Comitê de Bacia

17 de fevereiro de 2004

O que é, como é formado, como funciona e para que serve

 







Raymundo Garrido


Folha do Meio – O que são comitês de bacia hidrográfica?


Raymundo Garrido – São corpos colegiados formados por representantes dos diversos segmentos que participam da gestão dos recursos hídricos. Em outras palavras, são formados por usuários da água, representantes dos poderes executivos e a sociedade civil organizada. É da tradição da gestão de recursos hídricos estabelecer um paralelo entre a bacia hidrográfica e um condomínio de apartamentos.


As reuniões de comitês, guardadas as diferenças, são como reuniões de condomínio, de cujas decisões se deve ocupar o síndico que, diretamente ou através de serviços de terceiros, põe em prática o que ficou decidido pelos condôminos.


No caso dos comitês, o papel do síndico e dos terceiros é desempenhado pela agência de água, ou agência de bacia como se pretende seja denominada, para evitar a confusão com o nome da ANA que é Agência Nacional de Águas. A gestão da bacia é, pois, feita pelo binômio comitê-agência. É como se o comitê fosse o legislativo e a agência fosse o executivo. Aliás, os comitês são também denominados “parlamentos das águas”.


Folha do Meio – Por que adotou-se a palavra comitê para esses colegiados?


Garrido – O Brasil assimilou a terminologia francesa, porque nosso sistema teve inspiração no modelo daquele país. A Espanha, por exemplo, chama-os Confederações Hidrográficas ou, genericamente organizações de bacias, com a diferença que uma confederação hidrográfica realiza, simultaneamente, os papéis de um comitê e de uma agência de bacia. 


Em verdade, foi por perseguir o modelo francês que acabamos na agência de água. Na França, no início, essas agências eram chamadas “agências financeiras de bacia”, mais tarde somente “agências de bacia” e por último “agências de água”. No final da discussão do Projeto de Lei no 2.249/91, o texto denominava essas agências como “agências de bacia”. 


Na redação final, entretanto, o relator da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias optou pela nomenclatura francesa, razão porque a Lei Federal no 9.433/97 adotou o nome de “agência de água”. Todavia, o Projeto de Lei no 1.616/99 sugere a alteração para agência de bacia. Finalmente, as leis estaduais em geral optaram por “agência de bacia”, o que leva a que, dentro do Brasil ainda tenhamos duas denominações para o mesmo tipo de organização. 


Folha do Meio – Qual o papel do comitê de bacia?


Garrido – Em primeiro lugar, nos comitês o debate é aberto, a discussão é livre, todos têm liberdade para expor suas idéias. Daí, a primeira atribuição de um comitê é a promoção do debate sobre as questões de interesse da bacia, articulando a participação dos agentes. Em segundo lugar, mas não menos importante, o comitê deve antecipar-se à ocorrência de conflitos, sobretudo entre os usuários da água. Mas, quando um conflito já está instalado, cabe ao comitê, em instância administrativa, arbitrá-lo. 


Uma prerrogativa do comitê é a de dar aprovação e acompanhar a execução dos planos de recursos hídricos, que são o documento programático do setor no espaço da bacia. É ainda o comitê de bacia que define as vazões e acumulações consideradas insignificantes para isenção da obrigatoriedade da outorga e, consequentemente, da cobrança. Finalmente, também faz parte das competências dos comitês a definição dos mecanismos de cobrança, sugerindo ao CNRH os preços a serem praticados, e a promoção do rateio de custos das obras de interesse comum ou coletivo.


Folha do Meio – Como podem ser postas em prática as decisões dos comitês?


Garrido – Os comitês de bacia têm uma secretaria executiva que é a agência de bacia. A agência se encarrega da tarefa operacional do comitê. As atribuições das agências incluem o acompanhamento do balanço entre disponibilidades e demandas por água, a administração do cadastro de usuários da água, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e a administração financeira desses recursos, neste caso por delegação do outorgante.


Além disso, cabe à agência “fazer” toda a engenharia da bacia, emitindo pareceres, elaborando ou contratando e analisando projetos a serem executados com os recursos da cobrança; fazer convênios, elaborar a proposta orçamentária para o exercício financeiro, desenvolver estudos técnicos, elaborar o plano de recursos hídricos, propor o enquadramento dos corpos d’água em classes de usos preponderantes, estudar e propor os preços a serem cobrados, o rateio de custos, são, também, funções da agência. Conforme se percebe, a agência de bacia torna concretas as decisões do comitê, sendo subordinada a este. Aliás, é uma das poucas formas de subordinação existentes no SNRH.


Folha do Meio – As decisões dos comitês têm caráter normativo, deliberativo ou consultivo?






Algumas agências podem se subordinar a mais de um comitê. Mas o contrário não é verdadeiro: não existirão comitês ligados a mais de uma agência de bacia.


Garrido – Por decisão do CNRH, os comitês são colegiados com atribuições normativas, deliberativas e consultivas a serem exercidas na bacia hidrográfica. Ao se referir à bacia, esta pode ser de rios de primeira, segunda ou terceira ordem, ou seja, os comitês podem ser criados até em bacias (que são sub-bacias) de tributário de um tributário do rio principal (rio de primeira ordem). A limitação à terceira ordem (Art. 37, inc. II, da Lei Federal no 9433/97), faz com que algumas bacias ainda sejam muito grandes em termos de território, o que acontece, principalmente, na Amazônia. Esta circunstância pode dificultar a tarefa do gerenciamento. Por isso, quero crer que, no futuro, o referido artigo venha a ser revisto.


Folha do Meio – Como é a participação dos segmentos interessados nos comitês?


Garrido – É no comitê que se dá a verdadeira gestão participativa dos recursos hídricos. De sua composição participam os poderes executivos, os usuários da água e a sociedade civil organizada. 


