Pavimentação urbana altera regime hidrológico
20 de fevereiro de 2004Crescimento das cidades e muita pavimentação podem trazer uma novidade que vai mexer no bolso do usuário de água: o impermeabilizador-pagador
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O homem moderno quer conforto, busca rapidez e considera o máximo da civilidade uma boa estrada asfaltada, todas as ruas da cidade pavimentadas, prédios cada vez mais altos e estacionamentos asfaltados imensos dos shopping-centers, supermercados, aeroportos e estádios de futebol. Em resumo, é bom fugir do barro e da poeira, por isso impermeabiliza a superfície das cidades, alterando, de alguma forma, o regime hidrológico. Uma primeira e grave consequência: os sistemas urbanos de drenagem de águas pluviais reorientam o retorno das águas de chuva para os leitos dos rios e para o subsolo, modificando o regime que se encontrava em equilíbrio natural. Segunda consequência: além de acabar com a recarga dos lençóis freáticos, as vias e pátios asfaltados costumam acumular resíduos e impurezas que, com a lavagem ou com a própria chuva, são lixiviados de volta aos leitos dos rios, contribuindo para uma grande contaminação. Resultado: em países mais avançados os técnicos já defendem o impermeabilizador-pagador, ou seja, uma nova taxa cuja arrecadação seria aplicada, entre outras finalidades, na regeneração da qualidade das águas de rios que receberam águas pluviais drenadas. Para explicar tudo isso e falar sobre como vai ser essa relação comercial entre os beneficiários de tanto asfalto e tanto concreto, ou seja, essa relação entre os Recursos Hídricos e o impermeabilizador pagador, ninguém melhor do que o professor Raymundo Garrido, Secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente e Secretário Executivo do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
Folha do Meio – Dr. Garrido, esse é mais um imposto pelo progresso?
Raymundo Garrido – Veja bem, vamos separar as duas coisas: a cobrança pelo uso da água propriamente dita e a cobrança pela alteração do regime hidrológico pela impermeabilização de superfície em zonas urbanas de grande extensão. A primeira ocorre com maior freqüência nas zonas rurais. Mas, em qualquer caso, a cobrança é uma decorrência da oferta e da demanda. O que acontece é simples: o reconhecimento do valor econômico da água de mananciais, uma das revelações do final do século que findou recentemente, em face das naturais disputas entre os usuários múltiplos, faz aparecer uma medida de valor econômico para a água, levando a que o seu uso possa ser objeto de transação, e dando origem ao instituto da cobrança. Esse é um novo compromisso, que vem junto com o conceito do usuário-pagador, já consagrado em leis de recursos hídricos de dezenas de países do mundo. Mas, o que é verdadeiramente novo é a aplicação desse conceito de usuário-pagador para as áreas urbanas das bacias hidrográficas, transformando-o em impermeabilizador-pagador. Impermeabilizador de que? De superfície, pois é enorme a projeção de solo que é coberta pelas construções e, sobretudo, pela impermeabilização com asfalto e outros tipos de concreto, para as ruas, praças e pátios das mais diversas construções.
FMA – Então essa é mais uma transação comercial que tem o consumidor da água por um lado e por outro o produtor, ou seja, o Estado?
RG – Não se trata de uma nova transação comercial, porque a aplicação do conceito do impermeabilizador-pagador apenas substitui a cobrança pelo uso da água quando se trata da parte urbana da bacia. De fato, estamos num verdadeiro mercado, mas não o mercado de certificados de direito de uso da água, entre os usuários, como em algumas ocasiões se tem falado. O que é essa transação? A transação de que resulta a cobrança pelo uso da água se dá entre os usuários e o produtor, sendo este último a esfera de poder executivo que detém a dominialidade sobre aquele corpo d’água. E essa relação de mercado é assemelhada ao monopólio, no qual a autoridade detentora do poder outorgante cobra um preço público pelo uso dos recursos hídricos a usuários distintos em seus objetivos sociais, mas que competem pela água de um dado rio, ou lago ou, mesmo, de um aqüífero. A figura de semelhança com o monopólio situa-se estritamente no plano da relação produtor-consumidor, que é, de um lado um único “vendedor”, que cobra e, de outro, compradores pulverizados do direito ao uso da água. No mais, não há qualquer semelhança entre a cobrança pelo uso da água e os mercados monopolistas, pois enquanto estes últimos se caracterizam pela realização de lucros extraordinários, a cobrança, refletindo a aplicação de um preço público, desconhece qualquer possibilidade de excedente econômico.
