Raymundo Garrido explica o projeto de transposição do rio São Francisco
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Folha do Meio – O que é uma transposição de águas?
Garrido – É a transferência de águas entre bacias hidrográficas é uma das várias formas de se satisfazer à demanda crescente por água em regiões nas quais os mananciais não oferecem a disponibilidade desse recurso natural necessária ao desenvolvimento. Trata-se, pois, de uma medida extremamente útil a regiões em que o balanço hídrico se situa em níveis de desconforto ou crítico.
Uma transposição de bacias é mais do que uma obra de engenharia. É, sobretudo, um empreendimento de gestão. Implica importantes tarefas para o bom gerenciamento dos recursos hídricos.
FMA – Como funciona esse balanço hídrico?
Garrido – Na “contabilidade da água”, o que se passa em um projeto de transposição é que, uma região, dita de origem da água ou região exportadora, perde exatamente a quantidade de água que a outra, dita de destino da água, ou região importadora, ganha, adicionada das perdas do trajeto. É o próprio princípio contábil das partidas dobradas, encarnando a sua versão hídrica. Isto implica afirmar que as duas regiões têm uma agenda comum a ser cumprida. Em outras palavras, não se deve tomar decisão sobre a transferência de águas sem que as duas regiões se tenham posto de acordo.
FMA – Por que tanta celeuma em torno de grandes transposições?
Garrido – Para maior clareza, considere-se, inicialmente, o que ocorre com a região de origem das águas, ou seja, aquela que apresenta saldo positivo em sua “carteira de recursos hídricos” e que exportará parte desses recursos. Como a água é um bem precioso, economicamente importante, e a demanda pelo seu uso costuma ser, continuada e crescente, a população e o governo da região ficam apreensivos ante a possibilidade de comprometer o seu desenvolvimento futuro pela cessão de vazões para a região interessada na importação dessa água.
E tem mais: a população e o governo da região importadora olham, com um forte desejo, para as áreas próximas e superavitárias em água, nas quais as vazões excedentes são vertidas ao oceano sem qualquer uso “em terra firme”, dado que esses excedentes poderiam minorar, ou mesmo resolver, o seu problema de escassez hídrica. A intensidade desse desejo cresce tendo em vista a possibilidade que têm, em geral, os grandes projetos da envergadura de uma transposição, de serem construídos pelo Governo Federal, às expensas de todos os contribuintes, fazendo com que as águas transferidas de uma bacia para outra(s) possam vir a ser distribuídas por custos inferiores aos custos normais de distribuição.
Ora, com uma área, a de origem dos recursos, alarmada ante a possibilidade de ter que abrir mão de seu desenvolvimento futuro, ou pelo menos de parte deste, e a outra, a de destino das águas, entusiasmada com a probabilidade de resolver, ou pelo menos atenuar, o seu problema de déficit hídrico, e talvez a custos que sequer cobrirão os custos reais, é compreensível que o tema de transferência de águas entre bacias hidrográficas seja responsável por debates não raro acalorados, e mesmo passionais, além de gerar um número razoavelmente grande de problemas de ordem legal, social, econômica, ambiental, dentre outros.
FMA – O que dá sustentação a um projeto de transposição?
Garrido – O problema dos pontos de sustentação a um projeto de transferência de águas entre bacias comporta dois níveis de abordagem. O primeiro, relacionado a aspectos do desenvolvimento nacional e, o segundo, relacionado a questões que devem ser analisadas sob a ótica regional.
