Água de lastro e os recursos hídricos
26 de janeiro de 2004Dez bilhões de toneladas de água rodam anualmente o mundo equilibrando
Folha do Meio – O que é água de lastro?
Garrido – É justamente o contra-peso, a água colocada nos tanques dos navios para mantê-los em perfeito equilíbrio. Como? Aumentando o calado, compensando perdas de peso no descarregamento, para evitar inclusive o estresse das estruturas.
FMA – Por que a preocupação com as águas de lastro?
Garrido – Simplesmente porque estima-se que cerca de dez bilhões de toneladas de água de lastro circulam em porões de navio a cada ano, pelo mundo, representando uma verdadeira ameaça ambiental para diversos corpos d’água doce do planeta. Se, por um lado, essa água é de extrema utilidade para tornar mais segura a operação dos navios, por outro, sabe-se que entre cinco mil e dez mil espécies diferentes de micróbios, plantas e animais marinhos estão “passeando” pelo mundo, levando indesejável contaminação para onde ela não existe.
E, o grave, para onde não existe os inimigos naturais destas bactérias ou outra espécie de vida. Assim, sem inimigos naturais, vem o desequilíbrio ambiental. Quando descartadas em novos ambientes, essas espécies podem ser invasoras, rompendo equilíbrio ecológico do novo habitat, com impactos altamente nocivos para a saúde humana e para a economia local.
FMA – Existe algum cálculo ou estimativa para esse impacto ambiental?
Garrido – Não há um cálculo exato, em escala global, para o impacto causado por essa contaminação. Mas é sabido que são dezenas de bilhões de dólares por ano o custo para reverter o mal causado por esses episódios de contaminação. Mesmo parecendo despercebido, esse impacto negativo é muito grande…
FMA – E que bactérias são essas que representam um perigo tão grande?
Garrido – Se olharmos através de um microscópio uma pequena gota de água de lastro, vamos verificar que ela carrega consigo uma grande variedade de organismos da vida marinha. É que praticamente todas as espécies marinhas passam por um estágio de plâncton (haloplâncton) em seus respectivos ciclos de vida.
Vamos a um exemplo mais claro: enquanto um camarão adulto, ou um molusco ou ainda um peixe, dificilmente é transportado em águas de lastro, seus ovos planctônicos ou suas larvas vivem fazendo um verdadeiro périplo pelo mundo afora.
Sucede que eles não param de crescer enquanto “passeiam”. Esses plânctons se desenvolvem, alcançam o estágio adulto, são despejados junto com as águas de lastro nos portos de destino e tornam-se uma comunidade invasora, causando todo o tipo de impacto sobre as populações aquáticas nativas do porto de destino.
Esses impactos têm maior ou menor grau de periculosidade, conforme a constituição da bactéria “errante”. Podem afetar a saúde humana, o meio ambiente e a própria economia da região onde se deu a invasão.
Conheça exemplos de contaminação pela água de lastro
“Acho muito bom a Folha do Meio Ambiente abordar esse tema porque a transferência de microorganismos por meio das águas de lastro será um dos maiores, para não dizer o maior desafio ambiental a ser enfrentado pela indústria naval nos próximos anos. Sabe por quê? Simples, porque a poluição, o derramamento de petróleo é algo que se vê e se combate. A contaminação pela água de lastro vai na surdina. Só aparece quando o mal está feito”.
FMA – Existem casos concretos que confirmem a necessidade de se gerenciar o uso de águas em lastros de embarcações?
Garrido – Sim. Muitos casos. Por exemplo, embarcações que partiram do Japão em direção à Austrália, principalmente durante os anos oitenta do século passado, conduziram em águas de lastro um tipo de organismo denominado “Asterias Amuresis” que, não encontrando um predador, reproduziu-se de forma espetacular e se disseminou nas águas da região, alterando o equilíbrio ecológico, devorando sobretudo os crustáceos, inclusive ostras, mexilhões, vieiras, causando colossais prejuízos para a economia da região e sérias ameaças à biodiversidade.
Outro exemplo conhecido foi o do chamado “crustáceo-zebra”, da Europa, transportado em águas de lastro a partir desse continente para a região dos Grandes Lagos (Estados Unidos e Canadá) onde, ao chegar, também não encontrou predadores, e pôde reproduzir-se em grande escala, infestando, até os dias de hoje, cerca de 40% dos cursos d’água dos Estados Unidos.