A Resolução nª 5, do CNRH, estabeleceu um percentual fixo de participação dos usuários, de 40% dos votos, ficando os quinhões dos poderes executivos e da sociedade civil para negociação. Houve um grande debate no Conselho para que se chegasse a essa definição. De fato, o usuário da água é o “motor” do processo, pois se não houver utilização dos recursos hídricos, não haverá, em grande medida, trabalho de gestão a realizar. Imagine-se uma bacia desabitada: os problemas físicos que ocorrerem na mesma serão solucionados pela própria natureza que vai se ajustando às novas situações, buscando um novo estado de eqüilíbrio, mediante um processo chamado homeostasia. 


Quanto à divisão dos 60% restantes, a serem negociados entre a sociedade civil e os poderes executivos, a mesma Resolução nª 5 limitou os poderes executivos, tomados em conjunto, a 40%, o que implica um mínimo de 20% para a sociedade civil. É provável que nas regiões onde a sociedade civil for mais ativa, esta consiga um percentual maior, achatando o dos poderes executivos.


Folha do Meio – Que diferença há entre as estruturas dos comitês e das agências de bacia?


Garrido – A estrutura de um comitê não tem a disciplina que terá a estrutura de uma agência de bacia. Isto é uma decorrência natural dos tipos de atividades de um e de outro. 


Enquanto o comitê é um colegiado para avaliar, debater e decidir, cabe à agência a tarefa executiva. Por isto mesmo, os comitês não limitam seu tamanho, nem máximo nem mínimo, afinal um parlamento não tem problema de economia de escala. Entretanto, as organizações do tipo agências de bacia, executivas que são, devem se preocupar com suas respectivas estruturas. Elas não podem ser nem tão grandes que se inviabilizem por ingressar no estágio dos rendimentos decrescentes (curva envoltória da economia do agente econômico), nem tão pequenas que não possam dar conta sequer de seus custos fixos. Ademais, a estrutura de uma agência é feita de níveis hierárquicos bem definidos, com ligações de linha, subordinação e assessorias. 






Para administrar bem os recursos hídricos, deve haver harmonia entre os poderes executivos federal e estaduais.


A agência de bacia terá, portanto, um conselho de administração, uma diretoria colegiada e departamentos afins. No caso dos comitês, o que se tem é um presidente, um secretário e membros. Finalmente, considerando que a agência de bacia tem limitações quanto a seu tamanho, por limites mínimo e máximo, pode suceder que algumas agências venham a se subordinar a mais de um comitê, sobretudo comitês de bacias de porte pequeno ou de reduzido nível de atividade. Mas o contrário não é verdadeiro, ou seja, não existirão comitês ligados a mais de uma agência de bacia.


Folha do Meio – Como é que fica a questão dos dois domínios e os tipos de comitês?


Garrido – A existência de dois domínios para os recursos hídricos cria uma situação algo peculiar, que é o fato de várias bacias somente terem corpos d’água de domínio estadual, submetendo-se, portanto, à organização administrativa do estado a que pertencem. Ora, como os estados têm autonomia administrativa, os comitês de bacia cujos corpos d’água sejam inteiramente de um certo estado terão que seguir os formatos institucionais definidos por esse estado. 


Embora tenha tudo para dificultar a implementação do SNRH, essa circunstância tem sido, desde a promulgação da Constituição de 1988, um fator de estímulo à articulação das duas esferas de poder executivo. 


O que é importante assinalar é que, se a bacia com todos os corpos d’água estaduais não for tributária de um rio de domínio da União, ela estará subordinada aos dispositivos legais daquele estado, que é autônomo para se organizar administrativamente. Mas, quanto às normas gerais da legislação federal, mesmo essas bacias de corpos d’água inteiramente estaduais deverão segui-las. Aí está a verdadeira grandeza do desafio de administrar os recursos hídricos do País, pois os dois domínios implicam a necessidade de harmonia entre os poderes executivos federal e estaduais. 


A SRH e a ANA já discutem, por sugestão do Dr. Jérson Kelman, em caráter preliminar, a possibilidade de, nas bacias onde se fizerem presentes os dois domínios, dar-se à agência de bacia um formato institucional que congregue o interesse comum desses domínios, construindo-se, assim, a verdadeira unidade hidrográfica.


Folha do Meio – Até que tamanho de bacia se pode formar um comitê?


Garrido – Conforme já comentado em resposta anterior, a Lei Federal no 9433/97 (Artigo37) estabeleceu que podem ser criados comitês para atuarem: (1) na totalidade de uma bacia (aqui entendida como bacia de rio de primeira ordem); (2) na sub-bacia hidrográfica de tributário do curso d’água principal da bacia (de primeira ordem), ou de tributário desse tributário; e (3) em grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas.


Isto significa afirmar que não há propriamente um tamanho de bacia, nem máximo nem mínimo, para se formar um comitê. No entanto, houve um grande debate no passado, em São Paulo, do qual a conclusão mais concreta a que se chegou foi a de que o módulo confortável (parcela de bacia respeitado o critério de divisores de água) para se administrar recursos hídricos seria aquele em que o técnico ou gestor pudesse se deslocar em toda a sua extensão, durante o dia, e se recolher em casa ao final do expediente. Esta condicionante, em termos de deslocamento rodoviário, com boas estradas, leva a uma área de entre 50 mil e 60 mil quilômetros quadrados.






Veja o Consórcio do Piracicaba. Nesses anos de atuação ele construiu estações de tratamento de efluentes e apoiou a tarefa da gestão do uso da água.


Tal debate, não tomado em consideração quando da tramitação das leis federais (9433 e 9984), pode ser que volte à tona, em futuro, quando os trabalhos de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos ganharem uma dimensão maior. A experiência da ANA é que poderá confirmar ou infirmar esta assertiva. 


A Amazônia, onde bacias de tributários de tributários do rio principal são também de grande porte, poderá indicar a necessidade de uma subdivisão em parcelas menores, ou seja, admitindo a formação de comitês até o rio de quarta, ou mesmo de quinta ordem. 


A verdade é que bacias muito grandes têm realidades diferentes ao longo de seu território e isso dificulta o trabalho de gestão, mesmo que a hidrologia e a hidrogeologia sejam as mesmas em qualquer ponto da bacia. Temas como cobrança, outorga, mercados de água, estão muito ligados com o meio antrópico, o que recomenda uma subdivisão da bacia em módulos mais confortáveis quando o dispositivo legal assim não o permitir. E esta subdivisão poderá afetar o tamanho dos comitês.