Vamos falar do primeiro ponto: o desenvolvimento nacional. Sabe-se que, em princípio, a água deve ser transportada de onde ela for menos produtiva para onde ela for mais produtiva. Isto significa afirmar que o valor econômico da água no destino (região importadora de água) deve ser maior do valor econômico dessa mesma água na origem (região exportadora) adicionado dos custos com o seu transporte. Em outras palavras, a inequação seguinte deve, tanto quanto possível, ser satisfeita pelo projeto:
Valor econ. da água no destino > Valor econ. da água na origem + Custos com o transporte da água
Se a inequação acima se satisfizer, não há dúvida alguma de que, sob o enfoque do desenvolvimento nacional, a transposição é necessária, faltando verificar se reflete a melhor alternativa para solucionar o problema de escassez na região que pretende importar água. Por isto mesmo, ainda sob o ponto de vista do desenvolvimento nacional, é necessário comparar-se o projeto de transposição com outros projetos alternativos que possam, de algum modo, contribuir para a solução do problema de água na região que se candidata a importadora desse recurso natural. Tais projetos vão, desde obras e intervenções de engenharia, até ações sobre a demanda por água, induzindo o usuário desta a uma postura de racionalidade quando de sua decisão de consumi-la. Tem-se observado, em vários países, que um problema de falta de recursos hídricos pode ser solucionado por meio do simples gerenciamento da demanda. Por isso esta possibilidade deve ser explorada à exaustão, sobretudo pelos baixos custos que encerra.
FMA – E sob a ótica regional?
Garrido – Se, ao contrário, a mencionada inequação não se satisfizer, o resultado ainda não constitui requisito suficiente para condenar-se uma transposição. Isto porque, em alguns casos, pode ocorrer que, mesmo não se atendendo ao requisito do desenvolvimento nacional, a região que pretende importar água não conte, efetivamente, com outra saída senão a da transposição. Neste caso, o requisito nacional reflete uma condição necessária, mas não suficiente.
Sob tal circunstância, os pontos de sustentação podem ser verificados através de respostas às seguintes indagações:
1 – Quais as possibilidades de se promover transformações nas economias de ambas as regiões para torná-las menos dependentes de água?
2 – O que se torna necessário fazer na região de destino das águas para que esta esteja preparada para receber a vazão a ser transposta?
3 – Qual a capacidade de pagamento dos futuros usuários dessa água, ou seja, na região importadora, e quais são as necessidades de receita do projeto?
4 – Como é que se pode compensar a região de origem das águas por esta abrir mão de seu desenvolvimento no futuro ao ceder vazões correntemente superavitárias?
5 – Que projetos alternativos ao de transposição podem resolver, ou pelo menos minimizar, o problema da escassez de água na região importadora desse recurso?
Uma vez observadas essas possibilidades e, ainda assim, remanescendo a necessidade de se fazer transferência de águas, então se deve projetar e executar a transposição mínima necessária.
O custo das obras de engenharia é bastante elevado, mas o custo das compensações e salvaguardas pode superar o custo da obra em si |
FMA – Como são orçados os custos de uma transposição?
Garrido – Os custos de uma transposição vão além dos custos da execução de obras. Conforme mencionei, uma transposição de bacias não se enquadra apenas como obra de engenharia. Em geral, são empreendimentos que precisam ser operados e mantidos. Vale a pena conhecer as principais parcelas desse custo:
1 – Custo das obras de engenharia, aí incluídas as obras de super-estrutura, as obras-tronco, as de captação, as de derivações, primária e secundária, e aquelas relativas aos equipamentos que conduzirão a água ao usuário final;
2 – Custos impostos pelos impactos ambientais, determinados pelo valor do sacrifício com a adoção das medidas mitigadoras, adicionados dos custos relativos aos impactos cujas conseqüências não podem ser revertidas – as externalidades negativas do projeto;
3 – Custos com a operação do sistema construído, considerando a amortização dos ativos, o consumo de energia elétrica, os gastos com a mão de obra operacional e os encargos sociais e trabalhistas a esta associados, os custos fixos, custos com transportes, outros insumos, dentre as várias rubricas que compõem os custos operacionais;
4 – Custos com a manutenção do patrimônio construído, abrangendo as ações preventivas, corretivas e sistemáticas, para assegurar a vida útil econômica do empreendimento e seus componentes;
5 – Custos relativos à compensação à área exportadora da água, correspondentes às salvaguardas que a estas se devem conferir, sob as mais diversas formas. Por exemplo, a construção e operação de obras e equipamentos para o armazenamento de água, obras de natureza distinta das hidráulicas, como estradas e hospitais, por exemplo, ou mesmo compensação pecuniária, tudo correspondendo, em valor, às perdas que a sociedade da área de origem da água terá com o descarte de usos futuros da água que vier a exportar.