Neste caso, o sistema hidrográfico foi muito afetado, alertando as autoridades para a relevância da questão das águas de lastro de navios.
FMA – Há muitos mais casos, ou ficamos apenas em uma meia dúzia pelo mundo afora?
Garrido – São muitos os casos. Evidente que nem todos são conhecidos. Para se ter uma idéia da gravidade do problema, sabe-se que, a cada nove semanas, devido ao intenso tráfego de navios ao redor do mundo, existe a invasão e algum ambiente físico na Terra por um tipo de espécie marinha. Acho muito bom a Folha do Meio Ambiente abordar esse tema porque a transferência de microorganismos por meio das águas de lastro de embarcações será um dos maiores, para não dizer o maior desafio ambiental a ser enfrentado pela indústria naval nos próximos anos. Sabe por quê? Simples, porque a poluição, o derramamento de petróleo é algo que se vê e se combate. A contaminação pela água de lastro vai na surdina. Só aparece quando o mal está feito.
FMA – E os outros exemplos?
Garrido – Um outro exemplo é o da medusa (Mnemiopsis Leidyi), que chegou ao Mar Negro pelo final de 1970, tendo ido a partir da América do Norte. Consumindo plankton, a grande população de medusa que ali se reproduziu quase fez desaparecer o plankton entre o final dos anos oitenta e a primeira metade dos noventa, fazendo com que a população de anchova fosse se exterminando. Acabou com a indústria da pesca da região. Estima-se que o prejuízo total causado tenha sido de meio bilhão de dólares por ano.
FMA – Dá para entender que a contaminação pela água de lastro é grave. É uma ameaça para a vida e o meio ambiente oceânico. Há, ainda, outros casos notáveis?
Garrido – A verdade é que a introdução de organismos aquáticos agressivos e patogênicos em biomas onde estes ainda não se fizeram presentes é sempre um problema. Analisando todos os casos em que águas de lastro serviram de veículo para o desequilíbrio ambiental, podemos afirmar, sem medo de errar, que a água de lastro é uma das quatro maiores ameaças para a vida oceânica.
FMA – E quais são as outras três?
Garrido – Em primeiro lugar, são as fontes de poluição marinha oriundas de terra firme, que podem chegar pelos estuários dos rios, por descargas ou vazamentos de embarcações, acidentais ou criminosos, por emissários submarinos.
Em segundo lugar, mas não menos importante, a superexploração de recursos marinhos, com a possibilidade de extinção de espécies marinhas e oceânicas.
E, a terceira, são os impactos causados nas zonas costeiras, com a destruição dos habitats marinhos.
FMA – Talvez o tamanho do mar não dê ao homem a dimensão do estrago da poluição…
Garrido – É a pura verdade. O mesmo acontece com a água doce no Brasil. Por ser abundante, parece que é infinita. Se se pudesse fazer um levantamento, o mais completo possível, de todos os acidentes e agressões ambientais orbitando em torno dessas quatro causas, a gente iria chegar a valores astronômicos. O que sucede é que os oceanos se apresentam para o ser humano como um corpo infinito, por suas dimensões. Os oceanos ocupam três quartas partes da superfície da Terra. A desproporção é tamanha que as pessoas não se apercebem da enorme degradação que os meios marinho e oceânico também sofrem.
Países pilotos estudam o problema. O Brasil é um deles
As medidas serão desenvolvidas em seis pontos de monitoramento
que servirão de Projetos Demonstrativos
FMA – Há mais casos conhecidos de organismos transportados por águas de lastro que tenham invadido outros habitats?
Garrido – Claro. Há o caso dos dinoflagelados tóxicos que foram levados em águas de lastro para a Austrália. São microorganismos encontrados em águas marinhas avermelhadas pela floração de determinado tipo de algas microscópicas que passaram a maior parte de sua existência protegidas em cistos duros e resistentes no fundo do mar.
Veja como é grave, pois pode atingir a saúde do próprio homem. Quando as condições ambientais se tornam favoráveis, os cistos ingressam em uma fase planktônica que é liberada e sobem pela coluna d’água, reproduzindo-se em grande quantidade e conferindo uma coloração avermelhada às águas. As algas planktônicas contêm toxinas paralíticas que podem entrar na cadeia trófica por meio dos moluscos, os quais, ao serem ingeridos pelo ser humano, podem causar-lhe paralisia ou mesmo levar à morte.