Folha do Meio – Comitê se refere a bacia hidrográfica. Mas pode também se ligar com o problema das águas subterrâneas?


Garrido – Claro que sim. A bacia compreende o seu solo, o que está acima do mesmo e o seu sub-solo. O que é preciso aclarar, na própria legislação brasileira, é o problema das águas subterrâneas que são outorgadas pelos estados, por serem de domínio destes, mas que obedecem à legislação do setor mineral quando o tratamento do problema está relacionado com a pesquisa e lavra de água mineral, termal, gasosa, potável de mesa e destinada a fins balneários.


Nesse caso, a legislação é a contida nos decretos leis nos 227/67 e 7841/45, e a gestão está entregue ao Departamento Nacional da Produção Mineral. Apesar dessa legislação específica, algumas engarrafadoras de águas minerais também solicitam a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, fato que merece, no mínimo, uma revisão, para evitar que o agente econômico privado tenha que enfrentar burocracia adicional desnecessariamente.


Por isso mesmo, o Ministro Sarney Filho lançou o Programa de Águas Subterrâneas, no Dia Mundial da Água, em março desse ano, objetivando promover a articulação das políticas estaduais de recursos hídricos com a da União.






Enquanto o comitê é um colegiado para avaliar, debater e decidir, cabe à agência a tarefa executiva. A agência de bacia concretiza as decisões do comitê.


Folha do Meio – Qual a diferença entre comitê e consórcio intermunicipal de recursos hídricos? Um substitui o outro?


Garrido – Conforme já referido, o comitê é um colegiado que promove o “governo” da bacia, com o apoio de uma agência, dita de bacia. Sua atuação e as características de sua estrutura orgânica foram comentadas em respostas anteriores. Quanto aos consórcios intermunicipais, estes são classificados na legislação (Lei Federal no 9433/97, artigo 47) como organizações civis de recursos hídricos. 


Há muitas vantagens na atuação de um consórcio. Uma delas é o poder político, vez que entre seus membros estão os prefeitos, ou seja, são agentes que têm acesso à assembléia legislativa, ao governador, ao Congresso Nacional e ao Presidente da República. Em segundo lugar, as prefeituras costumam investir nas bacias, contribuindo para a gestão dos recursos hídricos. Veja-se, por exemplo, o quanto já fez o Consórcio do Piracicaba nesses anos de atuação, construindo estações de tratamento de efluentes, apoiando a tarefa da gestão do uso da água sob as mais diversas formas de atividades em que o Consórcio entra com recursos financeiros e logísticos. A história do Consórcio do Piracicaba é um exemplo de dedicação à causa dos recursos hídricos.


Mas os consórcios são associações livres de municípios, que podem entrar e sair dos mesmos a qualquer momento. Isto traz, em conseqüência, dificuldade em obter, quando necessário, empréstimos bancários, pois a constituição das garantias é prejudicada pela liberdade de cada município poder a qualquer momento abandonar o consórcio. A experiência brasileira tem demonstrado que essa saída pode ocorrer, sobretudo quando o município é excêntrico na geografia da bacia, situando-se longe dos leitos dos principais rios, para onde se canalizam habitualmente as benfeitorias. 


Vale lembrar que os consórcios não substituem comitês e comitês não substituem consórcios. Seus papéis são diferentes e complementares. Oportuno tratar dessa questão, para afirmar que os consórcios se vêm tentados, às vezes, a se transformarem em agências de bacia. A razão é clara: por essas agências passará o dinheiro da cobrança. Mas, não vale a pena! O desaparecimento eventual de um consórcio abrirá uma enorme lacuna que somente trará prejuízos ao gerenciamento dos recursos hídricos.






A familia não está necessariamente interessada em saber se o esgoto é tratado antes de ser devolvido ao curso d’água. A ela importa que o esgoto foi coletado e afastado.


Folha do Meio – Qual o ritual que deve ser seguido para a constituição de um comitê de bacia?


Garrido – Pela Resolução do CNRH no 5, é preciso que haja adesão de três das instâncias seguintes: secretários estaduais de recursos hídricos de pelo menos dois terços dos estados banhados pela bacia, aí incluído o Distrito Federal; pelo menos 40% de municípios da bacia; pelo menos três entidades de usuários da água; e, pelo menos, dez entidades das organizações civis de recursos hídricos. Os interessados encaminham o pleito ao CNRH, acompanhado de justificativa circunstanciada e da indicação da diretoria provisória.


Esses elementos passam pela câmara técnica competente que, uma vez os aprovando, recomenda a discussão e votação em plenário. Aprovada no Conselho, a proposta é encaminhada para Decreto Presidencial.


Folha do Meio – Que relações de subordinação podem ser identificadas entre comitês, agências, consórcios e associações intermunicipais?


Garrido – Em termos de subordinação, o que se pode afirmar é que todos os integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos se subordinam ao CNRH, e que as agências de bacia são subordinadas a comitês de bacia. Nada mais se pode afirmar, pois a legislação não estabeleceu qualquer outra relação de subordinação. É por isto que raramente se esboçam organogramas para esse sistema. Trata-se, pois, de um sistema verdadeiramente sui gêneris, no qual, mais relevante do que subordinação é a participação. Quando muito, aparecem alguns fluxogramas para indicar relações entre as atribuições das instituições que integram o SNRH.


Folha do Meio – Que relação existe entre comitê e o setor de saneamento?


Garrido – Existe uma relação prática muito lógica. O comitê é a instituição mais vigilante a respeito da necessidade de o saneamento cumprir o seu ciclo completo. Conforme se sabe, no Brasil, o abastecimento d’água alcança invejáveis 92% de cobertura do serviço. 


A coleta de esgotos urbanos chega a 38%, mas o tratamento não passa de 12%, sendo de 18% se se considerarem apenas as zonas urbanas. É natural que o abastecimento tenha chegado primeiro à quase universalidade do serviço. Como não houve recursos para que tudo fosse feito ao mesmo tempo, o abastecimento foi a prioridade, até porque sem água não haveria o que esgotar. 






