Mercado de Águas

Começa nascer no Brasil o mercado de águas

2 de fevereiro de 2004

E pode um recurso natural, como a água, com forte característica de bem social, ser objeto da atividade comercial?

Nosso planeta é terra, água e ar. A terra sempre foi objeto de desejo, de transação comercial e de muita guerra. O ar começa a preocupar por causa da qualidade de vida nas cidades e do efeito estufa. E a água? Onde ela é escassa já é motivo de guerra e até onde ela é abundante também já motivo de conflitos. E de várias formas de conflito: pelo uso, pelo abuso, pela poluição, pelo desperdício e sempre pela necessidade vital que os recursos hídricos representam na vida de todos os seres vivos. E, assim, a lei de mercado continua irrevogável: quanto menor a oferta, mais caro fica o produto. Essa é a realidade de nossos dias. A água, abundante e preciosa, é a substância que está presente na vida do ser humano em todos os momentos. Mas, quem diria, a água virar objeto de disputadíssimas transações? Bem, até o momento, todos conhecem uma única transação: é a compra dos serviços de captação, reservas, tratamento e distribuição para o uso nos lares.

E, assim mesmo, uma transação de compra e venda na qual o fornecedor é o governo ou uma concessionária, e o consumidor é a família e as empresas. Mas o tema agora é mercado. E que mercado é este? Quem são os agentes econômicos atuantes neste mercado? E pode um recurso natural, como a água, com forte característica de bem social, ser objeto da atividade comercial? Uma verdade deve ser dita: o mercado de águas não passa de uma conseqüência, entre outros fatores, dos maus tratos que o próprio homem tem imposto aos recursos hídricos quando ainda em seus mananciais. Portanto, é algo que pode deixar de ser posto em prática, caso o homem se conscientize de seu valor, evitando a poluição e o desperdício para usar a água com racionalidade. Então, conforme explica nesta entrevista o professor Raymundo Garrido(foto), secretário de Recursos Hídricos do MMA, o mercado de águas é um antídoto à perversa degradação causada pela atividade antrópica sobre as bacias hidrográficas. Quer saber mais sobre o futuro deste mercado? Bem, vamos à entrevista.

FMA – O que é mercado mercado de águas?
Garrido –
Há várias definições para a palavra mercado, de acordo com a teoria microeconômica. Um mercado é, por exemplo, um local onde os ofertantes expõem suas mercadorias para vender e os compradores comparecem para comprá-las. Modernamente, a noção de mercado dispensa a necessidade de um "local" ou mesmo "área geográfica" para existir. De maneira mais simples, pode-se afirmar que mercado é um conjunto de pontos de contato entre compradores e vendedores de bens e/ou serviços. Assim, mercado de águas podemos explicar como uma conseqüência direta da necessidade de se utilizar a água bruta de mananciais de modo cada vez mais eficiente. Veja que a água tem escasseado em razão, principalmente, das mais diversas atividades do homem. O homem usa, abusa, degrada, polui e, com isso, o próprio homem vai ter que captar água em pontos cada vez mais distantes dos centros de consumo.

FMA – Mas qual a razão direta deste mercado?
Garrido –
Bem, então vamos diretamente às razões desse mercado. A utilização dos recursos hídricos pelos agentes econômicos (irrigantes, indústrias, companhias de saneamento etc) depende de outorga de direito de uso da água. Ora, não é de se esperar que o simples fato de determinado usuário ter obtido essa outorga, que este será obrigatoriamente o mais produtivo, o mais eficiente no uso da água em relação a todos os demais usuários. Veja-se que a emissão da outorga em favor deste ou daquele usuário depende apenas da precedência do pleito, ou seja, de o usuário entrar em uma burocrática fila do serviço público. Estando com a documentação em ordem e dentro dos padrões técnicos de norma, ele pode obter a sua outorga, desde, naturalmente, que haja água no manancial.
Mas o que sucede é que nem sempre o usuário outorgado é o mais eficiente no uso da água, além do que os mananciais nem sempre têm água em abundância para atender à demanda de todos. É necessário, então, que se estabeleçam critérios de repartição da água, além do critério da outorga. E o critério mais apropriado para o alcance da eficiência é o de se explorar, tanto quanto possível, as possibilidades de um mercado dos direitos de uso da água de mananciais. Assim, o mercado de que estamos falando é o desses direitos, como se cada usuário outorgado recebesse um certificado. E esse certificado poderia ser transacionado com outros usuários, desde que não causasse prejuízos a terceiros, nem aos meios físico e biótico da própria bacia hidrográfica.