Para se ter uma idéia da magnitude do montante a que devem chegar essas parcelas, em seu conjunto, considerando-se o fato comum de que o custo das obras de engenharia costuma ser bastante elevado, sobretudo nos casos de grandes transposições hídricas, que são obras de engenharia pesada, basta que se assinale que o valor correspondente à parcela (5) dos custos enumerados anteriormente pode se equiparar, e mesmo superar, esse colossal custo das obras.
Impacto Ambiental – É qualquer alteração no sistema ambiental, físico, químico, biológico, cultural e sócioeconômico provocada por ações humanas. O Rima, ou Relatório de Impacto Ambiental, é justamente o estudo desse impacto para satisfazer as necessidades de um projeto. |
FMA – Que parcelas relativas aos impactos ambientais entram nesses custos?
Garrido – Quanto aos custos com a mitigação de impactos ambientais, estes também costumam apontar para elevadas cifras. Em geral, tais custos se tornam altos principalmente pelo fato de abrangerem uma área que se estende desde a região de origem das águas, passando por todo o trajeto dessas águas e abrangendo outra vasta região, que é a de destino das mesmas. Os estudos de impactos ambientais costumam dividir-se em três blocos principais: os impactos sobre o meio físico; os impactos sobre o meio biótico; e os impactos sobre o meio antrópico.
FMA – Explique melhor esses impactos.
Garrido – É simples. No que diz respeito aos impactos sobre o meio físico, devem ser observados esses principais pontos.
Quantidade de água: níveis, vazão, velocidade; águas subterrâneas; perdas;
Qualidade da água: sedimentos; nutrientes; turbidez; salinidade e alcalinidade; efeitos da temperatura. produtos tóxicos;
Impactos sobre o solo: erosão, assoreamento; salinidade; alcalinidade; padrão de uso do solo; alterações nos teores de minerais e de nutrientes.
Atmosfera: temperatura; evapotranspiração; alterações de micro e macroclima;
Quanto aos impactos sobre o meio biótico, entre outras devem ser observadas a questão do meio aquático: zooplancton; fitoplancton; peixes e vertebrados aquáticos. Além disso, as plantas e os vetores de enfermidades são cuidados a observar. No solo, devem-se computar os impactos sobre os animais, a vegetação e a ocupação territorial.
No que se refere aos impactos sobre o meio antrópico, devem ser avaliados elementos tais como a vida urbana e rural; indústria; agricultura; aquacultura ; energia; navegação; mineração; custos sociais (externalidades); reassentamento e efeitos antropológicos.
FMA – No caso do Brasil, podemos buscar alguma experiência internacional?
Garrido – A experiência internacional com transferência de águas é variada. Países como os Estados Unidos, o Canadá, a ex-União Soviética, Espanha e México têm uma extensa gama de estudos e vários projetos que se concretizaram.
É oportuno assinalar, no entanto, que a primeira geração de projetos de transposição de água entre bacias na maior parte desses países foi realizada sem maiores dificuldades, em razão de três pontos principais, como o porte pequeno desses empreendimentos, não implicando complexa engenharia; o fato de se situarem dentro de uma só jurisdição, estado ou província; e a pouca preocupação, na época, com as questões ambientais.
FMA – Isso o senhor falou da década de 70. E agora?
Garrido – De fato a nova geração de estudos para projetos de transposição de bacias, é constituída de projetos de grande porte, nos quais os problemas de natureza técnica são, não raro, complexos. Além do que, vários desses projetos se estendem por mais de um estado ou província e, em alguns casos, entre territórios de países distintos. Nos projetos de alcance inter-estadual (ou inter-provincial) e internacional, os aspectos institucionais se impõem como uma barreira maior a ser vencida, numa clara demonstração de que as questões político-institucionais são tão ou mais complexas do que os correspondentes problemas técnicos e econômicos.
FMA – Dá para citar alguns exemplos?
Garrido – Aqui no continente americano a transferência de águas entre bacias não é fenômeno novo. Nos Estados Unidos, a cidade de Los Angeles importa água do Owen Valley, a cerca de 400km de distância, desde 1913. Do mencionado ano até esta data, uma série de outros projetos de transposição foram executados, sobretudo no Oeste.
