Comitê de Bacia
17 de fevereiro de 2004O que é, como é formado, como funciona e para que serve
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Folha do Meio – O que são comitês de bacia hidrográfica?
Raymundo Garrido – São corpos colegiados formados por representantes dos diversos segmentos que participam da gestão dos recursos hídricos. Em outras palavras, são formados por usuários da água, representantes dos poderes executivos e a sociedade civil organizada. É da tradição da gestão de recursos hídricos estabelecer um paralelo entre a bacia hidrográfica e um condomínio de apartamentos.
As reuniões de comitês, guardadas as diferenças, são como reuniões de condomínio, de cujas decisões se deve ocupar o síndico que, diretamente ou através de serviços de terceiros, põe em prática o que ficou decidido pelos condôminos.
No caso dos comitês, o papel do síndico e dos terceiros é desempenhado pela agência de água, ou agência de bacia como se pretende seja denominada, para evitar a confusão com o nome da ANA que é Agência Nacional de Águas. A gestão da bacia é, pois, feita pelo binômio comitê-agência. É como se o comitê fosse o legislativo e a agência fosse o executivo. Aliás, os comitês são também denominados “parlamentos das águas”.
Folha do Meio – Por que adotou-se a palavra comitê para esses colegiados?
Garrido – O Brasil assimilou a terminologia francesa, porque nosso sistema teve inspiração no modelo daquele país. A Espanha, por exemplo, chama-os Confederações Hidrográficas ou, genericamente organizações de bacias, com a diferença que uma confederação hidrográfica realiza, simultaneamente, os papéis de um comitê e de uma agência de bacia.
Em verdade, foi por perseguir o modelo francês que acabamos na agência de água. Na França, no início, essas agências eram chamadas “agências financeiras de bacia”, mais tarde somente “agências de bacia” e por último “agências de água”. No final da discussão do Projeto de Lei no 2.249/91, o texto denominava essas agências como “agências de bacia”.
Na redação final, entretanto, o relator da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias optou pela nomenclatura francesa, razão porque a Lei Federal no 9.433/97 adotou o nome de “agência de água”. Todavia, o Projeto de Lei no 1.616/99 sugere a alteração para agência de bacia. Finalmente, as leis estaduais em geral optaram por “agência de bacia”, o que leva a que, dentro do Brasil ainda tenhamos duas denominações para o mesmo tipo de organização.
Folha do Meio – Qual o papel do comitê de bacia?
Garrido – Em primeiro lugar, nos comitês o debate é aberto, a discussão é livre, todos têm liberdade para expor suas idéias. Daí, a primeira atribuição de um comitê é a promoção do debate sobre as questões de interesse da bacia, articulando a participação dos agentes. Em segundo lugar, mas não menos importante, o comitê deve antecipar-se à ocorrência de conflitos, sobretudo entre os usuários da água. Mas, quando um conflito já está instalado, cabe ao comitê, em instância administrativa, arbitrá-lo.
Uma prerrogativa do comitê é a de dar aprovação e acompanhar a execução dos planos de recursos hídricos, que são o documento programático do setor no espaço da bacia. É ainda o comitê de bacia que define as vazões e acumulações consideradas insignificantes para isenção da obrigatoriedade da outorga e, consequentemente, da cobrança. Finalmente, também faz parte das competências dos comitês a definição dos mecanismos de cobrança, sugerindo ao CNRH os preços a serem praticados, e a promoção do rateio de custos das obras de interesse comum ou coletivo.
Folha do Meio – Como podem ser postas em prática as decisões dos comitês?
Garrido – Os comitês de bacia têm uma secretaria executiva que é a agência de bacia. A agência se encarrega da tarefa operacional do comitê. As atribuições das agências incluem o acompanhamento do balanço entre disponibilidades e demandas por água, a administração do cadastro de usuários da água, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e a administração financeira desses recursos, neste caso por delegação do outorgante.
Além disso, cabe à agência “fazer” toda a engenharia da bacia, emitindo pareceres, elaborando ou contratando e analisando projetos a serem executados com os recursos da cobrança; fazer convênios, elaborar a proposta orçamentária para o exercício financeiro, desenvolver estudos técnicos, elaborar o plano de recursos hídricos, propor o enquadramento dos corpos d’água em classes de usos preponderantes, estudar e propor os preços a serem cobrados, o rateio de custos, são, também, funções da agência. Conforme se percebe, a agência de bacia torna concretas as decisões do comitê, sendo subordinada a este. Aliás, é uma das poucas formas de subordinação existentes no SNRH.
