Serra da Capivara
26 de janeiro de 2004Berço do Homem americano é modelo de parque
Data de criação: 5 de junho de 1979, pelo decreto nº83548 |
O Parque Nacional da Serra da Capivara permanece aberto das 6 às 18 horas. Tem quatro acessos com guaritas permanentemente vigiadas. O principal acesso é pelo sítio do Mocó (via São Raimundo Nonato), que dispõe de centro de visitante, camping, dormitórios (coletivos e individuais), cozinha com estrutura completa, banheiros, lanchonete, churrasqueira, loja de souvenirs e telefone. Quem faz questão de maior conforto pode contar com o charmoso hotel Capivara, em Nonato. Ao contrário do que acontece em muitas unidades de conservação, ninguém entra lá sem ser acompanhado de um guia treinado pela Fundham. A vigilância é constante. Dezenas de guarda-parques, em geral ex-caçadores convertidos à filosofia preservacionista, deslocam-se pelo parque de moto e armados.
Os visitantes ainda contam com o Museu do Homem Americano, ligado a Fundham, nos arredores de Nonato, uma espécie de miragem cultural encravada na caatinga. Considerado um dos mais ricos acervos de arqueológicos do País, ele reconstrói a evolução dos grupos humanos que viveram na Capivara nos últimos 50 mil anos.
Se a estrutura do parque, bancada por recursos de projetos de cooperação junto aos governos da França, Japão, Itália, do Banco Mundial e da iniciativa privada, é de dar inveja, o maior orgulho mesmo dos seus administradores é o projeto de desenvolvimento sustentável que a Fundham vem criando no entorno do parque, por meio dos chamados núcleos de apoio à comunidade. Eles desenvolvem atividades econômicas, educativas e sociais, envolvendo apicultura, artesanato, confecção, olaria, escolas que atendem mais de 500 crianças, atendimento médico e formação profissional. A exploração racional do ecoturismo é a aposta que se faz para o desenvolvimento da comunidade e a conseqüente preservação do parque.
Museu a céu aberto
O Parque Nacional da Capivara é uma espécie de gigantesco museu a céu aberto. Tem 130 mil hectares, que guarda um acervo de cerca de 500 sítios arqueológicos, dos quais 263 guardam pinturas, que somam 23 mil figuras com até 12 mil anos, o que o torna detentor do maior acervo do gênero no continente americano.
A quantidade, qualidade estética e antiguidade das pinturas o coloca como um dos mais significativos do mundo. Importância esta que lhe valeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela Unesco há 12 anos. Só o sítio Baixão da Vaca tem 750 gravuras, recorde na região.
Mas a importância do parque não se limita a grandiosidade de seu acervo. Pesquisas que consumiram cerca de dez anos, envolvendo uma fogueira estruturada, obrigou a comunidade científica a revisar a teoria então predominante que sustentava que a ocupação humana na América se dera a 30 mil anos, pelo norte. Os vestígios da Capivara sustentam que ela se deu há 48 mil anos.
A região, composta por canyons com paredões de até 150 metros, chapadas e planícies, que já foi uma exuberante floresta tropical, ainda guarda resquícios dessa exuberância pelos dos jacarandás e imbaúbas, espécies atípicas na caatinga e dos fósseis de mastodontes, tigres dentes-de-sabre, tatus e preguiças gigantes, lhamas e cavalos encontrados nas grutas calcárias e desaparecidos há cerca de 12 mil anos em função de alterações climáticas.
As pinturas da região são fortemente narrativas, uma característica da chamada tradição Nordeste e envolve cenas do cotidiano como sexo, parto, representações da flora e fauna, rituais místicos e caçadas. “A técnica era tão apurada que não se registra tinta escorrida em nenhum sítio”, observa Alan Jardel Negreiros, que já trabalhou com as escavações arqueológicas e virou guia. Os tons das pinturas são ricos: preto, branco, marron, amarelo, vermelho, cinza, prata e até um inusitado tom azul, sendo o primeiro sítio do mundo a registrar essa cor.
O retorno da fauna
Duas décadas atrás a fauna estava praticamente dizimada em função da caça intensiva. Levantamentos recentes têm mostrado um aumento significativo de espécies, inclusive algumas ameaçadas de extinção, como arara canindé e tamanduá-bandeira. Já foram identificadas 286 espécies de aves, entre elas arara, urubu-rei, jacu, nambu, águia chilena, seriema e papagaio. Dezessete espécies de serpentes e mais de 300 de flora.
Entre os animais existentes observa-se mocó, cotia, onça, sagüi, guariba, macaco-prego e raposa. As andorinhas migratórias, que se abrigam nas escarpas dos canyons e paredões de arenito, dão um espetáculo à parte ao entardecer. Acredita-se que a intensificação da vigilância e o alimento farto fornecido por centenas de fruteiras, herança das fazendas desapropriadas para formação do parque, sejam fatores preponderantes para o retorno da fauna.
Como um cabra da peste
Por trás da criação, estruturação e o elevado conceito do parque (ou à frente dele) sempre esteve uma paulista baixinha, de origem francesa e a coragem típica dos “cabra da peste” nordestinos, a lendária arqueóloga Niède Guidon, que chegou a área na década de 70.
As primeiras expedições, em colaboração com o governo francês, foram iniciadas em 1973, mas o parque só seria criado em 1979, a pedido dos pesquisadores, com o objetivo de preservar o acervo arqueológico e a caatinga.
Em 1986 foi criada a Fundham que agrega uma série de universidades e centros de pesquisas brasileiros e franceses. Há quase dez anos esta entidade assinou convênio de gestão conjunta com o Ibama, o que permanece até hoje. Entre os problemas locais observados estão a deteroriação de alguns sítios pela ação do tempo nas rochas areníticas e a ação de caçadores.
A dedicação incontestável de Niède transformou-a numa lenda viva daquelas bandas e lhe rendeu não só reconhecimento, mas também inimigos no velho estilo nordestino. Chegou a receber ameaças de morte. Peitou o agressor e saiu viva.
A mesma coragem parece acompanhar muitos dos seus aliados, mas a sorte nem tanto. É o caso de uma funcionária do parque que foi morta por um caçador (seu irmão) enquanto defendia a integridade do berço do homem americano.