Os comitês são colegiados, destituídos de personalidade jurídica, é verdade, mas têm vontade própria. E que vontade! Pois suas decisões são normativas, consultivas e deliberativas.


Em segundo lugar, veio a coleta para, ao final trabalhar-se na fase do tratamento. Mas é também de se considerar que a unidade familiar desempenha importante papel nesse contexto, visto esta luta pela necessidade de ter água em casa.


Igualmente, a unidade familiar advoga a necessidade de os esgotos serem coletados, caso contrário terão que fazer fossas sépticas que, periodicamente têm que passar por manutenção, com desconforto para o domicílio. Mas a família não está necessariamente interessada em saber se o esgoto, depois de coletado, é tratado antes de ser devolvido ao curso d’água. A ela importa que o esgoto foi coletado e afastado. 


Revela-se aí o papel do comitê de bacia em face do saneamento, substituindo a unidade familiar exatamente naquilo pelo que ela, embora devesse, por não perceber, não advoga: o tratamento dos efluentes recolhidos antes de vertê-los ao rio.


Folha do Meio – Como é que o comitê deve negociar os preços a serem cobrados pelo uso da água?


Garrido – O ponto de partida da cobrança em rios de domínio da União se dá em duas frentes, uma no âmbito da bacia e outra na Agência Nacional de Águas. Na bacia, a agência de bacia desenvolve estudos e propõe ao comitê para que este submeta os preços propostos a um processo de negociação (Lei Federal no 9433/97, art. 43, inciso XI, alínea “a”).


Na Agência Nacional de Águas, esta, com base nos critérios gerais para cobrança estabelecidos pelo CNRH (Lei Federal 9433/97, art. 35, inciso X), procede aos estudos técnicos para subsidiar a aprovação que será dada pelo CNRH (Lei Federal 9984/2000, art. 4o, inciso VI) quando da análise da proposta do comitê. Para que o circuito se feche, o comitê de bacia, após realizar a negociação sugere os preços ao CNRH para aprovação (Lei Federal no 9433/97, art. 38, inciso VI, combinada com a Lei Federal no 9984/2000, art. 4o, inciso VI). 


Finalmente, o CNRH, em câmara técnica, coteja os níveis de preços dos estudos da ANA com os propostos pelo comitê, e elabora um relatório que vai ao Plenário para aprovação.


Folha do Meio – Comitê é um órgão público?


Garrido – Nem todos os requisitos a que deve satisfazer um órgão público estão nos comitês. Mas é forçoso reconhecer que os comitês são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, pois participam na gestão do uso de um bem público. 


Entretanto, a atuação de um órgão público deve ser imputada à pessoa jurídica a que pertence e, por pertencer a uma pessoa jurídica, os órgãos são despersonalizados e desprovidos de vontade própria. Personalidade jurídica e vontade própria são atributos do corpo e não das partes, ou dos órgãos. É neste ponto que reside sutil diferença: os comitês são colegiados, destituídos de personalidade jurídica, é verdade, mas têm vontade própria. E que vontade!, pois suas decisões são normativas, consultivas e deliberativas.


O que a gestão dos recursos hídricos traz de novo em todo esse processo é a tomada de decisão com base na gestão participativa da sociedade da bacia em conjunto com os usuários da água e com a participação dos poderes executivos. Veja-se que estão presentes nos comitês as três esferas de poder executivo, ou pelo menos duas, no caso em que a bacia somente tenha corpos d’água de domínio de um dado estado. Mas o comitê não é parte, pois não é órgão, nem do executivo federal, nem do estadual tampouco do municipal. 


O que difere um comitê de bacia de um órgão público é que o comitê tem vontade própria, o que um órgão público não tem, e sua ação, dentro das atribuições que lhes são conferidas, não é imputada a nenhuma pessoa jurídica. É sob este aspecto que o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Brasil inova. E inova para melhor, fazendo com que organizações com formatos institucionais inteiramente novos, como este dos comitês, atuem, com mandatos enlaçados, não coincidindo com os dos poderes públicos, assegurando a continuidade administrativa na bacia e, daí, projetando as bases para sua governança.








GLOSSÁRIO

CNRH – Conselho Nacional de Recursos Hídricos é um corpo colegiado formado por representantes dos ministérios e secretarias da Presidência da República com atuação no uso ou na gestão do uso dos recursos hídricos; pela Agência Nacional de Águas – ANA; por representantes dos conselhos estaduais de recursos hídricos, dos usuários da água, e das organizações civis de recursos hídricos. O CNRH ocupa a instância mais alta da hierarquia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

COMITÊ DE BACIA – Também referido como “parlamento das águas na bacia”, os comitês são colegiados que funcionam como reunião de condôminos, discutindo e tomando decisões sobre investimentos, programas, medidas e outras formas de intervenção no espaço da bacia hidrográfica, sendo a instância responsável pela aprovação do plano de recursos hídricos.


HOMEOSTASIA – Mecanismo que responde pelo equilíbrio interno dos ecossistemas, corrigindo desvios, eliminando excessos, controlando forças antagônicas, introduzindo, por vezes, fatores novos, procurando sempre manter o conjunto em correto e normal funcionamento. Trata-se, pois, de um processo de auto-regulagem, fruto da sapiência da natureza.


ORGANIZAÇÕES CIVIS DE RECURSOS HÍDRICOS – Modalidade de instituições que a Lei Federal no 9433/97 (Artigo 47) assim passou a considerar os consórcios e associações municipais de bacias hidrográficas; as associações regionais, locais ou setoriais de usuários de recursos hídricos; as organizações técnicas e de ensino e pesquisa com interesse na área de recursos hídricos; organizações não-governamentais com objetivos de defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade; e outras organizações que venham a ser reconhecidas pelo Conselho Nacional ou pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.


SNRH – É o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, outrora abreviado como SINGREH, sigla que ainda aparece em alguns textos e documentos. É formado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, pela Agência Nacional de Águas, pelos conselhos estaduais de recursos hídricos e do Distrito Federal, pelos comitês de bacia, pelas agências de bacia e por órgãos dos poderes públicos federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais cujas competências se relacionem com a gestão dos recursos hídricos.