Folha do Meio – As decisões dos comitês têm caráter normativo, deliberativo ou consultivo?
Algumas agências podem se subordinar a mais de um comitê. Mas o contrário não é verdadeiro: não existirão comitês ligados a mais de uma agência de bacia. |
Garrido – Por decisão do CNRH, os comitês são colegiados com atribuições normativas, deliberativas e consultivas a serem exercidas na bacia hidrográfica. Ao se referir à bacia, esta pode ser de rios de primeira, segunda ou terceira ordem, ou seja, os comitês podem ser criados até em bacias (que são sub-bacias) de tributário de um tributário do rio principal (rio de primeira ordem). A limitação à terceira ordem (Art. 37, inc. II, da Lei Federal no 9433/97), faz com que algumas bacias ainda sejam muito grandes em termos de território, o que acontece, principalmente, na Amazônia. Esta circunstância pode dificultar a tarefa do gerenciamento. Por isso, quero crer que, no futuro, o referido artigo venha a ser revisto.
Folha do Meio – Como é a participação dos segmentos interessados nos comitês?
Garrido – É no comitê que se dá a verdadeira gestão participativa dos recursos hídricos. De sua composição participam os poderes executivos, os usuários da água e a sociedade civil organizada.
A Resolução nª 5, do CNRH, estabeleceu um percentual fixo de participação dos usuários, de 40% dos votos, ficando os quinhões dos poderes executivos e da sociedade civil para negociação. Houve um grande debate no Conselho para que se chegasse a essa definição. De fato, o usuário da água é o “motor” do processo, pois se não houver utilização dos recursos hídricos, não haverá, em grande medida, trabalho de gestão a realizar. Imagine-se uma bacia desabitada: os problemas físicos que ocorrerem na mesma serão solucionados pela própria natureza que vai se ajustando às novas situações, buscando um novo estado de eqüilíbrio, mediante um processo chamado homeostasia.
Quanto à divisão dos 60% restantes, a serem negociados entre a sociedade civil e os poderes executivos, a mesma Resolução nª 5 limitou os poderes executivos, tomados em conjunto, a 40%, o que implica um mínimo de 20% para a sociedade civil. É provável que nas regiões onde a sociedade civil for mais ativa, esta consiga um percentual maior, achatando o dos poderes executivos.
Folha do Meio – Que diferença há entre as estruturas dos comitês e das agências de bacia?
Garrido – A estrutura de um comitê não tem a disciplina que terá a estrutura de uma agência de bacia. Isto é uma decorrência natural dos tipos de atividades de um e de outro.
Enquanto o comitê é um colegiado para avaliar, debater e decidir, cabe à agência a tarefa executiva. Por isto mesmo, os comitês não limitam seu tamanho, nem máximo nem mínimo, afinal um parlamento não tem problema de economia de escala. Entretanto, as organizações do tipo agências de bacia, executivas que são, devem se preocupar com suas respectivas estruturas. Elas não podem ser nem tão grandes que se inviabilizem por ingressar no estágio dos rendimentos decrescentes (curva envoltória da economia do agente econômico), nem tão pequenas que não possam dar conta sequer de seus custos fixos. Ademais, a estrutura de uma agência é feita de níveis hierárquicos bem definidos, com ligações de linha, subordinação e assessorias.
Para administrar bem os recursos hídricos, deve haver harmonia entre os poderes executivos federal e estaduais. |
A agência de bacia terá, portanto, um conselho de administração, uma diretoria colegiada e departamentos afins. No caso dos comitês, o que se tem é um presidente, um secretário e membros. Finalmente, considerando que a agência de bacia tem limitações quanto a seu tamanho, por limites mínimo e máximo, pode suceder que algumas agências venham a se subordinar a mais de um comitê, sobretudo comitês de bacias de porte pequeno ou de reduzido nível de atividade. Mas o contrário não é verdadeiro, ou seja, não existirão comitês ligados a mais de uma agência de bacia.
Folha do Meio – Como é que fica a questão dos dois domínios e os tipos de comitês?
