Carlos Schneider, o colecionador de nascentes

26 de fevereiro de 2004

Preocupado com a crescente degradação dos rios de sua cidade natal, há trinta anos o empresário Carlos Frederico Afonso Schneider iniciou uma cruzada para proteger os mananciais do norte de Santa Cata





Cerca de 90% dos esgotos domésticos e industriais são despejados sem qualquer tratamento nos mananciais de água. 63% dos depósitos de lixos estão em rios, lagos e restingas.












Memórias de ferro e fogo


“A pior época que marcou minha vida foi quando comprei um pedaço de mata virgem no norte do Paraná, perto de Maringá, para formar uma fazenda de café, em 1950. Era uma mata virgem incrível, cheia de animais. Para se ter uma idéia, nós chegamos a pegar uma onça grande na porta da cozinha, que à noite comia nossas galinhas. Havia muita queixada. Havia peroba que, depois de derrubada, eu, com 1,82 metros, não conseguia ver por cima dela… Cedro, pau-marfim, peroba, tudo foi destruído por 50, 60 homens com machado. Era o costume da época. Todo o norte do Paraná foi destruído. Comia-se macacos na época, e se apareciam dez macacos, matava-se os dez para levar um. Havia um rio perto da nossa fazenda, o rio Ivaí. O peixe era tão abundante que nós tínhamos um rapaz meio índio para quem encomendávamos peixes de vários quilos. Pagávamos e ele trazia. Ele chegava a tirar dourados de 150 quilos… Vinha um pessoal de Londrina e de Maringá com caminhões, traziam canoas de tábuas e soltavam cargas de dinamite no rio. O rio ficava branco em cima de tanto peixe. Aí eles iam de canoa e só tiravam os peixes grandes, enchiam um, dois, três caminhões, de peixe. Os peixes menores iam embora rio abaixo… Quatro ou cinco anos depois, você não pegava mais nem uma piaba nele”.


Carlos Schneider, março de 2001


 


 


 


Ele é um bem-sucedido empresário de Joinville, cidade localizada no norte de Santa Catarina, a 172 km da capital, Florianópolis. Homem discreto, avesso a bajulações, o senhor Carlos Schneider comanda negócios que vão de uma indústria de parafusos a uma criação de búfalos. Aos 76 anos, no entanto, a atividade que mais mobiliza suas forças nada tem a ver com lucros, debêntures ou ações. Tem a ver com a natureza, ou melhor, com a conservação de cerca de 9,4 mil hectares de propriedades que acolhem inúmeras nascentes dos principais rios da região bem como remanescentes das diferentes fisionomias vegetais do domínio da mata atlântica em seu estado. Um patrimônio que o senhor Schneider considera “sagrado”.


Filho de um próspero comerciante, Carlos Schneider testemunhou, ao longo da vida, o custo ambiental que Joinville pagou para se tornar a maior e mais industrializada cidade catarinense. Sentado na sala de uma casa centenária em estilo enxaimel – característico da colonização alemã da região – encravada na Serra do Quiriri, ele se confessa preocupado. Recupera, com certa melancolia, reminiscências da destruição que o levou, há mais de 30 anos, a começar a adquirir áreas na zona rural para proteger seus recursos naturais. A água se tornou o foco privilegiado do que viria a ser sua cruzada conservacionista. “Quando eu era criança, fazíamos piquenique nas margens do rio Cachoeira. Tomávamos banho e víamos o fundo do rio; muita gente pescava ali. Algum tempo depois, já não tinha mais peixes e nem se via mais o fundo. Fui crescendo e vendo isso”. Rio que percorre a área urbana de Joinville, o Cachoeira e seus tributários têm hoje águas turvas e mal-cheirosas, destino do esgoto doméstico e de dejetos industriais da cidade. São rios moribundos.









Fazenda de Preservação Quiriri: fontes cristalinas e floresta atlântica


“Fazendas de preservação”


A Serra do Quiriri integra uma vasta cadeia de montanhas localizada a oeste do perímetro urbano de Joinville, com altitudes que atingem até 1500 metros. É nesta serra de florestas densas e mistas e de campos de altitude que se formam as nascentes que afluem para os dois rios que abastecem Joinville: o Cubatão, que fornece 64,9% da demanda hídrica da cidade, e o Piraí, que fornece os 35,1% restantes. 


Carlos Schneider recorda um fato, determinante para que voltasse suas atenções para o Quiriri. Na década de 70, uma empresa de reflorestamento – a Comfloresta, do Grupo Brascan – começou a adquirir milhares de hectares de terras na região. Entre 1974 e 80, a empresa substituiu cerca de 25 mil hectares de floresta atlântica por monocultura de pinus e eucaliptos para exportação. Os cultivos ocupavam (como ainda ocupam) encostas, topos de morros, nascentes e margens de rios, ignorando o disposto no artigo 2ª do Código Florestal (lei nª 4.771/65).


O empresário afirma que em poucos anos rios cristalinos perderam volume de água – em decorrência da destruição de dezenas de nascentes – e passaram a carregar grande quantidade de sedimentos – por causa da derrubada da mata ciliar. Lembra também que, num desses anos, a empresa envenenou deliberadamente centenas de aves silvestres sob a alegação de que destruíam as mudas recém-plantadas. “A destruição era grande. Não havia tempo a perder”, diz. 


