A abundância de água no Brasil é uma ilusão

12 de fevereiro de 2004

O mundo deve caminhar para o reuso da água: primeiro o uso nobre para beber e depois de tratada uma utilização menos exigente, como a irrigação


 


Prof. Oscar Netto: "temos que criar uma política integrada e eficaz para a água".

Folha do Meio – O que significa a gestão da água?

São Paulo e o Rio são cidades que sofrem, ao mesmo tempo, de falta de água e de enchentes. Porque a água que inunda é tão poluída que não pode ser aproveitada e a água que se bebe é buscada em locais muito distantes

Oscar Netto – A gestão é uma forma de administração da água, mas também a forma de utilização sustentável do recurso natural, para um aproveitamento racional do recurso água. Este trabalho foi feito juntamente com mais dois outros professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Escola Politécnica da USP. Inicialmente foi um relatório que fizemos sobre a questão da água no Brasil, para o 2º Fórum Mundial dos Recursos Hídricos, realizado há dois anos, em Haia, na Holanda. Depois é que evoluiu para um livro. Cada País fez um relatório específico sobre a sua situação. No caso do Brasil, esse trabalho foi coordenado por uma associação não-governamental chamada GWP – Global Water Partnership – que tem um grupo na América do Sul.

FMA – Qual a importância de se colocar a água como tema de conferências e livros?

Oscar Netto – A água é um problema seríssimo no mundo todo. No Brasil, se tem a falsa sensação de que é um país muito rico em água, mas na verdade nós temos uma falsa riqueza, porque a abundância de água doce está situada na Amazônia, longe do grande centro produtor, consumidor e longe da grande concentração da população brasileira.

No semi-árido nordestino, no Sudeste e Sul o problema é sério. Há falta de água e há muita poluição dos recursos hídricos. O próprio Centro-Oeste já tem problemas dessa natureza. Às vezes a água está tão próxima, mas ela é tão poluída que não pode ser aproveitada para usos mais importantes como o abastecimento público das cidades. O caso clássico é o de São Paulo e do Rio de Janeiro, cidades que sofrem, ao mesmo tempo, de falta de água e de enchentes. Porque a água que inunda é tão poluída que não pode ser aproveitada e a água que se bebe é buscada em locais muito distantes. Essa é uma questão mais do que brasileira. Ela acontece também em muitas partes do mundo.

FMA – Qual o objetivo do livro "A Gestão da Água no Brasil?"

Oscar Netto – O livro mostra um pouco do que foi discutido no Fórum Mundial da Água e está divido em quatro capítulos. Um deles traz um retrato do Brasil, com dados gerais do país, pois tudo está interligado. O problema da poluição da água, por exemplo, está ligado ao excesso populacional, às vezes são questões ligadas à vegetação, ao relevo e aos aspectos naturais.

No segundo capítulo é tratada a questão específica do manejo integrado dos recursos hídricos, com o conceito das bacias hidrográficas. A água é um bem que demanda o uso mais racional possível e, na verdade, pode atender a diferentes finalidades, não só propiciando ganhos econômicos para a sociedade, mas principalmente melhorando a qualidade de vida e garantindo a biodiversidade e qualidade ambiental.

É preciso se ter uma visão integrada, pois a mesma água que move uma turbina no curso de energia pode ser aproveitada mais abaixo num projeto de irrigação, no abastecimento de uma cidade, para manter uma certa biodiversidade naquele trecho de rio. Aquela barragem onde é produzida energia pode ser usada também para amenizar as enchentes, mostrando assim as várias as possibilidades que um mesmo recurso propicia.

O reuso da água

A água é um bem que demanda o uso mais racional possível. Ela pode atender a diferentes finalidades: ganhos econômicos para a sociedade, melhoria da qualidade de vida e garantia da biodiversidade

FMA – Quais seriam as medidas utilizadas para o uso eficaz da água?

Oscar Netto – A reutilização da água é uma das medidas dentro da visão da gestão integrada e racional, que é cada vez mais utilizada em diversos países. O uso mais complexo da água é quando o tratamento de esgoto é bem feito e é reinserido no próprio sistema e essa água pode ser reutilizada para abastecer cidades. Outra forma de reuso que tem sido muito usada em alguns países é quando, primeiro, se garante a utilização mais nobre e mais segura da água, basicamente para o abastecimento humano e para o asseio das pessoas. Essa água é coletada, tratada e depois é destinada para um uso menos exigente, como no caso da irrigação. Por exemplo, a água que tem ainda um pouquinho de carga orgânica dos esgotos pode ser utilizada para a irrigação de árvores frutíferas. É até interessante, pois ela tem nutrientes. Isso pode ser feito até em escala residencial, onde a água da casa, depois de tratada, serve para a irrigação de jardins. Tudo é feito dentro de uma forma simplificada de reuso da água, que vale também para os grandes empreendimentos.

Um exemplo é o aeroporto de Cumbica, em São Paulo, que tem todo um projeto de reutilização da água, desde os usos nobres da água até a lavagem de pista, que exige uma água de menor qualidade.

FMA – Como a população pode contribuir para o uso racional da água no dia-a-dia?

Oscar Netto – O cidadão comum pode ter uma contribuição fenomenal no uso eficiente da água. Basta ver o que foi feito, recentemente, com relação à questão da energia. Uma primeira política seria reduzir o consumo, pois no Brasil e, em Brasília em particular, os índices de consumo de água são muito grandes e há um certo desperdício.

O uso mais complexo da água é quando o tratamento de esgoto é bem feito e é reinserido no próprio sistema. Essa água pode ser reutilizada para uso menos exigente, como irrigação e uso industrial

Todos nós vemos aí pessoas que lavam calçadas e pátios, usando água como se fosse uma vassoura e isso é até uma forma pouco eficiente de lavar. O ideal seria se usar pouca água, usar um pano e esfregar, que é a forma mais eficiente. Outro exemplo clássico são as pessoas que lavam o carro, onde se pode constatar facilmente o uso excessivo de água. Há outras formas de se fazer tudo isso se gastando apenas 10% do que se gasta normalmente de água e mantendo esses mesmos usos.

Todos nós temos condições de fazer isso. Na verdade, falta informação, mas no Brasil, as pessoas já têm uma certa sensibilização quanto ao problema. O que falta agora é partir para uma outra etapa, que seria a da conscientização, do conhecimento e da educação.

FMA – Como seria esse processo educativo?

Oscar Netto – Existem várias formas de se atingir a população. Com certeza, a educação é mais a importante, pois as crianças poderiam ter acesso às informações desde cedo, nas escolas. Campanhas institucionais também são muito eficientes, além de medidas tecnológicas e econômicas.

Um dos maiores consumos de água que existem no Brasil é o consumo ligado ao uso de válvula de descarga. Uma válvula dessas usa cerca de cinco a seis vezes mais água do que uma caixa normal de descarga. O problema é que o Brasil é campeão mundial de válvula de descarga. Isso é um hábito cultural, além de termos um parque industrial que trabalha e lucra com o comércio de válvulas. Por isso, um trabalho de renovação tecnológica e de conscientização da população deve ser feito.

Novos mecanismos econômicos também devem ser adotados. No Canadá, por exemplo, a cidade de Toronto ofereceu vantagens para todos os moradores que trocassem as válvulas de descarga por caixas, dando um desconto no imposto urbano, pois isso significava uma economia enorme de água para a própria cidade.

Então, existem medidas que vão da conscientização, educação, sensibilização até as medidas que trabalham com os instrumentos econômicos, como multas, por exemplo. Em outros países, não há multas, mas o incentivo econômico. O que vale é uma política integrada e eficaz.

FMA – O livro diz que o mundo pode ficar sem água em 2025?

Oscar Netto – A falta de água já é uma realidade em vários lugares, inclusive o Brasil. O país está mantendo situações que são ineficientes e que não são ambientalmente sustentáveis. Quando se tem de buscar água a quilômetros de distância, porque a água disponível é poluída, a sociedade como um todo paga um preço alto pela falta do uso integrado da água. O ano 2025 é apenas um marco. A água é uma equação muito simples. O que acontece no mundo todo é que a água doce está diminuindo. A água de boa qualidade está cada vez mais menos disponível. Ao mesmo tempo, aumenta a população e o consumo mundial para a irrigação. O consumo de água aumenta mais do que a população devido ao uso industrial, que consome muito mais. Com o aumento da demanda, diminui a disponibilidade e, conseqüentemente se criam mais situações de conflito e situações de estresse. 2025 é um ano em que o estresse vai estar generalizado no mundo todo. Eu não acredito, por exemplo, que a Amazônia terá muitos problemas de falta de água. Mas certamente, em outras regiões do país, haverá problemas sérios.

FMA – Quais os países que mais sofrem com a falta de água no mundo?

Oscar Netto – Há países que sofrem com uma falta de água generalizada, como os países do Oriente Médio e alguns países do norte da África. Existem países da Europa que são muito secos e existem regiões em países que sofrem com a seca, como a região meio-oeste dos Estados Unidos, na América do Sul tem o norte do Chile, no Brasil são as regiões semi-áridas. Existem também os países que estão em ilhas, o que é um problema muito sério, pois as ilhas não têm muita disponibilidade de água. Alguns desses países estão investindo em processos de dessalinização da água do mar, mas ainda é um processo muito caro.

Em algumas regiões do Nordeste do Brasil, por exemplo, a falta de água é uma constante, o que a torna um bem caro. Lá uma lata de 20 litros de água custa R$ 1,00. Isso sem falar na compra de um caminhão pipa. Em Brasília mesmo, muitas vezes, a conta de água é maior do que a conta de luz. A falta ou a má qualidade da água faz o preço aumentar e muito.