Garrido – A existência de dois domínios para os recursos hídricos cria uma situação algo peculiar, que é o fato de várias bacias somente terem corpos d’água de domínio estadual, submetendo-se, portanto, à organização administrativa do estado a que pertencem. Ora, como os estados têm autonomia administrativa, os comitês de bacia cujos corpos d’água sejam inteiramente de um certo estado terão que seguir os formatos institucionais definidos por esse estado.
Embora tenha tudo para dificultar a implementação do SNRH, essa circunstância tem sido, desde a promulgação da Constituição de 1988, um fator de estímulo à articulação das duas esferas de poder executivo.
O que é importante assinalar é que, se a bacia com todos os corpos d’água estaduais não for tributária de um rio de domínio da União, ela estará subordinada aos dispositivos legais daquele estado, que é autônomo para se organizar administrativamente. Mas, quanto às normas gerais da legislação federal, mesmo essas bacias de corpos d’água inteiramente estaduais deverão segui-las. Aí está a verdadeira grandeza do desafio de administrar os recursos hídricos do País, pois os dois domínios implicam a necessidade de harmonia entre os poderes executivos federal e estaduais.
A SRH e a ANA já discutem, por sugestão do Dr. Jérson Kelman, em caráter preliminar, a possibilidade de, nas bacias onde se fizerem presentes os dois domínios, dar-se à agência de bacia um formato institucional que congregue o interesse comum desses domínios, construindo-se, assim, a verdadeira unidade hidrográfica.
Folha do Meio – Até que tamanho de bacia se pode formar um comitê?
Garrido – Conforme já comentado em resposta anterior, a Lei Federal no 9433/97 (Artigo37) estabeleceu que podem ser criados comitês para atuarem: (1) na totalidade de uma bacia (aqui entendida como bacia de rio de primeira ordem); (2) na sub-bacia hidrográfica de tributário do curso d’água principal da bacia (de primeira ordem), ou de tributário desse tributário; e (3) em grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas.
Isto significa afirmar que não há propriamente um tamanho de bacia, nem máximo nem mínimo, para se formar um comitê. No entanto, houve um grande debate no passado, em São Paulo, do qual a conclusão mais concreta a que se chegou foi a de que o módulo confortável (parcela de bacia respeitado o critério de divisores de água) para se administrar recursos hídricos seria aquele em que o técnico ou gestor pudesse se deslocar em toda a sua extensão, durante o dia, e se recolher em casa ao final do expediente. Esta condicionante, em termos de deslocamento rodoviário, com boas estradas, leva a uma área de entre 50 mil e 60 mil quilômetros quadrados.
Veja o Consórcio do Piracicaba. Nesses anos de atuação ele construiu estações de tratamento de efluentes e apoiou a tarefa da gestão do uso da água. |
Tal debate, não tomado em consideração quando da tramitação das leis federais (9433 e 9984), pode ser que volte à tona, em futuro, quando os trabalhos de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos ganharem uma dimensão maior. A experiência da ANA é que poderá confirmar ou infirmar esta assertiva.
A Amazônia, onde bacias de tributários de tributários do rio principal são também de grande porte, poderá indicar a necessidade de uma subdivisão em parcelas menores, ou seja, admitindo a formação de comitês até o rio de quarta, ou mesmo de quinta ordem.
A verdade é que bacias muito grandes têm realidades diferentes ao longo de seu território e isso dificulta o trabalho de gestão, mesmo que a hidrologia e a hidrogeologia sejam as mesmas em qualquer ponto da bacia. Temas como cobrança, outorga, mercados de água, estão muito ligados com o meio antrópico, o que recomenda uma subdivisão da bacia em módulos mais confortáveis quando o dispositivo legal assim não o permitir. E esta subdivisão poderá afetar o tamanho dos comitês.
Folha do Meio – Comitê se refere a bacia hidrográfica. Mas pode também se ligar com o problema das águas subterrâneas?
Garrido – Claro que sim. A bacia compreende o seu solo, o que está acima do mesmo e o seu sub-solo. O que é preciso aclarar, na própria legislação brasileira, é o problema das águas subterrâneas que são outorgadas pelos estados, por serem de domínio destes, mas que obedecem à legislação do setor mineral quando o tratamento do problema está relacionado com a pesquisa e lavra de água mineral, termal, gasosa, potável de mesa e destinada a fins balneários.