Em 1983, ele adquiriu uma área de 290 hectares, entrecortada por alguns afluentes do rio Quiriri – um dos principais tributários do rio Cubatão. Meses depois, comprou outros 750 hectares contíguos ao norte da área anterior. Entre 1996 e 98, arrematou mais três propriedades, todas contíguas entre si, alcançando assim o divisor de águas, a cerca de 800 metros de altura. A esse polígono, com 2.121 hectares, deu o nome de “Fazenda de Preservação Quiriri”. Ainda na Serra do Quiriri, entre 1997 e 2000, Carlos Schneider comprou outros 3,6 mil hectares para proteger parte das nascentes do rio da Prata (outro afluente do Cubatão) e do Piraí. Por fim, em outubro de 98 conseguiu negociar a compra das áreas onde estão as nascentes do próprio rio Quiriri, batizando-as “Fazenda de Preservação Alto Quiriri”. 


Em menos de duas décadas, virou proprietário de 60% das nascentes do rio Quiriri, ou de 17% das águas captadas no rio Cubatão para atender Joinville. As más línguas afirmam que seu interesse pelas nascentes decorre do fato de a água estar se tornando uma commodity valorizada. Não é o que parece. Na lógica do senhor Schneider, receber pela água que conserva é justo na medida em que empresas de captação não terão que despender recursos para sua recuperação. “Não só comprar como conservar custa dinheiro. É preciso haver incentivos para que as pessoas invistam ali. Precisava que tivéssemos a propriedade da água para que nós a vendêssemos. Com o dinheiro, eu ainda iria comprar uma terra do lado. Para conservar”, explica.






Campos naturais do Alto Quiriri: espécies 
vegetais raras a 1.500 metros de altitude

Biodiversidade das serras é pouco conhecida


O empresário Carlos Schneider ainda está descobrindo a relevância do patrimônio biológico abrigado tanto na Serra do Quiriri como em suas outras propriedades localizadas na planície litorânea e no planalto interior de Santa Catarina. Se consideradas em seu conjunto, seus 9.400 hectares detêm amostras significativas de praticamente todos os ecossistemas e fisionomias características do domínio da mata atlântica, do mangue aos campos de altitude, passando por restingas e floresta ombrófila densa e mista – onde predomina a ameaçada araucária. 


Na verdade, o conhecimento científico sobre a diversidade biológica de toda a região serrana ainda é incipiente. Lúcia Sevegnani, bióloga e doutoranda em Ecologia pela Universidade de São Paulo, afirma que, por não haver centros de pesquisa especializados sobre esta parte do estado, pouco se conhece de sua dinâmica florestal. 


Segundo afirma, as serras do norte de Santa Catarina são singulares sob o ponto de vista botânico. Trata-se de uma área de montanhas altas que, por estarem próximas ao litoral, formam barreiras responsáveis por grande pluviosidade e por altas temperaturas. Estas condições são ideais para o desenvolvimento de espécies que não são encontradas em outras regiões do estado. “Conheci uma espécie de xaxim, chamado Marattia brasiliensis, ou xaxim-redondo, que ocorre no Paraná, mas não no resto de Santa Catarina. Deve haver bromélias e orquídeas características da mata atlântica que só devem existir ali”, prevê. É, segundo diz, “a região que abriga o contingente faunístico e florístico mais tropical do estado”.


As peculiaridades da vegetação das serras setentrionais de Santa Catarina interessam também ao Museu Botânico Municipal, de Curitiba (PR), que tem feito visitas aos campos naturais do Alto Quiriri. Seus pesquisadores estão interessados em reencontrar exemplares de espécies endêmicas coletadas em 1958 por uma expedição dos botânicos Raulino Reitz e Roberto Klein, que realizaram os maiores levantamentos existentes da flora catarinense. Em termos de fauna, a equipe responsável pela administração e pela vigilância dos 2.121 hectares da Fazenda Quiriri afirma haver lá dentro inúmeros exemplares de espécies ameaçadas de extinção, como jaguatirica, onça parda, veados, jacutinga, macucos, macaco-prego e bugios.


Sentimento de urgência


A preocupação com o destino de suas “fazendas de preservação” tem feito o senhor Schneider e a equipe que o assessora neste projeto a buscar idéias. Uma das possibilidades consideradas é transformar uma parcela da Fazenda Quiriri em um centro de recuperação e reabilitação de animais silvestres. Segundo a bióloga Gilian da Silva, consultora da equipe, isso atenderia uma demanda da Polícia Ambiental do estado, que não possui um espaço com estrutura adequada para a reintrodução de animais resgatados de caçadores.


Uma possibilidade paralela é firmar parcerias com institutos de pesquisa. Lúcia Sevegnani, que esteve visitando a Fazenda Quiriri semanas atrás, afirma querer propor um convênio com a Universidade Regional de Blumenau, onde leciona, para realizar, por exemplo, estudos sobre a estrutura das comunidades florestais e os processos dinâmicos das espécies que lá vicejam. 


São boas oportunidades, mas o senhor Schneider considera urgente garantir meios para combinar a perpetuidade da conservação das áreas com geração de renda suficiente para mantê-las. Está em busca de parceiros, nacionais e estrangeiros, para a conservação das águas e dos remanescentes de mata atlântica nas áreas que protege. “Há muito ainda por fazer, muitas áreas para conservar, mas nos faltam os recursos necessários”, afirma, algo aflito. O que mais teme é que atividades degradadoras cheguem antes dele.