19 de Abril - Dia do Índio

Índios reivindicam um novo Estatuto

26 de fevereiro de 2004

Lei que regula as relações entre índios e não-índios está defasada em 15 anos, inibindo o pleno exercício dos direitos consagrados na Constituição de 1988

 







Índios Waiãpi, habitantes das florestas do Amapá, comemoram
  a demarcação de suas terras


 

Quase um ano após os desagradáveis incidentes que marcaram as comemorações oficiais dos 500 anos em Porto Seguro, a principal demanda dos índios para a sociedade brasileira continua envolvida num profundo impasse. Trata-se da aprovação de um novo Estatuto do Índio, ou seja, de uma nova lei para regular as relações entre os povos indígenas e os brasileiros.


A queixa dos índios tem procedência: o atual Estatuto do Índio foi criado pela Lei nª 6.001, em dezembro de 1973, quando a política oficial vigente era de integração compulsória dos índios à “comunhão nacional”. Tanto as políticas públicas quanto as leis referentes aos índios tinham como pressuposto o lento e contínuo desaparecimento de suas populações. Por isso, o Estatuto de 1973 prevê direitos provisórios, válidos enquanto não se “emancipassem” da condição de “silvícolas”. Além disso, os considera uma categoria de indivíduos “relativamente capazes” e, por isso, estabelece que cabe à União – por meio do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai) – tutelá-los, ou seja, protegê-los e representá-los em qualquer instância. 


Entretanto, a Constituição de 1988 alterou completamente este paradigma, reconhecendo aos índios direitos permanentes, inclusive o de continuarem vivendo de acordo com seus costumes e tradições indefinidamente. Transformou direitos individuais em direitos coletivos, descritos em dois artigos de um capítulo especial, o Capítulo VIII, chamado Dos Índios. A promulgação da Constituição de 88 tornou, portanto, o atual Estatuto do Índio uma lei anacrônica, incapaz de regular a situação de fato em que vivem os índios no Brasil.


Sete anos de impasse


A exigência de um novo Estatuto para os povos indígenas deriva também da necessidade de regulamentar dispositivos constitucionais, como os que tratam da exploração de recursos naturais em terras indígenas. A primeira iniciativa para aprovar uma nova lei surgiu em 1991, quando o deputado Aloizio Mercadante (PT-SP) apresentou à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei. Uma comissão especial para discuti-lo foi formada na Câmara. Em junho de 1994, o relator da comissão, deputado Luciano Pizzatto (PFL-PR), apresentou um substitutivo, chamado Estatuto das Sociedades Indígenas, resultado de um longo processo de discussão com lideranças indígenas, organizações de apoio aos índios e outros setores da sociedade.


A tramitação do texto do deputado Pizzatto, no entanto, foi paralisada por um recurso apresentado pelo então líder do governo na Câmara, deputado Artur da Távola, sob a alegação de que ministros da gestão Fernando Henrique tinham restrições ao texto. Apesar das sucessivas pressões por parte dos índios e de organizações não-governamentais, o desinteresse do Executivo federal e a sistemática oposição de parlamentares ligados ao velho paradigma integracionista mantiveram a paralisia do projeto. 


No final de 1999, com a aproximação dos comemorações dos 500 anos, o governo federal resolveu destravar a tramitação no Congresso. Uma comissão governamental foi criada para propor um novo texto, a ser encaminhado ao relator. Em abril, durante as festas oficiais em Porto Seguro, o então presidente da Funai, Carlos Frederico Marés, levou aos índios esta proposta.


Nó difícil de desatar


A apresentação do texto do governo suscitou diferentes reações entre os índios, suas organizações e entre organizações não-governamentais que os assessoram. Algumas entidades e lideranças indígenas preferiram relevar alguns dos muitos problemas existentes na proposta governamental e negociar as questões consideradas cruciais dentro do Legislativo. Outras lideranças e seus parceiros, também favoráveis à aprovação de um novo Estatuto, não aceitaram o texto governamental, reivindicando a retomada da tramitação do substitutivo do deputado Pizzatto. Por fim, a Funai, funcionários indígenas e facções indígenas com fortes laços com o órgão oficial rejeitam as duas propostas. Para estes, o novo Estatuto, ao livrar os índios da tutela da União, estará fomentando a extinção do órgão indigenista federal.


A aproximação de mais uma Semana do Índio (16 a 20 de abril) significará um recrudescimento das pressões sobre o deputado Luciano Pizzatto e sobre o Ministério da Justiça – ao qual a Funai está subordinada – para que desatem o nó político que amarra a aprovação de um novo Estatuto para os povos indígenas. Parte do governo, no entanto, permanecesse inflexível em relação a alguns pontos que setores favoráveis à uma nova lei querem ver modificados. 


No campo dos favoráveis a um novo texto, o entendimento é possível, o que isolaria os setores resistentes da Funai. Mas sem empenho do governo, especialmente do Ministério da Justiça, corre-se o risco de que a conflituosa tramitação do novo Estatuto do Índio permaneça obstruída. Ruim para os índios, que perpermanecem submetidos à vexatória condição de “relativamente capazes”, ruim para o governo, que poderia superar as desagradáveis cenas de violência que marcaram as festividades dos 500 anos.