AGÊNCIA DE ÁGUA – Instituições destinadas a atuarem como secretarias executivas dos comitês de bacia, a estes sendo subordinadas. A natureza das agências de bacia não está fixada em lei, pelo menos em lei federal, cabendo a cada comitê, ou grupo de comitês, escolher as instituições que lhes servirão como secretarias executivas. Há, todavia, uma tendência a buscarem-se formatos institucionais do tipo fundações.


CORPO D?ÁGUA – Denominação genérica de rios, lagos, lagunas e aqüíferos, em termos de águas continentais interiores. É aplicável, também, aos mares e oceanos. O mar é um corpo d’água gigantesco.


BACIA HIDROGRÁFICA – Espaço geográfico cujos aportes hídricos naturais são alimentados exclusivamente pelas precipitações e cujos excessos de água ou de materiais sólidos transportados pela água se dirigem para um único ponto denominado foz ou embocadura, ou ainda exutório.


TRIBUTÁRIO – Diz-se de um curso d?água, em relação a outro, cujas águas afluem em direção a este outro. Por isso, são também ditos afluentes. O rio ?A? é tributário, ou afluente, de ?B? quando as águas de ?A? desembocam em ?B?.


 










O que é e como fazer um plano diretor de bacia

13 de fevereiro de 2004

Os planos de bacias são bem abrangentes, estabelecendo um “receituário” completo para a boa gestão dos recursos hídricos

 






Raymundo Garrido, secretário de Recursos Hídricos do MMA


FMA – O que é um plano de recursos hídricos?


Garrido – Primeiro vamos à terminologia. A expressão “planos de recursos hídricos” foi criada na Lei Federal no 9.433/1997. Antes, se falava em planos diretores de bacias hidrográficas. Esses planos não deixaram de ser diretores pela simples alteração de seu título. Aliás, a referida lei, em seu artigo 6ª, os define como planos diretores que visam orientar e fundamentar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento dos recursos hídricos. Isto significa que os planos de recursos hídricos são definidores de diretrizes para aplicação no âmbito da bacia.


Considerando que várias leis estaduais sobre recursos hídricos ainda os denominam planos diretores, vamos admitir, nesta entrevista, os diversos nomes que têm os planos: planos de recursos hídricos, ou planos diretores de bacias ou, simplesmente, planos de bacias.


O plano de bacia é o documento-programa das ações a serem postas em prática na bacia hidrográfica, formulando uma estratégia de curto e longo prazos. Tem como objetivo central a utilização eficiente e preservadora dos recursos hídricos em seus aspectos qualitativo e quantitativo.






Devem ser adotados dois horizontes de prazo: um mínimo, de até dois anos, e um segundo, estratégico, ao redor de dez anos.


FMA – Qual o conteúdo dos planos de recursos hídricos?


Garrido – A Lei Federal no 9.433/97, artigo 7ª recomenda um conteúdo mínimo para os planos de recursos hídricos, que parte do diagnóstico da situação corrente dos recursos hídricos para, em seguida, abordar os seguintes aspectos:


? A análise das alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de modificação dos padrões de ocupação do solo;


? O balanço entre disponibilidades e demandas futuras dos recursos hídricos, em quantidade e qualidade, com a identificação de conflitos potenciais; as metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis; as medidas a serem tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem implantados para o atendimento das metas previstas; a prioridade para a outorga de direito de uso dos recursos hídricos; as diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; e, finalmente, as propostas para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção dos recursos hídricos.


Comos se vê, os planos de bacias são bem abrangentes, estabelecendo um “receituário” completo para a boa gestão dos recursos hídricos, abordando os aspectos mais relevantes dessa gestão.


FMA – Qual a área física de abrangência para um plano de bacia?


Garrido – A abrangência física de um plano diretor, ou seja, do perímetro a ser estudado, depende essencialmente de quatro fatores. O primeiro deles, inquestionável em seu conteúdo, chegando mesmo a constituir um princípio da gestão dos recursos hídricos, é que o perímetro escolhido deve cobrir o perímetro de uma bacia, ou sub-bacia hidrográfica de qualquer ordem.


O segundo fator refere-se ao conjunto de estudos anteriores existentes sobre a região que se pretende estudar. Na elaboração de um plano diretor de bacia, não se deve desperdiçar nenhum outro trabalho produzido anteriormente, pois estes podem trazer indicações úteis que, de outra forma, teriam que ser refeitas por meio de esforços adicionais desnecessários.


O terceiro fator refere-se à busca que se deve fazer a respeito de eventuais indicações da sociedade local sobre problemas para cujas soluções existe algum tipo de expectativa. Isso significa que a importância de certos problemas, sobretudo aqueles de maior calibre, pode influir na decisão da área a ser estudada.


Finalmente, o quarto fator está ligado à relação entre o grau de detalhamento das diretrizes que resultarão do plano e o porte necessário da área a ser definida. Quanto maior for o grau desse detalhamento, menor deverá ser o perímetro da área a ser estudada, e vice-versa.


É relevante considerar que o tamanho da área objeto do plano não deve ser tão pequena a ponto de impedir que se tenha uma visão nítida do conjunto dos problemas a ser abordados, pois a análise de um problema sem se levar em conta a sua relação com o todo pode induzir a soluções inadequadas.


O tamanho da área não pode ser, também, tão grande a ponto de impedir que se percebam os problemas com o grau mínimo de detalhe necessário ao estabelecimento de uma solução eficaz. Finalmente, o tamanho da área escolhida para o plano não deve seccionar, por exemplo, um grande rio, um aqüífero ou algum outro parâmetro de continuidade importante no conjunto dos elementos a ser considerado.






No Brasil ainda não existe agência de bacia. O único exemplo de agência é o da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará.


FMA – Que horizonte temporal de enquadramento deve ter um plano diretor de bacia?


Garrido – Em primeiro lugar, a adoção de um horizonte estratégico de dez anos parece ser indispensável.