FMA – Se isso é possível acontecer, como funcionaria esse mercado?
Garrido –
Vamos imaginar dois usuários da água, de mesma natureza. Por exemplo, dois irrigantes. Eles têm propriedades rurais ribeirinhas e localizados lado a lado, isto é, vizinhos "de cerca" e usando a água do mesmo rio. Vamos considerar, também, para facilidade de raciocínio, que não exista nenhum outro usuário nessa bacia, para qualquer finalidade de uso da água e que a água do rio só seja suficiente para atender a esses dois irrigantes. Isso até mostra a condição de quase escassez do recurso. Tomemos por hipótese, também, o fato de que esses dois irrigantes retirem do rio vazões diferentes. Agora, sucede que o segundo irrigante, o que está a jusante, ou seja, abaixo, resolve ampliar a sua produção irrigada, necessitando de uma vazão maior. Mas o rio não tem mais capacidade de atendê-lo. Qual a solução? O segundo irrigante vai propor ao primeiro (o que está a montante) comprar o acréscimo de vazão de que necessita.

Ainda falta uma legislação adequada para a transação

FMA – E ele tem total liberdade para negociar?
Garrido –
Total! Esse primeiro irrigante vai estudar a proposta recebida de seu concorrente e decidirá, livremente, se vende ou não o seu direito de utilizar as águas do manancial escasso. Ou, mesmo, parte desse direito. É óbvio que a decisão do irrigante a montante, que vai vender o seu direito, depende do que será melhor para ele. Ele pode vender seu direito, ganhando mais com a transação, ou pode continuar irrigando com a sua vazão original e lucrando mais com a venda das cultivares irrigadas.

FMA – O irrigante a jusante terá que pagar o mesmo que seu companheiro pagou para ter o direito de outorga ou o preço é livre?
Garrido –
Perfeito, aí é que entra a questão do mercado. Aí nasce a negociação. O irrigante que quer comprar direitos adicionais de uso da água pode resolver pagar mais e aumenta sua oferta. Cada um vai fazer os seus cálculos e chegar num acordo que favoreça um e outro. Essa negociação em um mercado de águas funciona como em qualquer outro tipo de mercado. Como no velho ditado, um negócio é bom quando é bom para os dois.

FMA – E se na área tiver mais de dois irrigantes?
Garrido –
Então vamos supor que existam três irrigantes, novamente vizinhos de beira de rio. Nessa situação, o irrigante que quer comprar mais direitos de uso tem a opção de propor a dois outros e não somente a um só. Trata-se de um mercado ligeiramente maior do que aquele do exemplo hipotético de apenas dois agentes usuários da água na bacia. Vamos agora diretamente ao pleno plural: digamos que existam muitos usuários, vários querendo comprar direitos de uso e vários em condições de vender esses direitos. Estamos diante de um potencial mercado de águas.

FMA – E se eles não forem vizinhos de cerca e entre eles existir uma barragem para gerar energia?
Garrido –
Aí você chegou no ponto. Veja bem, se o usuário candidato a comprador do direito a usar maiores volumes de água for o de montante, pode ser que essa transação afete a hidrelétrica, pois a irrigação é um uso consuntivo e o irrigante que agora vai consumir mais água, situando-se antes da hidrelétrica em relação ao fluxo das águas do rio, poderá prejudicar o funcionamento da barragem. É justamente aí que surge a necessidade da regulação, ou seja, se se pretende tirar proveito do mercado de águas e suas vantagens, é necessário que se adotem critérios de regulação da atividade em si e do próprio mercado de água. Mais uma vez voltamos à gestão dos recursos hídricos.
Assim, chegamos a uma importante constatação: para haver qualquer transação de certificados de direito de uso da água, é imperioso contar-se com um bom, vigoroso e consistente sistema de regulação.

