ANA adverte: falta d’água pode seguir apagão

18 de fevereiro de 2004

Para Jerson Kerman o grande desafio é a gestão da água no Nordeste e no Centro-Oeste

     Na hipótese da introdução dos apagões, considerada medida extrema pelo governo federal, no período em que for feito o desligamento geral, cujo prazo estimado poderá ser de quatro a seis horas por cada apagão, as bombas utilizadas pelas companhias estaduais de abastecimento deixarão de funcionar. Em conseqüência, nesse período, a água não será bombeada para as adutoras, aumentando o transtorno da população, pois à falta de luz se somará à de água.


Outros prejuízos – Mas não será apenas o consumidor residencial de água que sofrerá na eventualidade dos apagões. As indústrias que consomem intensivamente água em seu processo produtivo, como a indústria automobilística e a de mineração, também terão uma redução significativa da oferta de água. Porém o prejuízo maior é dos projetos de irrigação, cuja água, qualquer que seja a tecnologia de adução – pivô central, aspersores ou gotejamento – também é bombeada por equipamentos que utilizam energia elétrica.


No Nordeste, os maiores projetos de irrigação se localizam nos Estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte, e naqueles banhados pelo rio São Francisco, envolvendo não apenas a produção agrícola, mas também a piscicultura. No Centro-Oeste, os mais prejudicados serão os projetos de irrigação de fruticultura no Jaíba, no norte de Minas, e os de soja e café no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e oeste da Bahia. 


Mas os prejuízos não param por aí. O transporte aquaviário também pode ser prejudicado, e muito, com a crise de energia. Kelman cita o exemplo do reservatório de Ilha Solteira, no rio Paraná, por onde é feito o escoamento da produção de soja de Goiás e Mato Grosso do Sul para o porto de Santos, em São Paulo. Estimativas indicam que, até o final do ano, deverão ser transportados por esse corredor aquaviário pelo menos 1,5 milhão de toneladas de grãos destinadas à exportação.






A difícil gestão


Com poucos meses de operação, a Agência Nacional das Águas – ANA – enfrenta, em condições extremamente adversas, seu permanente e maior desafio: a gestão das águas.


E o “laboratório” onde esse desafio se fará de forma mais intensa é justamente o Nordeste.


Para começar, é preciso mudar a mentalidade e as políticas tradicionais e superadas de gestão de águas na região.


O presidente da ANA, Jerson Kelman, acha que é preciso otimizar a utilização de um bem normalmente escasso no Nordeste, devido às freqüentes estiagens, e muito mais agora, com uma das maiores secas que já atingiram os nordestinos.


Ele sustenta que é preciso repensar projetos de irrigação que utilizam água para produzir arroz, feijão e milho, culturas de subsistência, estabelecendo-se prioridades que começam com a garantia do abastecimento de água para a população.


A água utilizada para irrigar um plantio de arroz do tamanho de um campo de futebol é a mesma necessária para atender às necessidades de 400 pessoas.


Há alternativas em discussão. Uma delas seria a suspensão temporária da cultura de subsistência irrigada, ou pelo menos da cultura de produtos como o arroz, que exigem muita água.


Neste caso, os produtores receberiam uma indenização correspondente à perda da safra, cujos recursos, totais ou em parte, viriam da receita da venda da água aos consumidores.


Um momento de grave crise de oferta de água, como o atual, seria o mais apropriado para encaminhar soluções como essa. A ANA já está discutindo com o governo do Ceará uma forma de adotar essa saída para os produtores de arroz irrigado.


Se os entendimentos evoluírem positivamente, servirão de parâmetro para negociações idênticas com outros governos e outros produtores nordestinos. O objetivo final dessa estratégia é, ao longo dos próximos anos, substituir essas culturas de irrigação por outras, ou produzi-las apenas em regime de sequeiro, ou seja, com o aproveitamento das chuvas, mesmo escassas.


Neste caso, a água retirada da irrigação seria prioritariamente destinada ao abastecimento humano e, secundariamente, ao atendimento aos animais, importante fonte de sustento para a população rural do Nordeste.


Nas regiões do interior nordestino, onde não há água de irrigação, o abastecimento humano seria assegurado através de um programa de construção de cisternas que receberiam água fornecida pelo governo através dos caminhões-pipa, e água da chuva, quando houver.


A questão é: se a água do reservatório for liberada para a geração de energia por Ilha Solteira, que responde por 12% do consumo médio mensal de energia do Brasil, faltará água para viabilizar o transporte de soja.


A alternativa é convencer os produtores de soja a anteciparem o transporte fluvial do produto no trecho do lago de Ilha Solteira, de tal forma que, a partir de setembro próximo, a água do reservatório seja destinada exclusivamente à geração de energia.


Esse problema existe não apenas em relação a Ilha Solteira, mas afeta todos os reservatórios considerados estratégicos, no Sudeste e no Centro-Oeste.


Chuva e investimento – Senadores e deputados questionaram o presidente da ANA sofre o efetivo papel da estiagem na formação do atual quadro de escassez no Nordeste, quando Kelman disse que já houve secas piores do que a atual.


Exibindo gráficos e transparências, ele demonstrou que, no período entre 1952 e 1955, quando o Nordeste registrou a maior seca do século passado, o lago da barragem de Sobradinho acumulou 274 metros cúbicos de água por segundo. Na crise atual, o volume acumulado tem sido de 341 metros cúbicos de água por segundo.


Isso não quer dizer – acrescentou Kelman – que a crise atual não seja uma das mais graves da história, talvez a maior dos últimos 70 anos. A barragem de Sobradinho está com um volume de água equivalente a apenas 28% da sua capacidade, e as previsões mais otimistas indicam que, mantido o quadro hidrológico atual, o volume recebido por Sobradinho poderá reduzir-se a 242 metros cúbicos por segundo.


Como a demanda de energia hoje é várias vezes superior a do período 1952/1955, os efeitos de um racionamento, hoje, são bem mais devastadores quanto os de meio século atrás.


A crise na açudagem – Mas o quadro de escassez de água não se revela apenas nos reservatórios das hidrelétricas alimentadas pelo rio São Francisco. A situação é até mais grave nos Estados não banhados pelo São Francisco, onde a água disponível vem dos açudes. Dos seis maiores açudes nordestinos, apenas os de Curemas, na Paraíba, com 57% de sua capacidade, e Armando Ribeiro, no Rio Grande do Norte, com 56% de sua capacidade, estão em situação mais ou menos confortável.


Os outros estão operando com sua bacia hidráulica reduzida, havendo casos, como os açudes de Banabuiu e Poço da Cruz, no Estado do Ceará, que operam com 8% e 4% de sua capacidade, respectivamente.