Leonardo Boff

O consenso deve ser para a paz e não para a guerra

17 de fevereiro de 2004

Para desarmar o espírito terrorista, só investindo pesado no diálogo, na luta contra a fome e a miséria










O Globo



Leonardo Boff: ou mudamos ou vamos ao encontro do pior


Folha do Meio – O senhor acredita que os latinos-americanos poderão ter uma participação mais ativa nesses conflitos e estarão dispostos a participarem de uma guerra com os EUA? 


Leonardo Boff – A verdade é que não somos importantes para a estratégia global dos Estados Unidos, pois somos países retardatários e sem peso econômico significativo. Mas eles vão nos impor um completo alinhamento para garantirem uma hegemonia absoluta no mundo. O Brasil poderá manter uma atitude equidistante: condenar com veemência o terrorismo em todas as suas formas (incluindo o terrorismo de Estado levado avante pelos Estados Unidos contra o Iraque, Sudão, Líbia, escondidos atrás de Israel contra os palestinos), ao mesmo tempo distanciar-se de estratégias que impliquem mais violência que, inevitavelmente produzirão mais terrorismo. O Brasil não deve aceitar os termos impostos pelos americanos de que se trata de uma guerra. A questão não é militar, mas política. Há humilhações, amarguras, indignação contra a política exterior norte-americana que favorece reações violentas sob a forma de terrorismo. O que os EUA deveriam fazer é mudar a sua política externa buscando diálogo incansável, consensos, investimentos pesados na luta contra a fome e a miséria. Isso desarma o espírito terrorista. O Brasil deverá apoiar métodos pacifistas para alcançar a paz e não métodos belicosos.






O Desafio do Século XXI é a sustentabilidade do planeta: ou mudamos o padrão de desenvolvimento ou morreremos todos. Como aconteceu com os dinossauros.


FMA – Uma outra ferida ficou exposta após os atentados: a xenofobia americana, o racismo com outras etnias. Qual o futuro do mundo? Que iniciativas vão surgir? Como os membros da nova Carta da Terra pensam?


L. Boff – O caos nunca é caótico. Ele é geralmente generativo. Gera discussões, novas visões e um horizonte diferente que impeça atos como aqueles praticados nos Estados Unidos. Nesse sentido, sou otimista. A Carta da Terra oferece a base espiritual e ideólogica para um consenso na defesa da Terra, da vida e do futuro da humanidade. Todas as coisas possuem também um caráter simbólico: o atentado terrorista atingiu os três ícones que sustentam o sistema globalizado: o ícone econômico representado pelas torres gêmeas que ruíram; o ícone militar encarnado pelo Pentágono; e o ícone da Casa Branca, cujo avião que ia cair sobre ela, foi derrubado antes. A articulação desses três poderes fazem que o sistema mundial seja altamente excludente pelo lado econômico. Altamente destrutivo pelo lado militar, pois a partir do Pentágono se pode destruir 25 vezes a biosfera. O Pentágono é a instituição de maior terror contra a Terra e a vida em todas as suas formas. É altamente dominador pelo lado político, quer o alinhamento de todos às estratégias norte-americanas.


O ruir destes três símbolos significa que o sistema vai ruir mais cedo ou mais tarde, caso contrário ele pode ameaçar a Terra. A humanidade deve se construir a partir de outros valores e de outros ícones, centrados na vida, na cooperaçao de todos, em centros de administração global das necessidades comuns dos humanos na Terra (a governança global). Tudo isso será aprofundado por muitos centros de pensamento mundial.


FMA – Uma questão que parece simples: enquanto historiografias do Apocalípse enfatizam o Divino, a Natureza e o Cosmo, é o homem – dito racional – o grande agente do fim. Será mesmo?


L. Boff – O ser humano precisa incorporar em sua análise o fato de que somos homo sapiens e homo demens. Somos seres de sensatez e seres de demência. Isso pertence à estrutura do ser humano. Não é algo marginal mas substancial. Assistimos a emergência em forma de terrorismo avassalador. Também o inumano pertence ao humano. Há um fato inédito na história: construímos o princípio da auto-destruição. Podemos exercer a função de um meteoro rasante que liquidou os dinossauros e 90% da biosfera. Somos responsáveis pelo futuro da única casa comum que temos, a Terra, e pelo futuro da humanidade. Por isso é urgente a mudança do padrão civilizatório para começarmos uma história assentada na cooperação e não na competitividade. Ou mudamos ou vamos ao encontro do pior. Mas podemos criar mais chances para a vida e para o futuro da Terra na medida em que controlamos nossa dimensão-demência, através do cuidado mútuo, da solidariedade universal, da compaixão com todos os que sofrem e com uma decisão firme pela paz como meio e como fim do convívio humano.






Assim como há crimes contra a humanidade (Pinochet e Milosovic estão sendo levados às barras dos tribunais), assim também há violações contra a dignidade da Terra e seus agressores devem ser adequadamente punidos por tribunais a serem criados.