FMA – E o Brasil está preparado para ter esse sistema de regulação?
Garrido –
Podemos dizer que está em fase adiantada de preparação. O Brasil já conta com entidades ou órgãos gestores de recursos hídricos, seja na esfera federal, seja no plano das administrações estaduais. No caso da Administração Pública Federal, é à Agência Nacional de Águas, à ANA que cabe essa tarefa.
O que ainda falta é uma legislação que dê aos usuários da água de mananciais a condição de transacionar com os seus respectivos direitos de uso, condição essencial para a edição de normas regulatórias sobre a matéria. Mas, já há avanços no horizonte. O deputado federal Paulo Magalhães (PFL-BA) apresentou um Projeto de Lei abordando a matéria. Esse projeto carrega consigo uma expressão futurista do estágio em que chegará a gestão de recursos hídricos no Brasil. Ou seja, a existência de um mercado de águas cercado de todos os requisitos da regulação, deixando que tudo o mais corra por conta do livre jogo de interesses dos agentes produtores que, em suas respectivas atividades, dependem do uso das águas de mananciais. O deputado Paulo Magalhães realmente abordou, em sua proposta, quase tudo quanto um mercado de águas deve conter e, estou certo, a implementação desse mercado colocará o Brasil na vanguarda do processo de gestão dos recursos hídricos no contexto dos países que vêm avançando nesta questão.

FMA – Que fatores do ambiente físico e do ponto de vista das ciências da terra influem nesse mercado?
Garrido –
São vários. Veja, a água é a mercadoria em jogo. Se seu uso é disputado, é necessário que haja água e que esta seja objeto de disputa, o que sucede, principalmente quando a escassez se avizinha. Portanto, é preciso que haja água, mas não em abundância, porque em situações de abundância o preço cai a zero e não há mercado possível. Por exemplo, é provável que a Amazônia não tenha que recorrer a esse mercado por décadas, tal é o nível de superabundância de água doce na região. Sob outro ângulo, o mercado de água somente funcionará adequadamente se algumas condições ambientais se satisfizerem. A primeira delas está relacionada com o fato de as águas se encontrarem permanentemente em movimento, sobretudo as de rios, que por isso mesmo são chamados de cursos d'água. O que sucede é que a localização dos usuários, uns a jusante dos outros, torna-se fator de limitação ao acionamento pleno do mercado, pois a venda de direito ao uso de jusante para montante pode trazer prejuízo para outros usos que se situem em pontos intermediários. Vale lembrar o caso dos usuários que tinham uma hidrelétrica no meio do caminho.

Projeto na Câmara Federal cria o Banco da Água

FMA – E se um comprador for potencial poluidor e quiser a água de um usuário
que nunca foi poluidor da água?
Garrido –
Daí a importância da regulação. Essa é uma outra condição essencial que resulta do uso que o comprador do direito vai fazer da água que, pode, em certos casos, ser gerador de algum tipo de poluição que o usuário presente não produz. Seria o caso, por exemplo, de uma indústria sofisticada em termos de tecnologia limpa que vendesse seu direito ao uso da água a um irrigante. Sabe-se que a água da irrigação gera lixiviados de herbicidas, fungicidas e outros produtos fitossanitários, fazendo aparecer doses de contaminação difusa, o que reflete uma nova e indesejável condição ambiental no espaço da bacia hidrográfica. Além disso, a irrigação nem sempre é feita com o necessário projeto de drenagem – muito comum no Brasil – do que resultam impactos ambientais adversos, entre outros os elevados graus de salinização dos solos. A questão será posta para o órgão gestor.