FMA – Mas os recursos hídricos não são um bem social?
RG – Por isso mesmo, a cobrança pelo uso da água deve agasalhar níveis de preços que resultem de uma política de melhoria do bem-estar social, sem que a autoridade que cobra realize qualquer lucro.
A água está sujeita à lei da oferta e da procura
Se o regime hidrológico é alterado, alguém tem que pagar essa conta
Além disso, o caráter social de que se reveste a água como um bem não exime o seu gestor de submetê-lo à lei da oferta e da procura quando houver, e somente quando houver, prenúncio de escassez. Deve-se ter um cuidado: é o preço público a cobrar, pois neste cálculo não se admite qualquer parcela de lucro. A cobrança pelo uso da água deve ser feita com preços que cubram somente os custos com o seu gerenciamento e a amortização dos investimentos que se fizerem necessários na bacia.
FMA – Quer dizer que o senhor pede é um pagamento, um novo imposto. Haverá um usuário-pagador. Por quê?
RG – Muito bem! Vamos ver o que a legislação brasileira prevê como usuário-pagador. Qualquer utilização de água bruta que altere, de alguma forma, o regime hidrológico a que, por natureza, está sujeito o manancial. No caso do impermeabilizador-pagador, este altera o regime hidrológico nas superfícies urbanas sem necessariamente usar a água. Ele apenas altera o trajeto das águas de chuva por impermeabilizar a superfície. Ora, como o Brasil se torna mais urbano a cada dia, sendo superior a 80% a população citadina, o efeito da ação do impermeabilizador pagador se torna cada vez mais visível.
A imensa impermeabilização de superfície pelo crescimento das cidades altera de alguma forma o regime hidrológico local, pois os sistemas urbanos de drenagem de águas pluviais reorientam o retorno das águas de chuva para os leitos dos rios e para o subsolo, desfazendo o regime que se encontrava em equilíbrio natural. Além disso, as vias e pátios asfaltados costumam acumular resíduos e impurezas que, com a lavagem ou com a própria chuva, são lixiviados de volta aos leitos dos rios, contribuindo para a contaminação destes. Em outras palavras, o impermeabilizador-pagador é, também, um poluidor-pagador.
FMA – Como isso funciona em outros países?
RG – Na verdade, o conceito é inteiramente novo e ainda não foi aplicado em outros países, embora a discussão tivesse avançado sobremaneira, na França, na metade dos anos noventa. E o debate surgiu depois que se constatou que os poluentes que predominam no rio Sena, principalmente na região de Paris, são os detritos de pneumáticos, resultado da frenagem de veículos. Naquela ocasião se cogitou, na França, da implantação do regime do impermeabilizador-pagador, cuja arrecadação seria aplicada, entre outras finalidades, na regeneração da qualidade das águas de rios que receberam águas pluviais drenadas. O debate não avançou, entretanto, pois o governo francês se ocupava, à época, da revisão da aplicação das receitas apropriadas pelas agências de água em razão de outros usos dos recursos hídricos. Caso o processo tivesse sido levado adiante, a arrecadação seria realizada através da renovação anual da licença dos veículos automotores, principais usuários das superfícies impermeabilizadas. Seria o correspondente a um acréscimo no IPVA, no Brasil, mas, naturalmente, deduzindo-se o total arrecadado da cobrança, na mesma bacia, sob a modalidade do usuário-pagador.
FMA – Quando a discussão começou no Brasil?
RG – No Brasil, o tema somente foi objeto de estudos muito preliminares por parte da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, entre 1995 e 1997, chegando a ser discutido, em algumas ocasiões, em seminários e workshops.