Veja bem o por quê: o objetivo central de um plano diretor de bacia é dar indicações que, ao mesmo tempo em que induzem o uso racional da água, contribui para a recuperação e/ou a conservação dos recursos hídricos e dos demais recursos naturais interferentes na água (solos, vegetação etc). Sucede que o tempo de uma década corresponde ao horizonte ao longo do qual se podem produzir efeitos mais duradouros e mais importantes. Em outras palavras, a dinâmica dos processos naturais prende-se a ciclos que encontram no prazo de dez anos um interregno razoavelmente confortável para o seu desenvolvimento. Aliado a isso, dez anos são um período longo o suficiente para bem avaliar e corrigir, se for o caso, os resultados, positivos ou negativos, das diretrizes estabelecidas.


É importante observar que a interação das decisões adotadas em relação aos recursos naturais com os outros domínios da política de ordenamento espacial e desenvolvimento regional demanda um horizonte de, pelo menos, duas a três gestões de governo, seja regional, seja local. Isso termina por apontar para um horizonte também aproximadamente decenal.


Mas não se pode esquecer de estabelecer, também, um horizonte de curto prazo. Não superior a dois anos. Por exemplo, para agasalhar uma série de recomendações para ações imediatas que aparecerão logo nos primeiros momentos de elaboração do plano, reclamando por solução imediata.


Em resumo: devem ser adotados dois horizontes de prazo, um, mínimo, de até dois anos, e um segundo, estratégico, ao redor de dez anos.






Três nomes para dizer a mesma coisa: planos de recursos hídricos, ou planos diretores de bacias ou, simplesmente, planos de bacias


FMA – Quem deve aprovar o plano diretor de uma bacia?


Garrido – O plano diretor deve ser elaborado pela agência de bacia, ser submetido a um plano de audiências públicas e aprovado pelo comitê da bacia, com o apoio técnico da agência.


As consultas públicas servem para validar a proposta a ser aprovada pelo comitê.


No Brasil ainda não existe agência, à execeção da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará, que é uma entidade de direito público que cumpre o papel de uma agência de bacia, no território cearense.


Como ainda não há agência de bacia, excetuado o caso acima, a Agência Nacional de Águas – ANA, apóia a elaboração desses planos, sobretudo nas bacias que contenham um ou mais corpos d’água de domínio da União. No caso de bacias com águas de domínio apenas de um estado federado, igualmente os órgãos ou entidades estaduais gestoras de recursos hídricos procuram atuar da mesma maneira que a ANA.


FMA – Quais as fases de elaboração de um plano de recursos hídricos?


Garrido – A elaboração de um plano diretor deve percorrer as etapas seguintes:


1. Levantamento da situação da área, atividade inicial de todo o trabalho de elaboração do plano, momento em que se aprofunda e se consolida o conhecimento sobre os problemas principais relacionados com a água e os setores usuários desta.


2. Diagnóstico geral, que é uma síntese dos elementos coligidos durante a fase precedente de levantamentos. Essa síntese deve refletir uma avaliação crítica da situação da bacia ou região sob estudo;


3. Estabelecimento de tendências e cenários, fase que busca dar contornos mais precisos ao que se espera venha a ser o futuro da região, devendo, para tanto, partir-se do estado atual e da análise das tendências dos corpos d’água e seus usos, estabelecendo, daí, cenários evolutivos. Na construção desses cenários devem ser evidenciados contrastes fortes, chamando-se a atenção para os problemas que podem advir;


4. Escolha da estratégia, que depende de agentes tão distintos e com motivações fortes em torno do elemento água;


5. Definição dos produtos, elementos que servirão para orientar e acompanhar a prática das recomendações do plano;


6. Validação do plano, por meio de consultas públicas, nas quais a qualidade dos produtos ainda pode ser aperfeiçoada;


7. E aprovação final, que é a validação complementar às diversas validações parciais que ocorrem por meio das referidas audiências públicas.


FMA – Que elementos devem fazer parte do levantamento da situação da área?


Garrido – O levantamento de dados deve incluir, obrigatoriamente, informações sobre relevo, clima, solos, vegetação, geologia, geomorfologia, hidrologia superficial e subterrânea e sócio-economia.


No caso da sócio-economia devem incluir-se todos os usos dos recursos hídricos, além de definir o papel das partes envolvidas, isto é, a natureza e a ação dos agentes do processo. Quanto à natureza, esses agentes podem ser classificados em institucionais, que são aqueles que prescrevem normas ou realizam algum tipo de trabalho relacionado ao licenciamento (aí incluída a outorga), ou monitoramento e fiscalização, ou mesmo o planejamento do uso dos recursos hídricos; e agentes não institucionais, que são os usuários da água.






A ANA apóia a elaboração dos Planos de Recursos Hídricos nas bacias que contenham rios de domínio da União


FMA – Que objetivos principais tem a fase do diagnóstico?


Garrido – O diagnóstico se estende por três diferentes níveis de abordagem que são:


1. Uma avaliação da situação existente, questionando-se sobretudo a ligação entre as disponibilidades e os usos, com particular atenção sobre as causas de determinadas situações constatadas. Por exemplo, deve ser feita uma análise dos usos que, uma vez tendo desaparecido, deixaram fortes traços sobre o corpo d’água


2. Uma análise de compatibilidade, objetivando estabelecer o nível de satisfação dos usos correntes da água e a capacidade dos corpos d’água em satisfazê-los em patamares mais elevados.


3. E uma prospecção sobre o comportamento dos diversos agentes, levando em conta seu comportamento passado e, na medida do possível, a identificação das demandas potenciais ainda não manifestadas.


Na fase do diagnóstico, especial atenção deve ser dada ao conhecimento dos agentes sociais, pois as suas expectativas e anseios, assim como a sua percepção da situação presente, é que darão a direção e a intensidade da evolução do cenário. Portanto, conhecê-los, compreendê-los e fazê-los conhecerem-se e compreenderem-se entre si constitui uma tarefa fundamental para que, via o plano diretor da bacia, se possa exercer influência sobre o futuro da região.


FMA – Para que serve a fase de análise de tendências e cenários?