FMA – Que fatores de natureza legal e institucional podem contribuir para que o
mercado de águas opere corretamente?
Garrido –
Em primeiro lugar, é preciso que a legislação autorize explicitamente que o detentor de direito de uso da água, ou seja, o administrador outorgado, possa vender esse direito a outro usuário, o qual poderá fazer uso do mesmo em outro lugar da bacia e/ou em outro tipo de uso da água. Ao mesmo tempo, a legislação deve prever que toda e qualquer transferência não pode causar efeitos adversos a terceiros nem ao meio ambiente.
A realocação do direito ao uso da água resultante do funcionamento do mercado atuará como estímulo à eficiência nesse uso, do que resultará, com o tempo, o adiamento da necessidade de novas obras para o abastecimento de água. Mas, como dificilmente dois usos da água de uma bacia são idênticos, necessária torna-se a intermediação administrativa, o que deve ser provido pela autoridade que emite as outorgas e se ocupa da gestão dos recursos hídricos. Dessa forma, requer-se que a autoridade que se ocupa da gestão tenha um completo e detalhado cadastro de todos os usos na bacia, além de um acurado conhecimento de sua hidrologia e hidrogeologia. Apesar da necessidade de uma consistente atividade reguladora, deve-se procurar simplificar os procedimentos para a transferência de direitos entre os usuários da água. E, no caso brasileiro, se deve buscar, também, a uniformidade de critérios de gestão entre as esferas federal e estaduais de poder executivo, dada a coexistência dos dois domínios da água no Brasil, o da União e o dos estados.

FMA – Há outros requisitos para o bom funcionamento do mercado de águas
já contemplados pela legislação brasileira?
Garrido –
Existem. É o caso, por exemplo, da caducidade da outorga por falta de uso por três anos ininterruptos ou cinco não ininterruptos. Esse dispositivo é de extrema utilidade para manter elevado o número de agentes – usuários da água – atuantes no mercado. Uma das tarefas mais importantes da autoridade gestora do uso dos recursos hídricos, no caso de uma transferência de direito, é a de verificar muito bem como serão afetados os demais usuários da bacia e, também, o impacto ambiental. Essa verificação tem que ser a mais criteriosa possível, por isso as transferências de direitos entre usuários devem ser tornadas públicas desde a fase de intenção das partes em transacionarem. O edital deve ser publicado tão logo a autoridade gestora receba a proposta de mediação da transferência.

FMA – Voltemos ao projeto do deputado Paulo Magalhães. O PL está completo?
Garrido –
Êle tem texto bastante avançado e, praticamente, abordou todas as questões de interesse. Portanto, não há reparo a fazer. Mas ele pode ser enriquecido pelo debate que decerto ainda vai se desenrolar no Congresso, pois há uma quantidade grande de técnicos que está interessada em contribuir. Um ponto que pode ser objeto de discussão, por exemplo, é o fato de que os volumes de água objeto de transação em termos do direito ao uso sejam apenas aqueles que representam o consumo verdadeiro do usuário.

FMA – Um exemplo?
Garrido –
Um exemplo sempre explica melhor. Vamos imaginar que determinada fábrica retire um metro cúbico por segundo de água de um rio e, ao devolver, sob a forma de efluente líquido tratado, o faça em vazão igual a 0,80 m3/seg. O que significa isto? Significa que essa fábrica, em seu processo, consumiu 0,20 m3/seg, seja por uso propriamente dito seja por perdas do processo, evaporação etc. Neste caso, eu quero crer que valha a pena discutir, no âmbito do projeto do deputado Paulo Magalhães, a possibilidade de apenas os 0,20 m3/seg ser a vazão sujeita ao mercado de certificados de direito de uso da água. A vantagem dessa proposta é a de estimular o usuário a devolver efluentes tratados e a reduzir suas perdas. Ele vai saber que é melhor não ter perdas. É melhor utilizar a quantidade de água estritamente necessária, do que ter que ir ao mercado de água para comprar direito de uso adicional. Até mesmo porque consumir tempo com essa atividade não corresponde ao objetivo social da empresa fabril. E o mesmo ocorreria com outros tipos de usuários da água, que estariam em busca da eficiência no uso dos recursos hídricos e na preservação destes. O deputado Paulo Magalhães estudou muito e foi tão preciso em sua proposta, que a tramitação na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias sequer recebeu emendas, o que poderia ter ocorrido até 28 de agosto de 2002. Mais ainda: o projeto é futurista ao propor que sejam estudadas as possibilidades da criação de um Banco da Água, que poderá ser o sucedâneo do Fundo Nacional de Recursos Hídricos, ainda a ser criado. O banco tem uma vantagem: pode conferir uma dinâmica maior ao mercado de águas.