FMA – O WWF divulgou um estudo onde diz que se o processo de globalização e de inovação tecnológica dos 7 países ricos continuar nesse patamar será preciso uma terra e meia de recursos naturais para suportar o padrão de consumo. O que o senhor acha? 


L. Boff – Tal constatação foi enunciada ainda nos anos 50 por Gandhi. Ele denunciava que se a Inglaterra teve que explorar praticamente quase toda a Terra, para ser o que é, quantas Terras seriam necessárias para que a Índia fosse como a Inglaterra? E acresecentava: a Terra é suficiente para todos os seres vivos, mas não o é para todos os consumistas. Assumo como minha essa resposta, quer dizer, o atual modelo de produção e consumo, predador da natureza, explorador dos trabalhadores e individualistas não consegue garantir a sustentabilidade da Terra. Ou mudamos o padrão de desenvolvimento ou morremos todos. Como aconteceu com os dinossauros.






O Brasil precisa se conscientizar do fato de que ele é detentor da riqueza mais importante da Terra, a biodiversidade, e a de importantes recursos alternativos de energia. O Brasil poderá ser a potência mundial das águas, e a potência da produção bens a partir das florestas.


FMA – Nessa mesma linha de raciocíno, os executores de políticas ambientais enfrentam o grande desafio de ter que fazer escolhas difíceis principalmente na questão que envolve os recursos ambientais do planeta. Como representante brasileiro na Carta da Terra, quais são as novas idéias que precisam ser implantadas?


L. Boff – A Carta da Terra parte da constatação e da consciência de que o atual modelo de desenvolvimento é danoso para o futuro do Planeta e da humanidade. Temos que inventar um novo paradigma de civilização dentro do qual o solidário com todos os humanos é caracterizado pelo cuidado para com todos os seres vivos e inertes da natureza. Desta vez não há uma Arca de Nóe(6) que salve alguns e deixe perecer os demais. Ou inauguramos um novo padrão civilizatório de produção responsável e consumo solidário ou destruiremos as bases que sustentam a biosfera e o projeto planetário humano.


FMA – Como assegurar o bem estar das novas gerações e garantir essa frágil teia que suporta e alimenta a vida do planeta? 


L. Boff – Precisamos de uma nova ética, do cuidado, da solidariedade, da acolhida da diferença, da responsabilidade pelo futuro comum e da comunhão com todos os seres do universo. Precisamos de uma óptica para sustentar uma nova ética. Essa óptica se funda nos resultados mais seguros das ciências da Terra e da nova cosmologia (visão do mundo). Segundo ela, tudo está relacionado com tudo, todos somos interdependentes do todo. Mais que a vitória do mais forte se faz mister a solidariedade de todos com todos, pois isso garante a sobrevivência de todos e a inclusão de todos no processo evolutivo aberto e sempre ainda em expansão”. 






O Casamento entre o Céu e a Terra


O livro O Casamento entre o Céu e a Terra – Editora Salamandra, RJ – se situa no âmbito da celebração dos 500 Anos de presença européia no Brasil. Os indígenas não foram chamados a participar desta memória que, na perspectiva deles, é sinistra. Antes, foram afastados com truculência, bem no estilo de como sempre foram tratados pelo Estado brasileiro. Leonardo Boff procurou pagar, ainda que modestamente, a dívida que a sociedade brasileira tem para com eles. Recontou 30 contos de suas tradições, onde aparece uma sabedoria e uma observação da realidade que muito temos que aprender. Depois apresentou a eventual colaboração que podem dar ao processo mundial de globalização. Importante não é apenas admirar a beleza dos contos e mitos, mas ter a consciência de que são povos ameaçados de extinção. Há que haver um comprometimento para garantir ao povo indígena o direito à vida e ao futuro.


FMA – Na sua opinião, o racionamento de energia que a sociedade brasileira está atravessando acendeu a luz nos executores de políticas públicas de que os recursos naturais são finitos? 


L. Boff – Temo que as pessoas fiquem apenas na crítica ao descuido oficial pelo oferecimento de energia e não se dêem conta de que tal crise e racionamento esconde um problema global. Praticamente todos os recursos não renováveis escassos vão acabar nas próximas gerações. A água potável será um bem raro e mais importante que o petróleo, o urânio e o carvão. O Brasil deve pensar em alternativas como a utilização da biomassa e outras fontes renováveis de energia. Nosso país possui uma condição privilegiada no mundo, pois aqui estão as maiores florestas tropicais do planeta, a maior biodiversidade da Terra e as bacias hídricas mais abundantes. Com a depredação das fontes da vida, dentro de duas gerações tudo será racionalizado. Muita coisa racionada, como atualmente se faz com a energia. A solução passa por um um consumo mais solidário e contido. 






