Atenção! Cobrança pela água Saiba por que, para que, quando, como e onde pagar
20 de fevereiro de 2004É sempre bom lembrar: se a eletricidade traz conforto, a água mantém a vida
|
?De acordo com a Constituição Federal, a água bruta de ma-nanciais (superficiais e subterrâneos) é um bem público. Sendo assim, a cobrança pelo seu uso somente pode ser feita por um órgão ou entidade pública que seja o detentor do poder outorgante? |
Folha do Meio Ambiente – O que é cobrança pelo uso dos recursos hídricos?
Raymundo Garrido – A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um instrumento de política nacional de gestão do uso da água dos mananciais, previsto desde 1934, no Código de Águas, que foi a primeira lei federal para águas número Brasil. A Lei Federal no 9.433, de 8 de Janeiro de 1997 reafirmou a necessidade da manutenção desse instrumento, sobretudo como elemento indutor de uma postura de racionalidade do usuário da água, para que não haja desperdício.
FMA – Quais os objetivos dessa cobrança?
RG – A cobrança é um instrumento bem abrangente em seus objetivos. Classicamente, consideram-se cinco objetivos como os de maior relevo:
O primeiro é o de contribuir para o gerenciamento da demanda, influenciando na localização espacial da atividade econômica que faça uso intensivo dos recursos hídricos.
Em segundo lugar pretende-se, por meio da cobrança, redistribuir os custos sociais, uma vez que os preços a serem cobrados serão diferenciados de acordo com a capacidade econômica do usuário.
O terceiro objetivo é o de melhorar a qualidade dos esgotos, urbanos e industriais, que retornam aos leitos dos rios, pois a cobrança incidirá, também, sobre o descarte dos efluentes dessas fontes.
O quarto objetivo, que é uma contrapartida, é o de formar fundos para as obras e outras formas de intervenções no espaço da bacia hidrográfica. O quinto e último, é o de fazer incorporar ao planejamento global as dimensões social e ambiental de que se revestem o problema da água de mananciais.
FMA – E quem pode cobrar?
RG – De acordo com a Constituição Federal, a água bruta de mananciais, superficiais e subterrâneos, é um bem público. Sendo assim, a cobrança pelo seu uso, somente pode ser feita por um órgão ou entidade pública, que seja o detentor do poder outorgante, ou seja, que emita as outorgas de direito de uso dos recursos hídricos. No caso de rios ou lagos de domínio da União, essa entidade é a Agência Nacional de Águas. No caso dos estados, pode ser um órgão da administração centralizada, ou uma entidade da administração indireta, conforme a organização administrativa de cada um.
FMA – No caso da cobrança em rios de domínio da União, não se trata de uma centralização indesejável? Como será aplicado o dinheiro arrecadado?
RG – Absolutamente, não há centralização no fato de a ANA cobrar pelo uso dos recursos hídricos de domínio da União, porque a Lei Federal 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou a ANA, previu que o dinheiro será investido, majoritariamente, na própria bacia hidrográfica onde foi arrecadado. Isto ocorrerá em decorrência de um contrato de gestão, a ser firmado entre a ANA e a agência da bacia, esta última assumindo a responsabilidade pela arrecadação e aplicação dos recursos da cobrança, de acordo com o plano diretor da bacia, aprovado por seu correspondente comitê. A Lei Federal no 9.433/97 estabeleceu que a aplicação de recursos na bacia deve ser de 92,5% do total arrecadado, ficando os 7,5% complementares para a implantação e o custeio admi- nistrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
FMA – E se a bacia não tiver um plano diretor, a ANA centraliza as ações?
RG – Não. Nesse caso, a totalidade dos recursos arrecadados é canalizada para a ANA que apoiará o comitê da bacia estimulando-o a partir para a imediata elaboração de seu plano, com o que, logo em seguida, a descentralização pode ser posta em prática. Evidentemente que a ANA fará uso desse recurso para o custeio da elaboração do plano, em articulação com o comitê.
FMA – A cobrança será aplicada em todas as bacias, indiscriminadamente?
RG – Não. A cobrança somente terá sentido onde houver escassez de água em face da demanda por esse recurso natural, ou onde a poluição começar a atingir níveis indesejáveis. Por exemplo, nas bacias da região amazônica, onde a escassez, e mesmo a contaminação excessiva, ainda estão longe de se manifestar, tão cedo não deverá haver cobrança. Além disso, somente será implantada a cobrança naquelas bacias que já tiverem comitê em funcionamento.
FMA – E se a bacia não tiver agência própria, mas tiver seu comitê, a cobrança pode ser implantada?
