiamento ambiental, como “locus” do planejamento operacional da fiscalização;
7 – A retomada das negociações com organismos de crédito internacional iniciada com o Banco KfW da Alemanha e o International Tropical Timber Organization – ITTO com importantes recursos disponibilizados;
8 – A cobrança pelo uso da água através dos Comitês de Bacias Hidrográficas;
9 – A aplicação de caução ambiental para garantia das reparações decorrentes de empreendimentos potencialmente degradadores e poluidores.


Mudança de cultura nada cartorial
As intervenções que estão sendo processadas em Minas, nesses primeiros cinco meses, longe de constituir apenas numa substituição de instrumentos e mecanismos, vão provocar uma completa mudança de cultura das organizações públicas e da sociedade civil no trato dessas questões.


Vamos propor o abandono do atual modelo de licenciamento, tipicamente cartorial, destinado quase exclusivamente à concessão da licença, para dar lugar a outro modelo em que o processo de licenciamento passe a representar, de fato, um dos mais valiosos instrumentos para a proteção e conservação do meio ambiente.


Sabe por quê? Simples, porque vai considerar, prioritariamente, para fins de concessão da licença, os índices de qualidade ambiental definidos por região do Estado.


Sai o modelo do processo pelo processo para dar lugar ao modelo comprometido com o resultado.


Acidentes como o de Cataguases e Uberaba certamente não deverão ocorrer com tamanha freqüência no futuro, porque os órgãos gestores do meio ambiente não mais ficarão a reboque desses acontecimentos.
Motivo: vão atuar efetivamente durante toda a vida útil dos empreendimentos licenciados, pela via do monitoramento, controle e fiscalização.


Mais: vão assegurar as necessárias reparações ambientais de cada acidente, seja pela sua incorporação ao próprio projeto seja pelo mecanismo de caução.
(*) José Carlos Carvalho é ex-ministro e atual Secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais