DNA do milho mostra orígens dos índios brasileiros

As plantas que contam histórias

29 de janeiro de 2004

“DNA de amostras de milhos mostram roteiros que podem explicar um pouco sobre a origem dos índios brasileiros”







Edvalson Bezerra Silva (Mocoin) – de Brasília
Paulo Euler Teixeira Pires – de Brasília


De onde viemos?
Quando os portugueses fincaram suas bandeiras e cruzes na nova terra, causaram enorme surpresa ao povo que vivia no Sul da Bahia, onde hoje está a cidade de Porto Seguro. Acostumados com suas pequenas canoas, todos pararam para ver aqueles treze enormes navios da frota portuguesa que atravessavam a passagem entre os recifes da Coroa Vermelha, um após o outro, para depois ancorar perto da praia. Surpresa também para Cabral e seus comandados, que não imaginavam encontrar pessoas nas distantes terras de além-mar.
De onde vinha esse povo que não se encaixava na explicação tradicional de mundo daqueles visitantes? Segundo a visão daqueles homens, naquela época, caso sua origem não tivesse ligação com o velho mundo, os povos indígenas poderiam ser considerados não-homens, passíveis de ser explorados, o que de fato aconteceu. A indagação que passou pelas cabeças lusitanas persistiu por vários séculos. E até hoje, 500 anos depois, ainda gera controvérsias. Numa coisa os cientistas concordam: as populações indígenas não surgiram na América.
Até o final do século 19 formularam-se muitas versões para explicar essa indagação, atribuindo-se o povoamento do continente americano aos fenícios, aos chineses e até às tribos perdidas de Israel. A teoria mais aceita, no entanto, indica que ocorreram correntes migratórias de povoamento por elementos da Ásia Oriental (Mongólia). Essas levas humanas atravessaram o estreito de Bhering (Alasca-Rússia) durante a última glaciação, há cerca de 12.000 anos, quando o oceano encontrava-se até 150 metros abaixo do seu nível atual e gigantescas calotas glaciais permitiram o acesso e o povoamento das três Américas. Segundo essa tese, somente há 6.000 anos temperaturas mais quentes e úmidas derreteram parte do gelo fazendo o oceano atingir os seus níveis atuais, criando uma barreira marítima.


A viagem do milho
O milho, planta cuja origem se perde no tempo, era consumido no México há pelo menos 7.000 anos e na região do Peru há 4.500 anos além de fazer parte da alimentação básica de outras culturas americanas séculos antes da chegada dos europeus ao Novo Mundo. Agora ele surge também no Brasil para jogar um pouco de luz sobre o passado desconhecido dos nossos antepassados indígenas. Amostras arqueológicas de milho, indicam que esse cereal já transitava do México, na América do Norte, para regiões do Panamá, na América Central até Minas Gerais, no Brasil, há pelo menos 1.000 anos.
Amostras de milho arqueológico oriundas de três cavernas localizadas no Vale do Peruaçu, na região de Januária, Minas Gerais, nas margens do rio São Francisco, foram o objeto de estudos na tese de doutorado do pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Fábio de Oliveira Freitas, desenvolvidos no Departamento de Genética da Universidade de São Paulo (USP), Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba (ESALQ) e no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester, Inglaterra.
Os sítios do Vale do Peruaçu, em Minas Gerais, revelaram ainda uma riqueza arqueológica importante e com diferentes idades, mostrando que aquele local serviu de abrigo aos nossos ancestrais em diferentes épocas, como é o caso de um esqueleto encontrado, com mais de 10.000 anos, considerado pelos cientistas como o mais antigo do Brasil e um dos mais antigos da América do Sul. Pinturas rupestres e um variado número de espécies vegetais atestam a presença do homem naquela região.


O sítio do Vale do Peruaçu
A seqüência genética do milho encontrado em três cavernas de Minas Gerais, mostram o parentesco com o milho coletado em aldeias do Parque do Xingu, do Sul do Brasil, com amostras obtidas com agricultores tradicionais e com milhos arqueológicos do México e Panamá: luzes na escuridão do nosso passado pré-histórico


Brotaram das escavações do Peruaçu silos feitos de folhas de palmeiras, palha de milho e capim trançado contendo espécies coletadas, como um tipo de coquinho, o licuri ou guariroba, e cultivadas como o algodão, a mandioca, o milho, o feijão e sementes de maracujá. O milho, pela quantidade de vestígios arqueológicos, era a planta mais importante na dieta alimentar dos brasileiros que habitavam aquele Vale.
Fragmentos do coquinho guariroba (sem a parte comestível) e de mandioca (com indicações de que fora ralada) e sabugos de milho, sem os grãos, indicam a importância daqueles produtos na alimentação, onde o silo poderia fazer parte de rituais religiosos ou simplesmente para estocagem de alimentos. Os estudos indicam que os silos começam a aparecer cronologicamente por volta de 1.500 anos e crescem em abundância por volta de 1.000 anos.
De cada uma das amostras do milho arqueológico encontrado em Minas Gerais — sete, ao todo, oriundas de três cavernas, com idades que variavam de 560 a 1.0l0 anos —, foram extraídos fragmentos de DNA. O mesmo trabalho foi feito com amostras de milho indígena coletadas em aldeias do Parque Nacional do Xingu (Waurá e Xavante), no Mato Grosso; Guarani, Caingang do Sul do país, e de aldeias do Paraguai além de outras, obtidas em propriedades de agricultores tradicionais, conservadas no Banco de Germoplasma da Embrapa Milho e Sorgo, localizada na cidade de Sete Lagoas, Minas Gerais, coletadas na década de 50. “Ao final dessa etapa tínhamos em mãos as seqüências genéticas que podiam ser comparadas e analisadas”, diz Fábio.


A busca do pai genético
As análises indicaram que as seqüências genéticas se originavam de apenas dois grupos ou tipos genéticos básicos (alelos), ou três, considerando-se as amostras paraguaias, de outra família genética. Com esses resultados nas mãos, o pesquisador comparou-os com dados existentes na literatura, que abrangiam trabalhos semelhantes com amostras tradicionais e arqueológicas das regiões do México e dos Andes. É como se o exame de DNA do filho estivesse pronto e agora precisava-se descobrir o pai genético.
“Os trabalhos ficaram mais interessantes quando fizemos as análises geográficas dessas ocorrências”, explica Fábio. “Notou-se primeiramente que os três tipos ocorrem na região do México, confirmando a alta diversidade, que é um dos pressupostos principais de um centro de origem de uma determinada espécie. Ao comparar os resultados das análises dos milhos coletados no Brasil com outras amostras americanas descobrimos que ele ocorria em diferentes locais, sugerindo que os três grupos genéticos básicos de milho devem ter sido introduzidos no continente em dois momentos distintos, a partir de duas levas migratórias independentes, trazendo amostras de diferente tipos e percorrendo caminhos divergentes”.
Um grupo humano adaptado a regiões de altitude deixou o México e atravessou o Panamá, por volta de 5.000 anos atrás, levando consigo raças de milho que possuíam o tipo mais “simples” ou primitivo de alelo e, ao chegar na América do Sul, penetraram na região da Cordilheira dos Andes, estabelecendo-se ali. O exame do DNA de amostras de milho indígena do Paraguai mostrou o parentesco genético com o milho, que ocorre no México e na região ao longo da Cordilheira dos Andes, desde o Norte do Peru até o Chile e em amostras arqueológicas peruanas de 4.500 anos.


Migração do México trouxe o milho brasileiro
Outra corrente migratória atravessou mais uma vez o Panamá, por volta de 2.000 anos atrás, só que através das planícies e ao longo dos vales dos rios, nas chamadas “terras baixas”, trazendo consigo os dois tipos de milho que o cientista chama de “complexo” devido às suas características genéticas. Esses dois grupos ficaram isolados, demonstrando uma diferença cultural intensa, maior que a diferença ambiental. “É interessante notar que esse padrão se mantém nas amostras de milhos atuais. Uma explicação pode ter sido o fator histórico, onde os portugueses colonizaram as terras baixas e os espanhóis as terras altas, mantendo o isolamento ou barreiras culturais que já existiam”, avalia Fábio.
As amostras de feijão do Peruaçu reforçam essa tese. Com idades que variam entre cerca de 400 a 2.500 anos, só foi possível extrair o DNA da amostra mais recente, já que nas demais o estado físico do material impossibilitava as análises, segundo Fábio. Como o feijão não tem um centro de origem totalmente definido e possui parentes silvestres desde o Norte do Chile até o México, não foi possível traçar uma rota migratória da sua origem até Minas Gerais. Mas os exames possíveis mostraram um parentesco maior com espécies da Venezuela, Colômbia e México e pouca relação genética com o feijão do Peru.


Ensaio do Mercosul pré-histórico
A barreira montanhosa e fria não impediu totalmente o contato, trocas e influências culturais entre as populações humanas das “terras altas” e “terras baixas”. Essa troca se fazia por uma passagem na cadeia de montanhas chamada de “Quebrada de Humauaca” ou de “Mani”, amendoim, na língua local, situada ao Norte da Argentina, ligando as regiões a Oeste e a Leste da Cordilheira dos Andes.
Um sítio arqueológico descoberto recentemente no Peru, noticiado pela revista National Geographic Brasil, edição de maio de 2002, mostra múmias incas, enterradas ritualmente com vários objetos e plantas como o algodão, o feijão, batata, milho e amendoim. Essa coincidência entre as plantas do Peruaçu e do cemitério inca pode indicar a existência de um fluxo de espécies cultivadas entre os diferentes povos que habitavam as três Américas. Um ensaio de Mercosul pré-histórico que se dava ou por simples troca ou por conquistas de guerra, muito comum entre os povos da época.
“Há uma escassez de vestígios arqueológicos no Brasil, principalmente de vegetais, em razão do clima que dificulta a conservação. Também não se dá muita importância a esse tipo de estudo e investigação no país, talvez porque não foram encontradas grandes construções, templos, cidades e pirâmides fazendo com que o foco das pesquisas se concentrem mais em regiões da América Central e dos Andes”, desabafa Fábio. Mas as plantas podem colocar muitas luzes na escuridão do nosso passado pré-histórico, e contar as histórias, auxiliadas pela moderna ciência.