A maior parte das transferências de água no oeste americano tem como origem a bacia do rio Colorado. O pacto de repartição das águas foi assinado em 1922, com a mediação do Congresso, por seis estados, com a recusa do Arizona. “The Colorado River Compact”, como é conhecido, previu a repartição, meio a meio, entre as partes alta e baixa da bacia e, mais tarde, pactos posteriores dividiram as vazões entre os estados. O Arizona viria a assiná-lo, em 1944, quando o Congresso aprovou uma lei limitando o uso da água pela Califórnia.
Mais tarde, a seca de 1930 reacendeu o desejo dos agricultores do leste do Colorado, a leste das montanhas Rochosas, de transporem águas do Colorado, situado a oeste dessas montanhas. Sete anos mais tarde, o Bureau of Reclamation, representando o governo central, assinou um contrato com o Distrito de Conservação do Nordeste do rio Colorado (NCWCD), entidade formada pelos usuários para fazer a negociação. As obras tiveram início em 1940 e foram concluídas no final dos anos 50, ficando clara a responsabilidade do NCWCD de operar e manter o empreendimento, que tomou o nome de Big Thompson.
FMA – E no Canadá?
Garrido – No Canadá, o tema das transposições foi objeto de grandes controvérsias, principalmente durante os anos oitenta. Mas, à exceção da ilha Príncipe Eduardo, praticamente todas as demais províncias canadenses têm, pelo menos, duas experiências de transposição de bacia, a maior parte para fins de geração de energia elétrica. Apenas algumas para outros usos da água. As de maior calibre se encontram em Quebec, Manitoba e Newfoundland. (Veja o quadro ilustrativo)
FMA – Todo mundo no Canadá aceita bem as transposições?
Garrido – Veja bem, até há não muitos anos, o tema das transposições era bem aceito no Canadá. As reações contrárias são mais recentes. Essa oposição à idéia de transferência de águas entre bacias deve-se, principalmente, ao fato se pretenderem realizar transferências entre províncias, trazendo, hoje, disputas relativas à jurisdição. Além disso, hoje está sobre a mesa de discussões a questão dos impactos sobre o meio ambiente, que passaram a constituir grande preocupação no Canadá, a partir do início dos anos setenta, logo após a Conferência de Estocolmo, em 1972.
FMA – E o que se fez em termos de transposições na ex-União Soviética?
Garrido – Apesar de grande, a disponibilidade de água da antiga URSS não é bem distribuída. Nem em termos espaciais nem temporais. Veja que 84% dos mananciais se localizam na Sibéria, no Extremo Leste e no norte da parte européia do país antes de seu desmembramento. Essa disparidade é um convite à transposição de parte dos 84% situados ao norte da parte européia em direção ao mar Cáspio e adjacências. Mas, tais projetos não chegaram a sair do papel.
Dois estudos se destacam no contextos das transposições soviéticas. Ambos, que não foram executados, têm por objetivo a transposição de águas dos rios Ob e Irtish, na Sibéria, para a região dos montes Urais, Sibéria Ocidental, Ásia Central e Casaquistão.
O rio Volga também foi objeto de transposição. O transporte de suas águas para a região do mar Cáspio era para acudir o rápido aumento da demanda por água nas bacias afluentes a esse mar, onde já ocorriam conflitos de uso desde os anos 60. A transposição visava a preencher sobretudo a demanda de 1.286m3/seg do mar Cáspio, e de 418m3/seg do mar de Azov, com o que seria corrigido o regime hidrológico e hidroquímico desses dois mares, repondo suas respectivas produtividades biológicas.
A transposição do Volga tem a seu favor o fato de se tirar grande proveito da gravidade, pois não se utilizam mais do que 150mwh para o bombeio de toda a vazão desviada, o que corresponde a um índice de consumo de energia de 0,234mwh/m3
É bom lembrar que a transposição dos rios Syr-Darya e Amu-Darya, em direção ao mar Cáspio, com o objetivo principal de irrigação, levou a um desastre ambiental sem precedentes. Reduziu o volume do mar de Aral, e transformou o quarto maior mar interior do mundo e a mais rica fonte piscícola da Ásia Central, praticamente num deserto. Com o desmembramento da URSS, o governo de Moscou abandonou o destino desse mal sucedido projeto, que afetou, principalmente, o Uzbesquistão.
