Consumo de água: a indústria automobilística é mais eficiente do que a pesquisa agrícola
20 de fevereiro de 2004A crise da água está aí. Vamos continuar desperdiçando água na Terra e gastando bilhões de dólares para ver se a encontramos em Marte?
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Por que essa transformação positiva? Medo do fim das reservas petrolíferas, pressão do consumidor por menores preços dos combustíveis, pressão dos defensores do meio ambiente? Não importa a razão, o fato é que, atualmente, os produtos da indústria automobilística, no geral, são melhores conversores de um bem finito denominado petróleo. Mais quilometragem com menor quantidade de insumo. E na área de produção vegetal? Como anda o consumo de água dos vegetais ao longo do seu processo de produção? De certa forma, a água é o principal “combustível” das plantas. Como anda o processo de conversão do bem finito água doce em produto final: alimentos e fibras?
No deserto, onde este “combustível” é escasso, as folhas das árvores não podem ser macias e suculentas. Ocorrem mudanças radicais, como os cactos que tem uma superfície cheia de “espinhos” como mecanismo de sobrevivência à escassez de água. Enfim, os “motores” das plantas do deserto foram adaptados à escassez do combustível água.
O ser humano aprendeu que produzir alimentos perto de fontes de água facilita enormemente a sua missão biológica de multiplicar a espécie.
Desmatar, plantar e colher – Esgotada a fase meramente extrativista, a humanidade passou a utilizar os conhecimentos gerados pela denominada pesquisa agrícola para atender as crescentes necessidades de alimentos e fibras. Neste processo de evolução da produção de alimentos, a ampliação da área cultivada foi o passo mais fácil, considerando os recursos abundantes que podiam ser conquistados nas novas fronteiras agrícolas. O processo era fácil: desmatar, plantar e colher.
Os agricultores passaram a ter menor facilidade em expandir a produção de alimentos via incorporação de novas áreas, não só pelo esgotamento na fronteira agrícola na área de florestas, mas também pela pressão de conservação do meio ambiente. Esta situação contribuiu para a pesquisa agrícola buscar maiores produções, nas áreas já em produção, via o caminho do aumento da produtividade por superfície de área. Não foi difícil. Entre os instrumentos necessários a esta tarefa estão: sementes com maior potencial genético de produção; o uso isolado ou combinado de maquinaria agrícola, de adubos derivados da indústria química, dos denominados defensivos agrícolas (inseticidas, fungicidas,…), dos herbicidas, da irrigação etc.
A produção de alimentos deixou de ser uma atividade de baixo consumo de produtos e insumos da cidade para ser uma ávida consumidora de produtos industrializados. A agricultura não conquistou a cidade. A indústria invadiu e conquistou a área rural. Os agricultores, na busca de novas tecnologias, tornaram-se dependentes de tecnologias e de fatores técnicos econômicos até então desconhecidos ou pouco importantes para o meio rural.
Se o objetivo era de aumentar a produção de alimentos, o modelo deu certo. De certa forma, apesar do crescimento da população mundial há grandes estoques de alimentos. Por outro lado estes estoques existem porque nem toda a população está comendo, por falta de recursos, o que deveria comer.
Sabe-se há bastante tempo que este modelo precisa ser reformulado. Não pode ser tão dependente de tecnologias ultrapassadas. Tecnologias agressivas a um elo fraco desta cadeia de produção: o meio ambiente.
O fator água é hoje, e será ainda mais no futuro, o grande elo frágil na cadeia de produção. Cerca de 70% da água doce consumida no mundo é utilizada pela agricultura. As fontes de suprimento estão esgotadas nas atuais áreas agrícolas. Será impossível aumentar, como no passado recente, a produtividade das áreas de produção de vegetais com as tecnologias atualmente utilizadas. Tecnologias geradas em sua maioria pressupondo que o fator água não seria o grande fator restritivo à produção. Tecnologias em vias de extinção, diante do agravamento do quadro de esgotamento das fontes de água na superfície e rápido esgotamento de lençóis subterrâneos. Será preciso inovar, buscar novos caminhos.
Consumo de água: os velhos automóveis e a velha pesquisa agrícola
Não basta mais produzir sementes que propiciem altas produtividades de grãos a preço de um altíssimo consumo de água.
Entre as ações que deverão ser desenvolvidas uma é fundamental: a mudança de postura na pesquisa agrícola. Seja na área de melhoramento ou na de práticas culturais. O trabalho complicou. Não basta uma planta apresentar boas respostas à adição de insumos, principalmente adubos. É preciso que esta planta não necessite a mesma quantidade de água que hoje utiliza para produzir um quilo de grão ou de massa verde.
Não basta mais produzir sementes que propiciem altas produtividades de grãos ou de massa verde, a preço de um alto consumo de água.
Precisamos de “motores” mais eficientes, que gastem menos combustível. Que gastem menos água para produzir.
A agricultura está cheia, repleta, de plantas com “motores” estilo dos velhos V8. Esta cheia de tecnologias, na área de práticas culturais, esbanjadoras de água. Sob o ponto de vista do uso eficiente da água a agricultura do ano 2001, comparando com a indústria automobilística, ainda não entrou na era da injeção eletrônica. Ainda está na fase dos grandes carrões da década de 60, hoje autênticos representantes de uma era de desperdício energético.
Senhores pesquisadores: acordem para o mundo da escassez de água. Aperfeiçoem os “motores” agrícolas, melhorem a capacidade de conversão água-produto final (grão, massa verde). Não temos os milhares de anos que a natureza levou adaptando-se às mudanças no meio-ambiente Quanto temos? Com o enorme crescimento da população mundial, com o aumento do consumo de água per capita, maior necessidade de irrigação na agricultura, será que teremos 10 ou 20 anos até explodir uma grande crise de abastecimento? Creio que não.
Embora ainda haja alguma margem técnica para aumentar a produção global de alimentos, considerando o aumento previsto da população mundial, o esgotamento das fontes de suprimento de água doce na superfície e os problemas que já estão ocorrendo com as águas de origem subterrânea, é certo que haverá uma crise mundial de suprimento de alimentos. Por falta de água.
O novo enfoque, e certamente o principal, que a pesquisa agrícola deverá dar aos seus trabalhos deverá objetivar a economia de água ao longo da cadeia de produção.
Proteção ao meio ambiente, diminuição de custo por unidade produzida de alimento, desenvolvimento sustentável, são exigências da sociedade atual.
Não se devem esperar milagres na área de geração de tecnologias poupadoras de água. Também não se espera que seja gerada uma semente de milho com a exigência de água de uma planta de deserto e uma produtividade semelhante a uma lavoura conduzida embaixo de um moderno pivo de irrigação. Para iniciar, tecnologias que permitam uma economia de 5% de água nos processos de produção, responsáveis por 70 % dos gastos totais de água doce no planeta, é um resultado muito bom. Ainda é pouco, mas será um começo.
O certo é que a pesquisa agrícola já deveria ter iniciado, em larga escala, estes trabalhos há vários anos. Até as agências financiadoras de projetos de pesquisa agrícola deveriam colocar entre suas prioridades linhas de pesquisa neste sentido.
A crise da água está aí. Será que vamos continuar desperdiçando esse tesouro na Terra e tentando ver se encontramos água na Lua ou em Marte?
*Roque Tomasini é pesquisador da Embrapa Trigo e operador de ecoturismo rural. <[email protected]>