Nesse caso, a legislação é a contida nos decretos leis nos 227/67 e 7841/45, e a gestão está entregue ao Departamento Nacional da Produção Mineral. Apesar dessa legislação específica, algumas engarrafadoras de águas minerais também solicitam a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, fato que merece, no mínimo, uma revisão, para evitar que o agente econômico privado tenha que enfrentar burocracia adicional desnecessariamente.
Por isso mesmo, o Ministro Sarney Filho lançou o Programa de Águas Subterrâneas, no Dia Mundial da Água, em março desse ano, objetivando promover a articulação das políticas estaduais de recursos hídricos com a da União.
Enquanto o comitê é um colegiado para avaliar, debater e decidir, cabe à agência a tarefa executiva. A agência de bacia concretiza as decisões do comitê. |
Folha do Meio – Qual a diferença entre comitê e consórcio intermunicipal de recursos hídricos? Um substitui o outro?
Garrido – Conforme já referido, o comitê é um colegiado que promove o “governo” da bacia, com o apoio de uma agência, dita de bacia. Sua atuação e as características de sua estrutura orgânica foram comentadas em respostas anteriores. Quanto aos consórcios intermunicipais, estes são classificados na legislação (Lei Federal no 9433/97, artigo 47) como organizações civis de recursos hídricos.
Há muitas vantagens na atuação de um consórcio. Uma delas é o poder político, vez que entre seus membros estão os prefeitos, ou seja, são agentes que têm acesso à assembléia legislativa, ao governador, ao Congresso Nacional e ao Presidente da República. Em segundo lugar, as prefeituras costumam investir nas bacias, contribuindo para a gestão dos recursos hídricos. Veja-se, por exemplo, o quanto já fez o Consórcio do Piracicaba nesses anos de atuação, construindo estações de tratamento de efluentes, apoiando a tarefa da gestão do uso da água sob as mais diversas formas de atividades em que o Consórcio entra com recursos financeiros e logísticos. A história do Consórcio do Piracicaba é um exemplo de dedicação à causa dos recursos hídricos.
Mas os consórcios são associações livres de municípios, que podem entrar e sair dos mesmos a qualquer momento. Isto traz, em conseqüência, dificuldade em obter, quando necessário, empréstimos bancários, pois a constituição das garantias é prejudicada pela liberdade de cada município poder a qualquer momento abandonar o consórcio. A experiência brasileira tem demonstrado que essa saída pode ocorrer, sobretudo quando o município é excêntrico na geografia da bacia, situando-se longe dos leitos dos principais rios, para onde se canalizam habitualmente as benfeitorias.
Vale lembrar que os consórcios não substituem comitês e comitês não substituem consórcios. Seus papéis são diferentes e complementares. Oportuno tratar dessa questão, para afirmar que os consórcios se vêm tentados, às vezes, a se transformarem em agências de bacia. A razão é clara: por essas agências passará o dinheiro da cobrança. Mas, não vale a pena! O desaparecimento eventual de um consórcio abrirá uma enorme lacuna que somente trará prejuízos ao gerenciamento dos recursos hídricos.
A familia não está necessariamente interessada em saber se o esgoto é tratado antes de ser devolvido ao curso d’água. A ela importa que o esgoto foi coletado e afastado. |
Folha do Meio – Qual o ritual que deve ser seguido para a constituição de um comitê de bacia?
Garrido – Pela Resolução do CNRH no 5, é preciso que haja adesão de três das instâncias seguintes: secretários estaduais de recursos hídricos de pelo menos dois terços dos estados banhados pela bacia, aí incluído o Distrito Federal; pelo menos 40% de municípios da bacia; pelo menos três entidades de usuários da água; e, pelo menos, dez entidades das organizações civis de recursos hídricos. Os interessados encaminham o pleito ao CNRH, acompanhado de justificativa circunstanciada e da indicação da diretoria provisória.
Esses elementos passam pela câmara técnica competente que, uma vez os aprovando, recomenda a discussão e votação em plenário. Aprovada no Conselho, a proposta é encaminhada para Decreto Presidencial.
Folha do Meio – Que relações de subordinação podem ser identificadas entre comitês, agências, consórcios e associações intermunicipais?