Espero que o Brasil seja uma potência em solidariedade, em amor e reverência face à complexidade da natureza e à majestade do universo.


FMA – A complexa série de desafios ambientais que o planeta vem sofrendo (mudanças climáticas, administração obsoleta dos recursos hídricos , controle de poluição ambiental e o manejo dos recursos naturais) requer a inclusão de novos atores no debate ecológico. Como engajar predadores pela ganância ou pela necessidade neste contexto?


L. Boff – Tudo passa por uma nova consciência e por uma ampla informação que cheguem, pela via dos meios de comunicação de massa, a todos os setores da população, mostrando a responsabilidade de cada um pelo futuro comum nosso, da vida e da Terra. E fazer valer regras rigorosas de respeito aos ecossistemas. Assim como há crimes contra a humanidade e em nome dela, Pinochet e Milosovic estão sendo levados às barras dos tribunais, assim também há violações contra a dignidade da Terra e seus agressores devem ser adequadamente punidos por tribunais a serem ainda criados.








GLOSSÁRIO

1. Teólogo
Especialista em Teologia, que é a ciência das coisas divinas. O estudo racional dos textos sagrados e dos dogmas.

2. Holística
Relativo ao holismo, teoria segundo a qual o homem faz parte do universo, que é um todo indivisível.


3. Carta da Terra
Documento sobre o meio ambiente elaborado por iniciativa da ONU, com a participação de vários países, para o Desenvolvimento Sustentável.


4. Homo sapiens
Expressão de origem latina para identificar o homem sapiente, o homem sábio.


5. Homo demens
Expressão latina para identificar o homem demente, louco, insensato.


6. Arca de Noé
Segundo a Bíblia, o grande barco construído por Noé para salvar um casal, de cada espécie de animal, do dilúvio.


7. Cosmologia
Ciência que estuda a origem do Cosmo ou os princípios que ordenam o universo em todos seus aspectos.


8. Biomassa
É a quantidade de matéria orgânica viva de um ecossistema. Qualquer matéria de origem vegetal, usada como fonte de energia.


9. Ecossistemas
É o conjunto dos seres vivos e do seu meio ambiente físico, bem como suas relações entre si. Num conceito mais amplo, uma bromélia – que retém nas suas folhas água da chuva e ali se desenvolvem uma coleção de microorganismos – pode ser um ecossistema. O Cerrado, as florestas tropicais, a Caatinga, espaços que abrangem um conjunto diversificado de ecossistemas, são chamados de biomas.


FMA – O Brasil é detentor de uma das mais ricas biodiversidades do planeta. No entanto, as deficiências educacionais fazem com que o país assuma o papel de exportador de matérias primas. Mesmo as comunidades indígenas – aquelas que melhor se relacionam com o desenvolvimento sustentável – não resistem às tentações do mercado internacional. Quais são as propostas que o senhor acrescentará à Carta da Terra? 


L. Boff – A Carta da Terra foi discutida de baixo para cima, envolvendo milhares de pessoas e centenas de países. Ela contempla os principais pontos críticos, como esse apontado, que aumentam o deficit da Terra em termos de sustentabilidade. Ela defende os vários modos de produção, especialmente, aqueles considerados arcaicos mas que preservam a natureza, estabelecem comunhão com ela e ainda garantem o sustento das pessoas. Os indígenas agem contra o seu modo de ser que é cheio de reverência e de respeito face aos seres da natureza. Foram seduzidos pela vontade de lucro fácil, própria de nosso sistema. Eles são antes vítimas que causadores de desequilíbrio ecológico. O Brasil precisa conscientizar-se do fato de que ele é detentor da riqueza mais importante da Terra, a biodiversidade, e a de importantes recursos alternativos de energia. 


Dentro de não muitos anos, o Brasil poderá ser a potência mundial das águas, e da produção bens estratégicos a partir das florestas. Oxalá seja uma potência diferente daquela que conhecemos historicamente que usam do poder para dominar ou subalternizar os outros a seus interesses: espero que o Brasil seja uma potência em solidariedade, em sentido de inclusão de todos e de amor e reverância face à complexidade da natureza e à majestade do universo. 


FMA – Alguns escritores, depois de um viver mais longo, renegam o que escreveram no início de suas carreiras. O senhor acredita que um projeto de pesquisa literária leva a outro projeto que se aperfeiçoa no próximo e assim por diante? 


L. Boff – Comecei jovem ainda a escrever ensaios de filosofia e de teologia, antes mesmo de fazer minha especialização na Alemanha. E prolonguei essas atividades até os dias de hoje. Relendo meu diário, percebo que os temas sempre recorrentes em minhas ?matutações? constituem o material principal de minha produção atual. Seguramente o horizonte se alargou. Mas quase tudo estava lá desde o começo. Não renego nada, pois vejo certa coerência entre o que fui e o que sou hoje.


 


Mais informações:
www.cartadelatierra.org
www.earthcharter.org