Anatomia de um crime ecológico
26 de fevereiro de 2004Quem vai herdar o imenso passivo ecológico do DNER nos 4 cantos do País?
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Uma erosão de dimensões gigantescas, que aumenta ano a ano, a partir da retirada de cascalho para a construção do leito da BR-251, a exatos oitenta quilômetros do Palácio do Planalto, em Brasília. Este é o resumo da história de mais um grave crime ecológico, cometido há quase vinte anos e de autoria perfeitamente conhecida. Seu autor é o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER que, a caminho do túmulo, após décadas de atuação marcada por desmandos de toda ordem, deixa centenas de chorosos viúvos corruptos, empreiteiros desconsolados e um prontuário onde está registrada sua herança traduzida em dívida impagável para com a sociedade brasileira: o seu passivo ecológico.
O cenário do crime parece ter sido escolhido para que ele nunca fosse descoberto. Trata-se de local afastado do leito da rodovia, em terras invadidas por posseiros sem nenhuma condição de reagir à fúria das enxurradas que já levaram cerca de 40% das terras úteis da propriedade. Endereço do crime: BR-251 – Brasília-Unaí – Km 05, à esquerda, município de Cristalina-GO.
Crime Ecológico
Crescendo numa velocidade incontrolável, a vossoroca que se formou no local contribui para o que o nosso Código Penal define como “crime continuado”. É que, anualmente, milhares de toneladas de terra deslizam por entre as grotas da chapada local deixando para traz um desalentador rastro de destruição. Primeiro, a erosão fez desaparecer do mapa muitas das pequenas nascentes que contribuíam para a formação do Córrego Coqueiros. O que resta deste contribui, com pouca água e muita lama, para o Córrego dos Moraes que, por sua vez, ajuda na destruição de veredas e das nascentes do histórico Córrego do Arrependido, na divisa de Minas com Goiás.
Mas, o desastre não pára por ali. Uma visita ao local nos permite refletir e entender onde estão as raízes da destruição dos nossos grandes rios. O Córrego do Arrependido é afluente do Rio Preto que contribui para o Paracatu, que despeja suas águas no velho São Francisco que, por sua vez, como diz a canção “vai bater no meio do mar”. Cheio de lama produzida por um crime ecológico praticado a quase dois mil quilômetros de distância e a menos de 80 quilômetros do poder central da República.
A denúncia
A denúncia chegou ao conhecimento da Folha do Meio Ambiente por iniciativa do jornalista Leonel da Mata, proprietário de uma fazenda diretamente prejudicada pelo que ele mesmo chama de “descalabro ecológico”. Ele relata que acompanha o problema há oito anos, tempo suficiente para uma série de iniciativas de resultados plenamente nulos. Segundo Leonel já foram feitas três queixas formais e por escrito ao IBAMA, uma quarta à Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, a quinta junto à ANA – Agência Nacional de Águas. Nenhuma delas, revela ele, resultou sequer em um telefonema de retorno por parte dos responsáveis pelo controle e fiscalização do meio ambiente. Ironicamente Leonel inclui todos estes órgãos e seus responsáveis no rol dos “cúmplices do DNER na consumação do crime”.
Moradores mais antigos do local testemunham a lenta agonia das águas naquele pedaço de cerrado ocupado hoje por extensas plantações de soja, milho e feijão. Relembram os bons tempos das pescarias de lambaris, bagres, traíras e piaus nas águas que já foram fartas. Pequenos produtores trocaram o local pela periferia de Brasília pelo simples fato de que não tinham mais como viver sem água. Outros agricultores da região vêm ameaçados seus projetos de irrigação e, também, seus incipientes projetos de piscicultura, comprovadamente, uma boa alternativa de renda e empregos para os proprietários da região.
Pela absoluta falta de assessoria e orientação os interessados diretos na solução do problema (de resto toda a sociedade) não têm a menor idéia, e muito menos recursos, de como combatê-lo. “O que se imagina é que serão necessárias centenas de horas de trator, milhares de mudas de árvores nativas do cerrado e outras iniciativas técnicas para conter a erosão. Agora que o governo anuncia a extinção do DNER só podemos desejar que a terra lhe seja leve e, de preferência, terra das milhares de erosões que ele provocou ao longo dos seus 64 anos de existência”, lembra Leonel da Mata. Daqui para a frente só resta à sociedade brasileira encontrar resposta para algumas perguntas. Quem vai herdar o passivo ecológico da autarquia? Quem vai assumir herança tão trágica espalhada pelos quatro cantos do país?