RG – A condição essencial é ter o comitê. Na configuração definitiva da organização de uma bacia, ela terá, além do comitê, uma agência de bacia (a Lei Federal 9.433/97 denomina agência de água, mas há uma forte tendência em alterar essa denominação para agência de bacia, para evitar confusão com o nome da ANA, que é outra coisa). Mas a legislação também estabelece que somente se pode criar uma agência de bacia quando a sua manutenção estiver assegurada pelos recursos da cobrança. Isto significa dizer que a cobrança vem antes da instalação da agência de bacia. E como isto pode ser feito? É a própria Lei Federal 9.433/97 que prevê, em suas disposições transitórias, que a cobrança pode ser posta em prática por consórcios ou associações intermunicipais, desde que autorizados pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, por prazo determinado, até que a agência de bacia seja criada.
FMA – Quem deve pagar?
RG – Como regra geral, todos os usos passíveis de outorga devem pagar, e somente estes. Assim, estão sujeitos ao pagamento pelo uso da água as derivações ou captações de água para consumo final, inclusive para o abastecimento público ou como insumo de processos produtivos; os lançamentos de efluentes, urbanos e fabris, para diluição e transporte por meio de massas líquidas; os aproveitamentos hidroelétricos e outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água de mananciais. É importante afirmar que a cobrança, tal como aqui é comentada, refere-se apenas à água bruta, não devendo ser confundida com o pagamento pelo consumo de água potável, que é um produto industrializado, para cuja elaboração ter-se-á feito uso da água bruta. A gestão de recursos hídricos, conforme já assinalado, está relacionada com a água de mananciais, superficiais e subterrâneos.
FMA – E quem aprova os preços?
RG – Vale a pena separar a questão dos preços em relação aos dois domínios da água, o da União e o das unidades federadas. No caso dos preços a serem cobrados em corpos d’água de domínio da União, o processo deve envolver a agência de bacia, que faz o cálculo, em termos de preço unitário, de quanto cada setor usuário deve pagar naquela bacia ou parte da mesma; deve envolver também o comitê da bacia, onde os preços calculados pela agência de bacia serão negociados; deve envolver, ainda, a ANA, que é a titular da receita da cobrança, e o CNRH, que aprova os níveis de preços e define, em articulação com o comitê de bacia, as prioridades de aplicação dos recursos arrecadados.
No caso de corpos d?água de domíno dos estados e DF, estes – tendo autonomia administrativa e financeira – organizam-se de acordo com suas próprias legislações. Nesses casos, os preços devem ser aprovados pelos Conselhos Estaduais ou colegiados equivalentes. Mas é de se esperar que haja harmonia entre as políticas de preços estaduais e federal. Assim, devem concorrer as ações da ANA junto aos Comitês, agências de bacia e entidades ou órgãos gestores estaduais e do CNRH, junto aos Conselhos estaduais.
FMA – Na prática, como o usuário faz o seu pagamento?
RG – No caso de bacias que tenham um ou mais corpos d’água de domínio da União, isto vai depender da forma como se organize a agência da bacia, que promoverá, por delegação da ANA, a arrecadação da cobrança para os rios desse domínio. Vou dar, como exemplo, duas formas administrativas de se processar a cobrança:
1) A agência de bacia poderá controlar o sistema de emissão e cobrança de guias de recolhimento diretamente na rede bancária.
2) Poderá, ainda, o que é mais razoável, manter convênio com as companhias de saneamento atuantes na bacia, para que a cobrança seja embutida, e destacada, na conta de água fornecida. Isto ocorre, por exemplo, na França, e tem sido uma prática de êxito.
Ainda considerando bacias que tenham pelo menos um rio de domínio da União, cabe aos estados, no caso dos corpos d’água de seus respectivos domínios, resolverem como colocarão em prática a cobrança. Conforme mencionei, dentro de uma mesma agência de bacia, a União e os estados atuarão uniformemente.
FMA – A cobrança inclui o uso de águas subterrâneas?
RG – Sim. No caso das águas de sub-superfície, que são de domínio dos estados, todo o processo de definição de níveis de preços e forma de colocar em prática a cobrança depende das normas administrativas de cada estado e do DF.
FMA – Como harmonizar os níveis de preços nas proximidades de confluências de rios de domínios diferentes?
RG – Para a tentativa de harmonização de preços a serem cobrados em uma mesma região no caso de diferentes domínios, o desafio é o mesmo que está contido na parte final de uma resposta anterior. Em outras palavras, a articulação da ANA (detentora da arrecadação em rios de domínio da União) com a entidade ou órgão gestor estadual (detentor da arrecadação em corpos d água de domínio do estado), juntamente com o processo de negociação que se desenrolará no comitê, é que conduzirá a essa harmonia de preços.
FMA – Quem calcula e quem negocia os preços a serem cobrados?
RG – Conforme já constou do corpo de respostas anteriores, o cálculo do preço a ser cobrado deve ser feito pela agência de bacia e negociado no ambiente do comitê. Não custa lembrar que o comitê é o fórum de discussão e decisão da bacia, ou seja é o parlamento das águas no espaço da bacia. Funciona como se fôra uma reunião de condôminos, onde se discutem as opções de investimento do condomínio e a forma de quotização entre os pagadores. No caso da bacia hidrográfica, os pagadores são denominados usuários-pagadores e poluidores-pagadores. A agência de bacia, por seu turno, é a organização executiva encarregada de subsidiar o comitê na tomada de decisão e de executar aquilo o que for decidido, e portanto determinado, pelo comitê. No caso dos corpos d’água de domínio da União, à ANA cabe orientar e aprovar os estudos técnicos de cada agência de bacia, para apresentação ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, o qual dará, conforme já comentado, aprovação final. Na verdade, a legislação prevê que a ANA elabore esses estudos técnicos. No entanto, dadas as gigantescas proporções do território brasileiro e suas enormes bacias hidrográficas, parece razoável esperar-se que a ANA possa contar com a cooperação de cada agência de bacia nessa tarefa de calcular preços.
FMA – O preço para cada categoria de uso deve ser o mesmo em toda a extensão da bacia?
RG – Não necessariamente. Há bacias hidrográficas como, por exemplo, a do rio São Francisco, com grande extensão, sobre as quais existirão, certamente, inúmeros mercados de usuários da água. Veja bem, se por um lado a oferta, (função da disponibilidade de água), no caso das águas superficiais, é facilmente avaliada para toda a bacia quaisquer que sejam suas dimensões, por outro, é forçoso reconhecer que a demanda se modifica sobremaneira dentro de uma mesma bacia, quando se passa de uma parte da mesma para outra. Isto porque a demanda depende da natureza da atividade econômica do usuário, suas restrições orçamentárias e suas expectativas em relação aos níveis dos preços de seus produtos finais. Além disso, a oferta de águas subterrâneas pode variar imensamente entre distintos pontos de uma mesma bacia. Ora, como os preços são determinados a partir da interação de oferta e demanda de água, não há como afirmar-se que eles serão uniformes em toda a extensão de uma bacia qualquer. E mais: até mesmo ao longo de um curso d’água eles podem variar para um mesmo tipo de uso da água. Não é ocioso assinalar, também, que água derivada a jusante de um ponto qualquer deverá ter um uso menos caro do que aquela que é utilizada a montante desse mesmo ponto.
FMA – Qual o processo de cálculo dos preços e qual a repercussão no valor final do produto que fez uso da água?
RG – O preço a ser cobrado, conforme já referido, deve resultar do diagrama de procura e oferta. Do lado da procura está a disposição a pagar do usuário, que depende de vários fatores, alguns já comentados. Sua restrição orçamentária, tanto quanto os gostos e preferências dos consumidores pelos produtos finais do usuário-pagador da água, além do comportamento dos preços dos produtos correlatos, substitutos e complementares, são alguns desses fatores. No que se refere à oferta, esta é determinada pelo custo marginal social de longo prazo, que resulta da curva de custo total do gerenciamento da bacia, aí incluídas as amortizações de ativos, o custeio das atividades das agências de bacia e comitês, além das externalidades que entrarem no cálculo. Uma vez postas em confronto a oferta e a demanda, daí resultam preços que precisam passar por um processo de diferenciação, para que os usuários que puderem mais, paguem mais, e aqueles que puderem menos, paguem menos. Esta última etapa do cálculo de preço se faz por meio da determinação das elasticidades-preço da demanda, parâmetro microeconômico extremamente útil no contexto da formação dos preços das mercadorias e serviços. Os estudos até aqui já realizados demonstram que os níveis de preços a serem cobrados não devem implicar aumentos superiores a 1,5% sobre o preço final dos produtos e serviços para cuja elaboração a água tiver sido utilizada.
FMA – Existem experiências de cobrança? E quais os resultados?
RG – A França talvez seja o exemplo mais rico na utilização do instrumento da cobrança. Os comitês de bacia exercem um papel muito importante naquele país, pois o processo de negociação é intenso. Igualmente importante é o trabalho que se realiza no âmbito da agência de bacia, onde os estudos técnicos e econômicos são elaborados para subsidiar os comitês. A experiência francesa mostrou que a cobrança deve ser implementada paulatinamente, pois a assimilação de seus princípios depende de um trabalho permanente de sensibilização dos agentes usuários da água, que se transformam em usuários-pagadores no momento em que a cobrança é implementada. No oeste americano, é digna de nota a experiência dos distritos de irrigação, mas, diferentemente da França, o processo americano não segue normas homogêneas, preferindo ressaltar a primazia dos mecanismos de mercado, ainda que, no caso do uso da água bruta, estes estejam sujeitos a falhas. No Brasil, há vários estudos, mas apenas o Estado do Ceará colocou em prática, já há cerca de três anos, a cobrança, inicialmente para a indústria e para o saneamento, hoje já sendo aplicado, também, para a irrigação. O Estado de São Paulo conta com um projeto de lei na Assembléia Legislativa em avançada fase de discussão, e é provável que a cobrança nesse estado seja implementada ainda este ano ou no primeiro semestre de 2002.