FMA – E essas algas só foram transportadas para a Austrália?
Garrido – Essas algas devem ter sido transportadas para mais de uma região em todo o mundo, mas foi na Austrália que teve maior impacto. O caso mais notório foi o australiano, onde se verificou o encerramento de atividades da indústria da ostra por contaminação, e gerando custos elevadíssimos de monitoramento, agora mantido em caráter permanente.
FMA – Que providências já se tomaram para acompanhar e reverter esse quadro crescente de contaminação provocada pelas águas de lastro?
Garrido – A Organização Marítima Internacional é a agência especializada das Nações Unidas que administra o regime regulatório para a segurança marinha e a prevenção contra a poluição causada pelo transporte marítimo. O lema da OMI é “Navios mais seguros e oceanos mais limpos”. A OMI já formou um grupo para se ocupar unicamente do problema das águas de lastro. Esse grupo está subordinado ao Comitê de Proteção do Ambiente Marinho.
A OMI também adotou regras para o controle e a gestão das águas de lastro de navios, com o objetivo de minimizar a transferência de organismos aquáticos perigosos e patogênicos.
Deve-se, ainda, à OMI, a organização da Convenção do Gerenciamento das Águas e Sedimentos de Lastro de Navios, a ser adotada pelas Nações Unidas. Aliás, uma convenção para tratar deste assunto está sendo preparada.
FMA – A OMI mantém algum tipo de relação com organismos internacionais?
Garrido – Tem sim e com vários. Mas pode-se dar destaque ao trabalho conjunto da OMI com o Global Environmental Facility – GEF que tem cerrado fileiras em busca de soluções para minimizar o problema do espalhamento de contaminação hídrica pelas das águas de lastro. Igualmente, vale assinalar o papel do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – Pnud para apoiar os países em desenvolvimento na implementação das medidas recomendadas pela Organização Marítima Internacional.
FMA – Que medidas concretas já foram postas em prática?
Garrido – Antes mesmo da adoção da Convenção sobre Águas de Lastro de Navios, a OMI, juntamente com o GEF e o Pnud, deram partida no Programa Global de Gerenciamento das Águas de Lastro, estabelecendo, para tanto, três objetivos principais.
O primeiro desses objetivos é o de reduzir a transferência de organismos aquáticos agressivos e patogênicos nas águas de lastro. O segundo objetivo é colocar em prática, tão rapidamente quanto possível, as diretrizes definidas pela OMI. E o terceiro é a preparação da convenção. As medidas para o alcance destes objetivos estão sendo adotadas a partir de Londres, onde está sediada a Unidade de Coordenação da OMI.
FMA – Como resolver esse problema que se espalha como rastilho de pólvora?
Garrido – Na verdade, Londres é apenas o centro de coordenação das ações. Todas essas medidas serão desenvolvidas em seis pontos de monitoramento que servirão de Projetos Demonstrativos dos Resultados das ações.
Esses seis projetos estão situados nos locais indicados pelo Quadro 1. Um destes pontos está justamente no Brasil, em Sepetiba, no Rio de Janeiro. São países-piloto da Fase 1 do Programa.
FMA – Dá para anunciar algum resultado?
Garrido – De concreto, podemos dizer que muitos casos já foram estudados. Portanto, o problema, em sua conceituação mais ampla, está cientificamente cercado. Seguramente estariam ocorrendo muitos outros casos além dos que surgem, se nada estivesse sendo feito e se o alerta não houvesse sido dado aos agentes desse processo.
Agora o que precisamos perseverar e monitorar são os custos das externalidades geradas pelas contaminações de águas de lastro. E são contaminações difusas pela própria mobilidade da água.
O que ainda não está adequadamente encaminhado é a indicação de formas pelas quais se possam internalizar contratos dos armadores e administradores portuários, com os produtores e compradores das mercadorias transportadas.
As Nações Unidas entraram nesta questão e o Programa GloBallast busca, justamente, preparar os países antecipadamente para a implementação de instrumento legal de âmbito internacional. Isso envolve avaliação do programa que está sendo implementado, envolve algumas negociações e envolve até direito internacional.
A questão é complexa, como são complexos os estudos que estão sendo realizados e complexas são as agressões ambientais que estão ocorrendo em diversas partes do mundo.