Garrido – Em termos de subordinação, o que se pode afirmar é que todos os integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos se subordinam ao CNRH, e que as agências de bacia são subordinadas a comitês de bacia. Nada mais se pode afirmar, pois a legislação não estabeleceu qualquer outra relação de subordinação. É por isto que raramente se esboçam organogramas para esse sistema. Trata-se, pois, de um sistema verdadeiramente sui gêneris, no qual, mais relevante do que subordinação é a participação. Quando muito, aparecem alguns fluxogramas para indicar relações entre as atribuições das instituições que integram o SNRH.
Folha do Meio – Que relação existe entre comitê e o setor de saneamento?
Garrido – Existe uma relação prática muito lógica. O comitê é a instituição mais vigilante a respeito da necessidade de o saneamento cumprir o seu ciclo completo. Conforme se sabe, no Brasil, o abastecimento d’água alcança invejáveis 92% de cobertura do serviço.
A coleta de esgotos urbanos chega a 38%, mas o tratamento não passa de 12%, sendo de 18% se se considerarem apenas as zonas urbanas. É natural que o abastecimento tenha chegado primeiro à quase universalidade do serviço. Como não houve recursos para que tudo fosse feito ao mesmo tempo, o abastecimento foi a prioridade, até porque sem água não haveria o que esgotar.
Os comitês são colegiados, destituídos de personalidade jurídica, é verdade, mas têm vontade própria. E que vontade! Pois suas decisões são normativas, consultivas e deliberativas. |
Em segundo lugar, veio a coleta para, ao final trabalhar-se na fase do tratamento. Mas é também de se considerar que a unidade familiar desempenha importante papel nesse contexto, visto esta luta pela necessidade de ter água em casa.
Igualmente, a unidade familiar advoga a necessidade de os esgotos serem coletados, caso contrário terão que fazer fossas sépticas que, periodicamente têm que passar por manutenção, com desconforto para o domicílio. Mas a família não está necessariamente interessada em saber se o esgoto, depois de coletado, é tratado antes de ser devolvido ao curso d’água. A ela importa que o esgoto foi coletado e afastado.
Revela-se aí o papel do comitê de bacia em face do saneamento, substituindo a unidade familiar exatamente naquilo pelo que ela, embora devesse, por não perceber, não advoga: o tratamento dos efluentes recolhidos antes de vertê-los ao rio.
Folha do Meio – Como é que o comitê deve negociar os preços a serem cobrados pelo uso da água?
Garrido – O ponto de partida da cobrança em rios de domínio da União se dá em duas frentes, uma no âmbito da bacia e outra na Agência Nacional de Águas. Na bacia, a agência de bacia desenvolve estudos e propõe ao comitê para que este submeta os preços propostos a um processo de negociação (Lei Federal no 9433/97, art. 43, inciso XI, alínea “a”).
Na Agência Nacional de Águas, esta, com base nos critérios gerais para cobrança estabelecidos pelo CNRH (Lei Federal 9433/97, art. 35, inciso X), procede aos estudos técnicos para subsidiar a aprovação que será dada pelo CNRH (Lei Federal 9984/2000, art. 4o, inciso VI) quando da análise da proposta do comitê. Para que o circuito se feche, o comitê de bacia, após realizar a negociação sugere os preços ao CNRH para aprovação (Lei Federal no 9433/97, art. 38, inciso VI, combinada com a Lei Federal no 9984/2000, art. 4o, inciso VI).
Finalmente, o CNRH, em câmara técnica, coteja os níveis de preços dos estudos da ANA com os propostos pelo comitê, e elabora um relatório que vai ao Plenário para aprovação.
Folha do Meio – Comitê é um órgão público?
Garrido – Nem todos os requisitos a que deve satisfazer um órgão público estão nos comitês. Mas é forçoso reconhecer que os comitês são centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais, pois participam na gestão do uso de um bem público.
Entretanto, a atuação de um órgão público deve ser imputada à pessoa jurídica a que pertence e, por pertencer a uma pessoa jurídica, os órgãos são despersonalizados e desprovidos de vontade própria. Personalidade jurídica e vontade própria são atributos do corpo e não das partes, ou dos órgãos. É neste ponto que reside sutil diferença: os comitês são colegiados, destituídos de personalidade jurídica, é verdade, mas têm vontade própria. E que vontade!, pois suas decisões são normativas, consultivas e deliberativas.