Garrido – Esta fase busca, a partir de tendências de evolução do cenário, desenhar o que pode vir a ser o futuro da região. O estudo de tendências e cenários é, antes de tudo, uma necessidade de antecipar a ocorrência de fatos, situações e fenômenos, para que medidas preventivas sejam recomendadas.


A análise dos períodos anteriores, elemento importante para se ter a compreensão dos mecanismos culturais que conduziram às práticas e comportamentos correntes, serve como referência, riquíssima, para a construção de cenários futuros.


Duas série de estudos são importantes nessa fase: a análise de tendências do comportamento e a visão de futuro dos usuários; e a elaboração dos cenários ilustrando as principais alternativas relacionadas com a proteção e a reabilitação dos corpos d’água e a satisfação dos usuários.


O conhecimento dos cenários futuros ensejará, enfim, exprimir o grau de urgência que se impõe para a correção dos modos de utilização e de gestão dos recursos hídricos.


FMA – Como definir a estratégia de um plano de bacia?


Garrido – Convém assinalar que a escolha da estratégia não deve refletir apenas a vontade de uma só pessoa ou de um grupo pequeno. Antes de tudo é a resultante de um processo de criatividade e discussão em torno do conjunto de todas as hipóteses consideradas, dando aos coordenadores do trabalho as condições essenciais para definir, com razoável conhecimento de causa, a estratégia do plano diretor.


A definição da estratégia responde a várias preocupações. A primeira, e talvez a mais importante, é a de induzir os usuários a uma vontade coletiva e individual, nesta ordem, de conservar o patrimônio natural, em particular os corpos d’água, para tanto enfatizando a fragilidade e o caráter indefeso destes.


A segunda preocupação é a de alertar os agentes da bacia para o fato de que os planos operacionais, assim como o comportamento em curso não representam uma garantia de que haverá disponibilidade de água no futuro.


Uma terceira preocupação é a de que a estratégia seja útil para superar as dificuldades correntes, uma vez que esta aborda, desde os primeiros momentos de sua concepção, as questões relativas a conflitos de uso, potenciais e/ou instalados.


A quarta preocupação diz respeito a que a estratégia seja dotada do sentido de busca de oportunidades de desenvolvimento, assim como a de precaver a bacia e seus usuários contra as ameaças de eventos extremo, tais como secas e inundações. A definição de uma estratégia, objetiva, ainda, o preenchimento de uma importante necessidade de visão de conjunto, ao mesmo tempo em que provoca, no seio do conjunto de usuários, o sentimento sadio de pertencer a uma comunidade solidária.


A definição criteriosa da estratégia permitirá, por fim, que seja feita a escolha, em harmonia e de forma consciente, o cenário coletivo a ser perseguido.


FMA – Que produtos principais resultam de um plano de recursos hídricos?


Garrido – Os produtos de um plano diretor podem ser sintetizados em torno de três grandes temas. A restauração e a gestão dos meios aquáticos; a organização e a otimização dos usos; e o ordenamento e a gestão do espaço nos limites da área de estudo.


Esses temas dão lugar à formulação de algumas linhas de ação destinadas a facilitar a colocação em prática das recomendações do plano, bem assim o seu acompanhamento ao longo do tempo, criando oportunidades para que se introduzam, quando for o caso, as necessárias correções de rumo. Nesse sentido, são quatro as linhas de ação:


· Orientação para a gestão por meio de regulamentações e outros elementos de natureza gerencial;


· Orientação de ordenamento do uso do território como obras e outros tipos de intervenção física;


· Dispositivo de acompanhamento para a realização do controle de continuidade;


· Dispositivo de difusão para assegurar a informação, assim como a sensibilização dos agentes em relação aos objetivos perseguidos.


No que se refere à orientação para a gestão, esta deve ser estabelecida preferencialmente mediante um processo de negociação entre as partes envolvidas, sobretudo aquelas responsáveis pela política de recursos hídricos, além dos usuários e segmentos da sociedade civil organizada.


FMA – Que recomendações principais um plano deve fazer a respeito da qualidade da água da bacia, ao ordenamento dos usos e à organização e gestão do uso do território?


Garrido – Há inúmeras recomendações nesse sentido. Podemos mencionar algumas consideradas de maior relevância. Inicialmente, no que se refere à recuperação e gestão do uso da água, deve haver preocupação com a definição da quantidade máxima de rejeitos assimiláveis pelas massas líquidas em movimento, e do grau de tratamento a que esses descartes devem ser submetidos. Igualmente deve ser feito um plano de gestão das espécies piscícolas presentes ao corpo d’água ou para as quais o corpo d’água ofereça vocação. Um plano de combate a ações erosivas é desejável, tanto quanto o estabelecimento de metas a serem alcançadas para fazer face aos efeitos de eventos extremos como secas e inundações.


Quanto ao ordenamento e otimização dos usos, devem ser estabelecidas prioridades entre estes e a repartição de vazões, no espaço e ao longo do tempo. Recomendações para o monitoramento e a melhoria das condições operacionais dos reservatórios da bacia devem constar do plano, assim como normas para a exploração mineral devem ser emitidas no plano, especialmente no que diz respeito à exploração de seixos rolados ou areia dos leitos dos rios.


Finalmente, no que concerne à orientação para a organização e gestão do uso do território, devem ser dadas indicações úteis ao trabalho de zoneamento ecológico-econômico, nos meios urbano e rural, em consonância com as normas legais vigentes. Em particular, orientação deve ser dada para que sejam interrompidas as obras que não tenham sido aprovadas pelo CREAA da região e/ou que não disponham da competente outorga de direito de uso dos recursos hídricos e do licenciamento ambiental.








GLOSSÁRIO

COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA – É a retribuição do usuário da água bruta de mananciais aos poderes públicos pela utilização desse recurso natural. Trata-se de um instrumento de política de gestão dos recursos hídricos, previsto desde 1934, no Código de Águas, que foi a primeira lei federal para águas no Brasil. A Lei Federal no 9.433, de 8 de Janeiro de 1997 reafirmou a necessidade da manutenção desse instrumento, sobretudo como elemento indutor de uma postura de racionalidade do usuário da água, utilizando esse recurso natural sem desperdício.