FMA – Parece que na Espanha tem uma boa experiência?
Garrido – A experiência espanhola em transposições inclui uma série de trabalhos em diversas partes de seu território, sendo a transferência do Tejo-Segura a de maior realce. Além de transposições de águas superficiais, existem, também, no país, trabalhos que permitem o fluxo de águas subterrâneas entre unidades hidrogeológicas contíguas.
À decisão sobre o Aqueduto Tejo-Segura – ATS, que transporta águas do alto rio Tejo em direção às bacias dos rios Guadiana, Sur, Segura e Júcar, foi regulada por meio das leis 21/1971 e 52/1980, ambas do período franquista, quando as Confederações Hidrográficas do país não se permitiam fazer consultas aos usuários e à sociedade civil. A partir de 1987, quando foi promulgada a Lei 13/1987, passaram a ser transferidas águas do Tejo para a bacia do rio Guadiana, atendendo-se, dessa forma, às demandas da região do Parque Natural de las Tablas de Daimiel.
Há inúmeras transferências de água da bacia do rio Ebro, todas de pequeno porte, uma dirigindo-se para a região Norte II, outras para a região Norte III e ainda outras para a Catalunha.
Finalmente fez-se uma transposição temporária, entre 1995 e 1997, de águas a partir do delta do rio Ebro, por meio de embarcações, para as ilhas Baleares, a cargo do Consórcio de Águas de Tarragona.
FMA – E a experiência brasileira em transposições?
Garrido – A experiência brasileira com transposições de bacias hidrográficas não é grande, pelo menos em termos de transposições de grande porte. A rica malha fluvial brasileira existente nas áreas mais densamente povoadas, juntamente com a ocorrência de águas de sub-superfície, responde por essa relativamente curta experiência, que está associada, não raro, ao entorno de algumas capitais de estados. Deve-se dar destaque a dois casos principais: o da cidade do Rio de Janeiro, que é abastecida por águas rio Paraíba do Sul (47m3/s), desviadas para a dupla finalidade de gerar energia e abastecer a zona urbana do Rio. Vale dizer, o desvio para o rio Guandu é de 147m3/s, sendo que 47m3/s são para abastecer o Rio de Janeiro. e o segundo, o da reversão de águas da bacia do rio Piracicaba (32m3/s) para complementar o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo.
Além desses dois casos, há outros de menor volume, podendo-se destacar a complementação do abastecimento de Salvador com águas aduzidas da barragem de Pedra do Cavalo, no rio Paraguaçu. A complementação do abastecimento da cidade de Recife, a ser alcançada quando da conclusão do complexo da barragem de Pirapama. E o desvio de águas da represa Billings em direção à Baixada Santista para gerar energia a partir da Usina Henry Borden, nas primeiras décadas do século passado.
Transposição – Desde o Império se fala na transposição das águas do rio São Francisco para atender às necessidades do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. O projeto atual consiste na transferência de cerca de 2% das águas do Velho Chico (70m3 por segundo) em dois eixos. O Eixo Norte (de Cabrobó a açude do Pau-dos-Ferros) prevê um conjunto de cinco canais, 12 aquedutos, seis túneis, quatro estações de bombeamento e 13 reservatórios; O eixo Leste (Reservatório de Itaparica ao açude Poço da Cruz e depois açude Poções) prevê um canal, dois túneis, cinco aquedutos, cinco estações de bombeamento e nove reservatórios intermediários. O conjunto dos dois eixos e suas ramificações terá cerca de 700km de extensão. |
FMA – Bem, e o polêmico projeto de transposição do São Francisco?
Garrido – Essa é o que podemos chamar de transposição de grande calibre. Como disse, transposição de grande porte e que envolve vários estados não é fácil. Requer um extenuante trabalho de projeto, cálculos, seu detalhamento e, sobretudo, negociação entre as regiões exportadora e importadora de águas. Tais estudos vêm sendo conduzidos pelo Ministério da Integração Nacional.