FMA – Mas o deputado Fernando Gabeira, que é o relator, acaba de
apresentar um voto pela rejeição deste Projeto de Lei?
Garrido –
É verdade, mas vale lembrar que o deputado Gabeira também é o relator do projeto 1616/99, que o Executivo deu entrada no Congresso, juntamente com o Projeto 1617, que deu origem à criação da ANA e este projeto já recebeu seu voto favorável na mesma comissão de mérito. Eu vejo muita fragilidade nos argumentos do relator. Sei que o Gabeiro é estudioso do tema, mas sei também que outros parlamentares pretendem discutir e combater a posição do Gabeira com vários argumentos. Primeiro, porque o relator acha equivocadamente que o mercado fará com que a água se torne propriedade particular. Que pode ser privatizada. Sucede que a expressão “mercado de águas” não significa comprar e vender água. Água é um bem público, constitucionalmente inalienável. Isso significa transações com o direito de uso da água, que é dado pela outorga, entre usuários, mediante a arbitragem da ANA. Segundo, quanto ao Fundo de Recursos Hídricos proposto pelo projeto 6979, Gabeira diz que será um vazadouro do dinheiro da cobrança que, pela Lei 9.433/97 deve ser aplicado prioritariamente na bacia geradora da arrecadação. Acontece que o Fundo proposto receberá apenas 2,5% da arrecadação da cobrança, retirados dos 7,5% que a Lei 9.433/97 já autoriza que não fiquem na bacia, devendo ser aplicados na implantação e custeio das entidades e órgãos integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Portanto, a criação do Fundo não afetará a receita da cobrança que ficará na bacia.

FMA – Como ficaria a transferência de direito de uso da água em um
rio de determinado domínio para outro do outro domínio?
Garrido –
O PL-6979/2002 também se ocupou dessa questão. Primeiramente estimulando as transações sobre um mesmo curso dágua, ou seja, dentro de um mesmo domínio. Em seguida, o texto do projeto sugere que os estados estudem as possibilidades de estimularem a prática do mercado de águas em corpos d'água de seus respectivos domínios. Daí para as transferências de direitos começarem a ocorrer entre corpos d'água de distintos domínios, não vai uma grande distância. Em verdade, o mercado deve ocorrer, tanto quanto possível, pelo menos nos primeiros anos, dentro de uma mesma bacia. Mas será, inclusive, possível, haver transferências entre bacias diferentes, para tanto criando-se um critério de equalização de condições entre uma e outra bacias, o que, aliás, o mencionado projeto de lei também cuidou de prever.

O papel principal é da ANA. Nos EUA esse mercado está até na internet

FMA – Então os estados vão poder fazer transferências de direitos de uso no caso das águas subterrâneas?
Garrido –
Claro! Não somente entre usuários de águas subterrâneas, como também poderão ocorrer casos em que o direito ao uso de determinada vazão de água abstraída de aqüífero seja transferido a um usuário de águas superficiais. O que ocorrerá certamente é que aparecerão, no futuro, cotações de preços da água, os quais poderão ser diferenciados em função das diferenças entre as fontes. As águas subterrâneas do aqüífero Guarany, nobres que são, certamente terão uma boa cotação nesse mercado. Em outras palavras, o detentor de uma outorga de direito de uso dessas águas terá em mãos um bem valioso se resolver ir ao mercado. O mercado da água será tanto mais efervescente quanto maior for a atividade econômica. É nesses casos que os preços de transações com os certificados de direito estarão refletindo a dinâmica da lei da oferta e da procura, ancorando-se em um determinado nível de equilíbrio que é preço de mercado. Certamente isto sucederá em regiões como as das bacias do Piracicaba (SP-MG), do Paraíba do Sul, Paranaíba, São Francisco e outras mais.