O que a gestão dos recursos hídricos traz de novo em todo esse processo é a tomada de decisão com base na gestão participativa da sociedade da bacia em conjunto com os usuários da água e com a participação dos poderes executivos. Veja-se que estão presentes nos comitês as três esferas de poder executivo, ou pelo menos duas, no caso em que a bacia somente tenha corpos d’água de domínio de um dado estado. Mas o comitê não é parte, pois não é órgão, nem do executivo federal, nem do estadual tampouco do municipal.
O que difere um comitê de bacia de um órgão público é que o comitê tem vontade própria, o que um órgão público não tem, e sua ação, dentro das atribuições que lhes são conferidas, não é imputada a nenhuma pessoa jurídica. É sob este aspecto que o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Brasil inova. E inova para melhor, fazendo com que organizações com formatos institucionais inteiramente novos, como este dos comitês, atuem, com mandatos enlaçados, não coincidindo com os dos poderes públicos, assegurando a continuidade administrativa na bacia e, daí, projetando as bases para sua governança.
GLOSSÁRIO |
CNRH – Conselho Nacional de Recursos Hídricos é um corpo colegiado formado por representantes dos ministérios e secretarias da Presidência da República com atuação no uso ou na gestão do uso dos recursos hídricos; pela Agência Nacional de Águas – ANA; por representantes dos conselhos estaduais de recursos hídricos, dos usuários da água, e das organizações civis de recursos hídricos. O CNRH ocupa a instância mais alta da hierarquia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. COMITÊ DE BACIA – Também referido como “parlamento das águas na bacia”, os comitês são colegiados que funcionam como reunião de condôminos, discutindo e tomando decisões sobre investimentos, programas, medidas e outras formas de intervenção no espaço da bacia hidrográfica, sendo a instância responsável pela aprovação do plano de recursos hídricos. HOMEOSTASIA – Mecanismo que responde pelo equilíbrio interno dos ecossistemas, corrigindo desvios, eliminando excessos, controlando forças antagônicas, introduzindo, por vezes, fatores novos, procurando sempre manter o conjunto em correto e normal funcionamento. Trata-se, pois, de um processo de auto-regulagem, fruto da sapiência da natureza. ORGANIZAÇÕES CIVIS DE RECURSOS HÍDRICOS – Modalidade de instituições que a Lei Federal no 9433/97 (Artigo 47) assim passou a considerar os consórcios e associações municipais de bacias hidrográficas; as associações regionais, locais ou setoriais de usuários de recursos hídricos; as organizações técnicas e de ensino e pesquisa com interesse na área de recursos hídricos; organizações não-governamentais com objetivos de defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade; e outras organizações que venham a ser reconhecidas pelo Conselho Nacional ou pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. SNRH – É o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, outrora abreviado como SINGREH, sigla que ainda aparece em alguns textos e documentos. É formado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, pela Agência Nacional de Águas, pelos conselhos estaduais de recursos hídricos e do Distrito Federal, pelos comitês de bacia, pelas agências de bacia e por órgãos dos poderes públicos federal, estaduais, do Distrito Federal e municipais cujas competências se relacionem com a gestão dos recursos hídricos. AGÊNCIA DE ÁGUA – Instituições destinadas a atuarem como secretarias executivas dos comitês de bacia, a estes sendo subordinadas. A natureza das agências de bacia não está fixada em lei, pelo menos em lei federal, cabendo a cada comitê, ou grupo de comitês, escolher as instituições que lhes servirão como secretarias executivas. Há, todavia, uma tendência a buscarem-se formatos institucionais do tipo fundações. CORPO D?ÁGUA – Denominação genérica de rios, lagos, lagunas e aqüíferos, em termos de águas continentais interiores. É aplicável, também, aos mares e oceanos. O mar é um corpo d’água gigantesco. BACIA HIDROGRÁFICA – Espaço geográfico cujos aportes hídricos naturais são alimentados exclusivamente pelas precipitações e cujos excessos de água ou de materiais sólidos transportados pela água se dirigem para um único ponto denominado foz ou embocadura, ou ainda exutório. TRIBUTÁRIO – Diz-se de um curso d?água, em relação a outro, cujas águas afluem em direção a este outro. Por isso, são também ditos afluentes. O rio ?A? é tributário, ou afluente, de ?B? quando as águas de ?A? desembocam em ?B?. |