Desafortunadamente, o ano de 2001 se caracterizou pelos efeitos da prolongada seca que afetou, principalmente, o setor energético, uma das principais vocações da bacia. Por isso, talvez, o tema tenha saído do debate, mas o que é correto afirmar-se é que os estudos continuam na alçada do Ministério de Integração. Quanto ao papel do Ministério do Meio Ambiente, cabe-lhe observar a questão dos impactos ambientais. A análise das vazões da bacia e sua capacidade para transpor é da alçada da ANA, e a aprovação do projeto depende, evidentemente, do comitê de bacia.
FMA – Por falar em São Francisco, como está sua “saúde”?
Garrido – Do modo como ocorre com a maioria dos rios do país, o Velho Chico apresenta uma série de problemas de degradação. Aliás, referir-se à saúde vem bem a propósito do tema das transposições, que muitas vezes são comparadas com uma transfusão sangüínea, ou seja, requerendo higidez de parte do corpo que vai “exportar” o líquido que, no caso de uma transposição é a água, em lugar do sangue.
Toda a planície do Médio São Francisco (Januária a Xique-Xique) está assoreada, pela baixa declividade e velocidade baixa que enseja a decantação do material sólido em transporte; 84.000km2 da bacia estão fortemente erodidos e 28.000ton de sedimentos são depositadas anualmente em seu leito. Além disso, o leito foi se alargando pelo fenômeno das terras caídas, aumentando a evaporação.
Observam-se, ainda, por toda a parte, matas ciliares fortemente comprometidas, redução da piscosidade e a destruição das lagoas marginais, berçários da vida aquática do rio, com danos para a ictiofauna.
Em Minas, a concentração da atividade mineradora se encontra no Quadrilátero Ferrífero, situado no Alto rio das Velhas e Alto Paraopeba, dois importantes afluentes do São Francisco. A atividade gera resíduos que comprometem a qualidade das águas da bacia. A concentração industrial também é elevada nessa região e compromete a qualidade dos rios. Também a irrigação afeta as sub-bacias do Paracatu, do Verde Grande, do Gorutuba, além das margens do próprio São Francisco. Outra atividade causadora de impactos é o garimpo de diamantes, na serra da Canastra (em São Roque de Minas) e na região de Diamantina. Há, ainda, o desmatamento progressivo em direção ao leito do São Francisco, principalmente no nordeste do estado.
Na Bahia, os grandes empreendimentos hidráulicos trouxeram problemas com o reassentamento de populações. O desmatamento progressivo para agricultura de sequeiro, principalmente para soja, arroz, milho e algodão, tem imposto impactos ambientais apreciáveis. O plantio desenfreado da soja tem causado vossorocas e as nascentes dos rios (os marimbus) desapareceram com a plantação dos buritizais. Há, também, alguns focos de desmatamento, problemas de esgotamento sanitário sem tratamento e assoreamentos provocados pelas dunas de Mocambo dos Ventos, em Xique-Xique.
Em Pernambuco, o problema principal é o esgotamento sanitário, além do desmatamento para exploração econômica e atividade de subsistência. Em Alagoas, os problemas ambientais estão principalmente na Zona da Mata, com a presença de destilarias de álcool (vinhoto) e queima da cana de açúcar (fumaça e fuligem), além da utilização intensa de aditivos químicos.
Em Sergipe, repete-se o problema do esgotamento sanitário, a ação dos matadouros de bovinos e um certo nível de atividade mineradora, além da devastação de manguezais.
Esse quadro de degradação fez com que o Governo Federal colocasse em prática o programa de revitalização da bacia, cujas principais intervenções previstas para o primeiro ano já se encontram em fase inicial de implementação.
FMA – Para terminar, o senhor é a favor ou contra a transposição do São Francisco?
Garrido – Não se trata de ser contra ou a favor. Na minha condição de técnico e servidor público, devo tão somente defender os requisitos para que um projeto de transposição, como disse ao longo da entrevista, seja um projeto eficiente, eficaz e que beneficie a sociedade brasileira, sem causar danos ambientais, econômicos ou financeiros.
Mais informações:
Ministério da Integração Nacional: (61) 414-5800
Secretaria de Recursos Hídricos: (61) 317-1298