FMA – Qual o papel da ANA nesse mercado?
Garrido –
A ANA está no centro da questão. Como essa agência responde pela implementação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, caberá à ANA regulamentar as resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos que dispuserem sobre a matéria. Não é ocioso lembrar que ao CNRH cabe a tarefa de estabelecer as diretrizes complementares para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, e isto é feito por meio de resoluções aprovadas por sua Plenária. Assim, no momento em que o projeto do deputado Paulo Magalhães tornar-se lei federal, logo o CNRH tratará de regulamentá-lo, via resoluções. Em seguida, a ANA passa a editar resoluções, aprovadas por sua diretoria colegiada, as quais detalharão os aspectos de relevo das resoluções do CNRH para fins de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Além disso, é à ANA que os usuários interessados em transacionarem direitos de uso da água se dirigem, pois a transação será previamente analisada pela agência, que verificará se todos os requisitos para a transação ser operada estão integralmente satisfeitos. A Agência Nacional de Águas também será o elo de articulação da União com os estados para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, inclusive no que concerne ao mercado de águas.

FMA – Afinal, as diretrizes complementares da Política de Recursos Hídricos são tarefas do Conselho ou é o presidente da República que estabelece essas diretrizes por Decreto?
Garrido –
De fato, o presiden te da República regulamenta, ou seja, explica e detalha as leis federais, para tanto fazendo uso do instrumento do decreto. No caso da lei das águas, a Lei Federal no 9.433/97, o Presidente transferiu essa responsabilidade para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, ao acolher, no ato de sanção, o inciso VI do artigo 35, delegando ao CNRH essa responsabilidade. E isto foi feito em perfeita consonância com um dos fundamentos da própria lei, pois no seu artigo 1ª, inciso VI, o texto diz que "a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades".
Conforme se sabe, o CNRH é um corpo colegiado, do mais alto nível de hierarquia, onde todos esses agentes estão representados. Nesse sentido, vale sublinhar uma posição do governo Fernando Henrique, mostrando que a gestão da água de mananciais, no Brasil, é para ser compartilhada.

FMA – Uma última questão. E esse mercado pode desaguar também no campo virtual.
Pode ter negócio pela internet?
Garrido –
Esse mercado virtual já existe no Estados Unidos. Segundo meu amigo Márcio Amazonas, brasileiro dos mais competentes e que hoje assessora a Coca-Cola Internacional, em Atlanta, na questão da água, o mercado de águas nos Estados Unidos só funciona a oeste do Mississipi, que herdou dos espanhóis um direito de propriedade baseado na doutrina da apropriação prévia First in time, first in right. Como a água vem se tornando escassa, as instituições foram se sofisticando, criando garantias, usos exclusivos, sistemas de leasing e transações via internet, com acompanhamento de preços em tempo real, como uma bolsa de mercadorias. O mercado de águas na internet já existe há algum tempo. O principal site era <www.Water2Water.com>. O próprio Márcio Amazonas me disse que o mercado on-line só decolou em 2000 no Baixo Rio Grande, cobrindo 1.173 milhas da fronteira Texas/México. Outras iniciativas semelhantes foram implementadas no Colorado <http://www.waterrightsmarket.com/companyinfo.asp> e o WaterBank de Albuquerque, Novo México. Segundo o Amazonas, trata-se de uma ferramenta que dá agilidade e transparência aos negócios, mas aparentemente não vem dando muito certo.
Mais informações: O mercado de águas nos EUA é explicado em detalhes no livro "Water Markets – Priming the Invisible Pump",
publicado em 1997 pelo Cato Institute (http://www.perc.org/publications/ policyseries/priming_full.html).