Bacia hidrográfica Espaço geográfico cujos aportes hídricos naturais são alimentados exclusivamente pelas precipitações e cujos excessos de água ou de materiais sólidos transportados pela água se dirigem para um único ponto denominado foz ou embocadura, ou ainda exutório. Usuários múltiplos Agentes econômicos que fazem uso da água bruta de mananciais (rios, lagos e acumulações subterrâneas) para alguma finalidade econômica, como indústria, navegação, geração de energia, irrigação e outras. Lixiviados Vem de lixiviar, ou seja, aplicar lixívia (ou barrela) para limpar e lavar. Lixívia é uma solução de carbonato de sódio ou de potássio usada para lavagem de tecido, para remoção de tinta e lavagem de outros materiais. A água lixiviada vem sobretudo das lavanderias, das oficinas, das lavagens de carro, das residências e da própria rua. Impermeabilizador-pagador Agente econômico que paga por alterar o regime hidrológico de uma região em decorrência da impermeabilização de superfície de solo urbano. Usuário-pagador Agente econômico que paga pelo uso da água de mananciais, podendo esse uso ser consuntivo ou não consuntivo. Uso consuntivo Utilização da água de um manancial com a retirada desta de seu leito. Exemplos: irrigação, indústria, abastecimento urbano. Uso não consuntivo Utilização da água de um manancial sem a retirada desta de seu leito. Exemplos: navegação, pesca, geração hidroelétrica. Hidrólogo Profissional do campo da Hidrologia, ciência que que estuda as águas terrestres, suas origens, seus movimentos, e sua repartição no planeta, suas propriedades físicas e químicas, suas interações com o meio ambiente físico e biológico e suas influências sobre as atividades humanas (definição adotada pelo Conselho Federal de Ciência e Tecnologia dos Estados Unidos – 1962). |
Caos das cidades aumenta o estresse
Os recursos hídricos estão cada vez mais escassos e sempre mais sujeitos à poluição
Mas, veja bem – e os leitores da Folha do Meio Ambiente que pertencem a um público bem conscientizado vão reconhecer – a importância do caráter predominantemente urbano do Brasil. Isso coloca o país como candidato a adotar o impermeabilizador-pagador como extensão do princípio do usuário-pagador. Para se ter uma idéia, a superfície da cidade de São Paulo é de cerca de 1.300 km2, com uma elevada taxa de urbanização. Já são muitas as grandes cidades brasileiras. A superfície total urbanizada das maiores aglomerações urbanas no país é surpreendentemente grande, a ponto de fazer com que a representação de cada cidade em mapas de determinada escala não seja mais feita por um ponto, que foi, tradicionalmente, o indicativo das cidades em cartas geográficas. Hoje, o que se vê em termos dessa representação são verdadeiras manchas representando o tecido urbano, em muitos casos à beira-rio, quando não à beira-mar e, quase sempre, sobre algum aqüífero.
A questão assume verdadeiramente importância em bacias de pequena extensão territorial que abriguem cidades de grande porte, conferindo à mesma uma característica predominantemente urbana. Igualmente, a impermeabilização de superfície é importante em trechos de bacia, qualquer que seja o tamanho desta, onde se situem regiões metropolitanas ou outras formas de aglomeração urbana de porte.
FMA – E como será o cálculo, como fazer o custo dos preços a serem cobrados?
RG – O cálculo dos preços a serem cobrados do impermeabilizador-pagador segue o mesmo processo que deverá ser aplicado no caso da cobrança pelo uso da água em zonas rurais. Isto significa dizer que a demanda é calculada a partir da relação que se possa estabelecer entre os efeitos sobre o regime hidrológico local, quantitativos e qualitativos, e a superfície que vai ser impermeabilizada. E a oferta é resultado dos custos marginais sociais de longo prazo, derivados da curva de custo total do gerenciamento e recuperação da qualidade da água contaminada pelo meio urbano.
FMA – Mais um custo para o cidadão. O que ele ganhará com isso?
RG – Como eu afirmei, não se trata de mais um custo, porque o que se vier a cobrar a título de aplicação do conceito de impermeabilizador-pagador deixará de ser cobrado como aplicação do princípio do usuário-pagador. E o cidadão só tem a ganhar, pois o caos das cidades, a falta de planejamento, o desperdício tudo isso leva ao estresse. Veja que as cidades brasileiras nascem, crescem e incham sem um Plano Diretor. Isso é muito grave. Imagina o que seria hoje a outrora belíssima Copacabana, no Rio de Janeiro, se tivesse um competente Plano Diretor que orientasse corretamente seu crescimento? Hoje Copacabana não impermeabiliza só o chão, mas também o ar, com aqueles prédios todos grudadinhos uns nos outros, formando um grande paredão. É importante ressaltar que os recursos hídricos estão cada vez mais escassos e sempre mais sujeitos à poluição. A aplicação do regime do impermeabilizador-pagador, além de contribuir para o gerenciamento dos recursos hídricos de regiões urbanas, vai exercer uma grande influência no planejamento. Só o planejamento correto, a maior racionalidade, um pouco de desprendimento de cada um é que vai favorecer a vida nos grandes centros urbanos. É o caso, por exemplo, do uso dos transportes coletivos. Evidente que ao incidir sobre a renovação de licenças anuais dos veículos automotores, se vier a ser esta a decisão no Brasil, haverá um estímulo do uso do transporte coletivo e à saudável prática do transporte solidário.