CREEA – Entidade de classe que congrega os profissionais, as empresas e outras formas de organizações atuantes no campo da engenharia em todas as suas modalidades, e da arquitetura.


GEOMORFOLOGIA – Ciência que estuda as formas do relevo terrestre, identificando acidentes e outras formas de organização desse relevo, seu comportamento e dos elementos integrantes dos meios físico e biótico que se dispõem sobre o mesmo.


HIDROLOGIA – Ciência que estuda as águas terrestres, sua origem, seus movimentos e sua repartição sobre o planeta, além de suas propriedades físicas e químicas, suas interações com o meio ambiente físico e biótico e suas influências sobre a atividade humana.


INSTRUMENTO DE POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS – A legislação brasileira definiu como instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos cada um dos seguintes elementos: os planos de recursos hídricos; o enquadramento dos corpos d’água em classes de usos preponderantes; a outorga do direito de uso de recursos hídricos; a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; a compensação a municípios; e o sistema nacional de informações sobre recursos hídricos.


MEIO ANTRÓPICO – Conjunto de atividades que reflete a ação do homem sobre a natureza, ou seja, tudo quanto estiver relacionado à ação do homem, por ele produzido. De modo prático, costuma-se dar ao meio antrópico o mesmo sentido que meio sócio-econômico.


MEIO BIÓTICO – Conjunto de elementos relativo aos seres vivos, ou induzido ou causado por eles. No vocabulário ambiental compreende a flora e a fauna, não incluindo, entretanto, o homem, para o qual reserva-se a expressão meio antrópico, constante de verbete deste glossário. Portanto, o meio biótico compreende o conjunto de elementos dotados de vida, ressalvada a exceção acima referida.


MEIO FÍSICO – Conjunto de elementos relativo à natureza. No vocabulário ambiental o meio físico não agasalha nenhuma forma ou parte de seres vivos, que estão relacionados com os meios antrópico ou biótico, conforme verbetes constantes deste glossário.


OUTORGA DE DIREITO DE USO DA ÁGUA – Ato administrativo mediante o qual o Poder Público, investido do poder outorgante, faculta ao administrado o direito ao uso de certa quantidade de água de manancial, medida na unidade de tempo, estabelecendo, quando for o caso, o regime de utilização (“turnos”) e outras restrições que se façam necessárias, por tempo determinado.


FMA – Que relação existe entre os planos de recursos hídricos e os instrumentos da outorga e da cobrança pelo uso da água?


Garrido – O conteúdo mínimo de um plano de bacia inclui a definição de prioridades para a outorga de direito de uso dos recursos hídricos e diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso da água. Por aí podemos perceber que cobrança e outorga, dois importantes instrumentos de política, integram o corpo de um plano de bacia. Mas vamos além. O destaque que a pergunta traz para essa relação é oportuno, a fim de demonstrar que outorga e cobrança passam por um processo de aprovação em termos de definição de critérios. Sendo o mesmo do plano, inclui a consulta, no comitê de bacia, a todos os agentes interessados nos mesmos, dando ênfase ao caráter participativo da decisão também para outorga e cobrança.


FMA – Um plano de bacia é um produto em si mesmo ou reflete um processo de ação? Como se dá o acompanhamento das ações estabelecidas no plano?


Garrido – Aqui a informática, que vem transformando o mundo de maneira significativa, tem um papel importante. A gestão de recursos hídricos, como inúmeras outras áreas de políticas públicas, vai se enriquecendo, a cada dia, pela assimilação da prática da informação em tempo real. A velocidade das transformações sobre os meios antrópico, biótico e físico de uma bacia é acompanhada, na medida do possível, pelo registro e difusão da nova informação através de sistemas digitalizados integrados em rede, poucos momentos após a percepção, pelo homem, da mudança ocorrida.






A cobrança e a outorga são dois importantes instrumentos de política de recursos hídricos. Ambas integram o corpo de um plano de bacia


Já não é de agora o divórcio das letras com o pergaminho, pois as telas eletrônicas vem ampliando a sua presença no mundo moderno, levando informações ao redor do planeta em fração de segundos.


Ora, os planos de recursos hídricos entraram também nessa dinâmica e, cada vez mais, deixam o formato de produto, estático, a ocupar prateleiras de bibliotecas, e são substituídos, aos poucos, por indicadores e tendências , em meio eletrônico, constatadas através dos estudos das bacias. Aqui não se pretende aposentar o livro. Entretanto, os planos de recursos hídricos, por lidarem com indicadores que se transformam a todo o momento, aos poucos vão deixando de ser um conteúdo para livro ou apostila, desposando mais e mais a dinâmica dos sistemas de informações, transmitidas, reafirmadas e também alteradas com freqüência cada vez maior. Nesse sentido, os planos refletem mais o estágio de um processo do que o aspecto de um produto.


Vai chegar o dia que o sistema nacional de informações sobre recursos hídricos passarão a constituir, com poucos adendos e algumas alterações, o verdadeiro plano nacional de recursos hídricos, pela riqueza e, sobretudo, pela dinâmica de seus dados, informações e tendências.


FMA – Além de planos por bacias, que outras escalas admitem a elaboração de planos de recursos hídricos?


Garrido – É a própria Lei Federal no 9.433/97 que estabelece, em seu artigo 8ª, que os planos de recursos hídricos devem ser elaborados por bacia, por Estado e para o País. A gente percebe, por esse dispositivo, que o legislador teve a devida preocupação com os conjuntos, parciais, consolidados na unidade de cada Estado, e total, consolidando o importante instrumento dos planos na escala de todo o território brasileiro. Assim, existirão planos de bacia, planos estaduais e plano nacional de recursos hídricos.


Quanto aos critérios de aprovação desses planos, já respondemos anteriormente, quando falamos da aprovação dos planos de bacia. No que se refere aos planos estaduais, estes seguirão a critérios próprios definidos por cada estado, certamente dando ao conselho estadual a faculdade de aprová-los. No que se refere ao Plano Nacional de Recursos Hídricos, este deverá resultar da consolidação de todos os planos parciais existentes (por bacia e por estado), devendo ser aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos.