Como funciona a OUTORGA de direito de uso da água

17 de fevereiro de 2004

Saiba a diferença entre Cobrança e Outorga e conheça as alternativas profissionais que estão nascendo com as definições do uso dos recursos hídricos

 






Raymundo Garrido


1. O que é Outorga?


Em primeiro lugar, outorga quer dizer consentimento, assentimento, assenso, anuência, aprovação, beneplácito, com isso indicando a intenção do ato administrativo mediante o qual o Poder Público(8), investido do poder outorgante, faculta ao administrado, ora outorgado, o direito ao uso de certa quantidade de água bruta(1) de manancial(7), medida na unidade de tempo, estabelecendo, quando for o caso, o regime de utilização (“turnos”) e outras restrições que se façam necessárias, por tempo determinado. A outorga constitui uma manifestação de vontade do Poder Executivo, e objetiva assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água, ao mesmo tempo em que garante o direito do usuário outorgado.


2. Para que serve a outorga de direito de uso dos recursos hídricos?


De acordo com a Lei Federal no 9.433/97 (art. 11), a outorga tem o objetivo de assegurar o controle quantitativo e qualitativo da água, ao mesmo tempo que garante o direito do usuário da água a utilizar este recurso natural, de acordo com determinadas condições, que dependem da capacidade do manancial e da quantidade demandada pelo conjunto de todos os usuários. A outorga é, assim, um instrumento de gestão do uso dos recursos hídricos capaz de produzir efeitos positivos em favor dos usuários da água, do poder público e para a sociedade civil organizada. A experiência brasileira já demonstrou que a introdução do regime de outorga em algumas regiões foi extremamente útil para promover a atenuação, quando não a completa erradicação, de conflitos entre usuários competidores pela água. E isto é facilmente explicável: o usuário da água costuma compreender que a aplicação do mecanismo de outorga instala e estimula a ordem no setor, pois os usuários não outorgados, ou seja, aqueles que estão irregulares, logo buscam obter suas respectivas outorgas para que possam esperar, em caso de conflitos com outros, um resultado favorável na mediação que venha a ser feita pelo comitê da bacia ou pela própria autoridade que o tiver outorgado.






A outorga constitui uma manifestação de vontade do Poder Executivo, e objetiva assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água


3. Quais as modalidades de outorga?


O poder público pode manifestar a sua vontade em relação ao pleito de outorga através de autorização(3), concessão e permissão(9), que são atos administrativos. A Lei Federal no 9.433/97 excluiu a modalidade de permissão, prevista para os casos de vazão(10) ou acumulação insignificantes. Mais recentemente, a Lei Federal no 9.984, de 17 de julho de 2000, ao criar a Agência Nacional de Águas – ANA, somente previu a modalidade de autorização. Sendo assim, no executivo federal, há uma só modalidade de outorga, a de autorização. Quanto aos estados e ao Distrito Federal, restaram as modalidades de autorização e concessão(4).


4. A outorga só pode ser expedida pelo Poder Público?


Sim. O ato de outorga implica a intervenção do Poder Executivo, federal ou estadual, dependendo do domínio do corpo d’água objeto da mesma. Assim ficou estabelecido pela Lei Federal no 9.433/97, em seu artigo 29, inciso II para o Poder Executivo Federal e no artigo 30, inciso I, para os poderes executivos estaduais. No caso de corpos d’água de domínio da União, a outorga é expedida pela Agência Nacional de Águas – ANA. No caso de corpos d’água de domínio estadual, a tarefa de expedir outorgas cabe à entidade(5) ou órgão público(8) deste nível de poder encarregado da gestão do uso da água.








GLOSSÁRIO




  1. Água bruta – Diz-se da água tal como é encontrada nos mananciais, superficiais ou subterrâneos, independentemente de seu nível de qualidade. Há água bruta límpida como a que é extraída de aqüíferos sedimentares de grande profundidade, e água bruta impura, contaminada, algumas vezes fétida, esta última encontrada em muitos rios de todo o mundo.



  2. Aqüífero sedimentar – Denominação corrente dos aqüíferos (acumulações de águas subterrâneas) intersticiais ou porosos representados pelas bacias sedimentares regionais, costeiras, interiores e depósitos recentes de aluviões, coluviões, dunas e coberturas. O aqüífero sedimentar difere do fissural (constituído por rochas cristalinas e metamórficas fraturadas ou fissuradas) e do cárstico-fissural (constituído por rochas carbonatadas que, além de possuírem fraturas e superfícies de descontinuidades primárias, têm essas aberturas alargadas por processos de dissolução pela água.



  3. Autorização – Ato administrativo unilateral, discricionário e precário, pelo qual o Poder Público consente ao administrado-pretendente a realização de certa atividade, serviço ou uso de bem público ou privado, de interesse exclusivo ou predominante do particular. No interesse desta matéria, tratou-se da autorização como uma das modalidades de outorga de direito de uso da água.



  4. Concessão – Contrato administrativo bilateral para atender a serviço de utilidade pública. No interesse desta matéria, a concessão foi enfocada como uma das possíveis modalidades de outorga de direito de uso dos recursos hídricos.



  5. Entidade – Pessoa jurídica de direito público ou privado, podendo ser estatal, autárquica, fundacional ou paraestatal. A Agência Nacional de Águas – ANA é entidade autárquica, sob a forma de agência (autarquia especial recomendada pela Reforma do Aparelho do Estado, integrando o setor de atividades exclusivas do Estado).



  6. Geração hidroenergética – Uso não consuntivo (não retira a água do manancial) que transforma a energia potencial das correntes de água em energia elétrica. Dois fatores entram em jogo nesse cálculo, a vazão do curso d’água no ponto do aproveitamento e a altura de queda nesse ponto, sendo a energia elétrica produzida a multiplicação dessas duas grandezas afetada de um coeficiente técnico.



  7. Manancial – Fonte de água no meio natural, superficial ou subterrânea. Rios, córregos, riachos, lagoas, lagos, cachoeiras, aqüíferos, são diferentes tipos de mananciais.



  8. Órgão Público – Centro de competência instituído para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem, constituindo unidades de ação com atribuições específicas na organização estatal. A Secretaria de Recursos Hídricos – SRH/MMA é um órgão público.



  9. Permissão – Ato administrativo negocial, discricionário e precário, pelo qual o Poder Público faculta ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabelecidas pela Administração. No interesse desta matéria, a permissão foi comentada como uma das modalidades de outorga de direito de uso dos recursos hídricos, atualmente em desuso.



  10. Vazão – Volume de água escoado por unidade de tempo em um leito fluvial, canal, conduto, vertedouro ou abstraído de um poço subterrâneo ou transportado de um ponto a outro de determinado espaço físico ou região. O termo vazão é aplicado a outros líquidos que não a água (vazão de óleo em tubulações industriais, por exemplo).


5. Mas não pareceria razoável que as agências de bacia emitissem as outorgas, com isso descentralizando essa atividade?


Apesar da lógica que a pergunta conduz, a da descentralização, o instrumento da outorga, ao objetivar o controle quantitativo e qualitativo das águas, recomenda, mais do que qualquer um outro, a coordenação unificada. Em primeiro lugar, para evitar que a administração da outorga, na prática, seja feita de molde a tratar situações iguais de maneiras distintas. Em segundo lugar, mas não menos importante, porque no Brasil as agências de bacia não serão, necessariamente, estatais, ao contrário, a tendência é de serem organizações civis de recursos hídricos, ou fundações de direito privado. A única agência de bacia estatal, no Brasil, é a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos – COGERH, do Ceará, que tem atuação em todo o estado. Mesmo na França, onde as agências de água são estatais, estas não expedem outorgas, embora avaliem os pleitos para sugerirem ao órgão ou entidade que expedirá a mesma. Assinale-se que, na França, as outorgas para cada tipo de uso da água são expedidas pelos escritórios regionais dos órgãos ou entidades setoriais (energia, irrigação, saneamento etc), ou seja, não há uma coordenação unificada, embora haja um registro unificado, na agência de água. A meu ver, o sistema brasileiro parece mais aperfeiçoado, apesar da existência de dois domínios dos recursos hídricos.


6. Como pode uma lei federal determinar que os poderes executivos estaduais se ocupem da expedição da outorga?


Em verdade, essa indicação procede do inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal, que diz competir à União a definição de critérios de outorga de direito de uso da água. E a União, de fato, decidiu, mediante a Lei Federal no 9.433/97, que é competência do Poder Público outorgar esse direito. É o que diz o artigo 30 da mencionada lei, inciso I, referindo-se explicitamente ao papel dos poderes executivos estaduais e do Distrito Federal quanto a este mister. Mas, é oportuno comentar, alguns juristas chegam a questionar a constitucionalidade do referido dispositivo da Lei Federal no 9.433/97, que, segundo eles, parece se imiscuir na autonomia administrativa dos estados e do Distrito Federal ao indicarem seus respectivos poderes executivos como os responsáveis pela emissão das outorgas.


7. Que usos da água estão sujeitos à outorga; e que outros usos estão dispensados desta?


Devem solicitar outorga todos os usuários da água que derivem ou captem água de mananciais, superficiais ou subterrâneos, seja para consumo final seja para utilizá-la como insumo do processo produtivo. Além disso, o uso de cursos d’água para diluir e transportar efluentes líquidos ou gasosos, tratados ou não, também estão obrigados ao regime das outorgas. Os aproveitamentos hidroelétricos e todos os demais usos que, de alguma forma, alterem o regime hidrológico e/ou hidrogeológico, seja no que se refere à quantidade e/ou à qualidade da água, também dependem da expedição de outorga de parte do Poder Público. Ficam desobrigados de pedir outorga os usos de recursos hídricos para atender a necessidades de pequenos núcleos populacionais dispersos no meio rural, além das derivações, captações, lançamentos de efluentes e acumulações consideradas insignificantes. Deve-se destacar que, ao incluir, na obrigação de pleitear outorga, o uso da água retirada diretamente do manancial para o consumo final, o dispositivo da lei engloba os casos de abastecimento direto da fonte, muito comum em zonas urbanas no que se refere a água de poços.


8. Por que a lei que criou a ANA criou, também, a outorga preventiva?


Esse dispositivo veio preencher uma lacuna existente na Lei Federal no 9.433/97. Trata-se de um instrumento que enseja ao usuário da água o tempo necessário para o planejamento, sobretudo quando o empreendimento objeto da outorga for de porte considerável. Veja-se que alguns empreendimentos como fábricas, irrigação de grande calibre, barragens para fins diversos, requerem um intervalo de tempo, às vezes longo, durante o qual outros usuários podem estar apresentando novos pleitos de outorga. Ora, a disponibilidade de água se reduz a cada outorga adicionalmente emitida. Assim, as outorgas preventivas constituem, em verdade, reservas de vazão para atender a demandas geradas por empreendimentos que se encontram em fase de planejamento ou implantação. A outorga preventiva é válida, também, para o aproveitamento de potenciais de energia hidráulica, estabelecendo uma relação entre a ANA e a ANEEL, diferindo das outorgas preventivas para os demais usos porque, no caso da geração hidroenergética(6), a reserva de disponibilidade hídrica é transformada, automaticamente, em outorga de direito de uso da água em favor do usuário que receber da ANEEL a concessão para gerar energia.






A outorga preventiva é válida para o aproveitamento de potenciais de energia hidráulica, estabelecendo uma relação entre a ANA e a ANEEL


9. Quais são os prazos relacionados com a outorga?


O estabelecimento de prazos está adequadamente disposto nas leis federais nos 9.433/97 e 9.984/2000, da forma seguinte: o início e o fim da implantação do empreendimento não deverão ultrapassar, respectivamente, dois e seis anos a partir da emissão da outorga; esses limites podem ser ampliados, desde que o porte e a importância social e econômica do empreendimento assim o justifiquem, ouvida a manifestação do Conselho Nacional de Recursos Hídricos; a vigência da outorga em corpos d’água de domínio da União está limitada a trinta e cinco anos, prorrogável, pela ANA, respeitando-se as prioridades estabelecidas pelo plano de recursos hídricos da respectiva bacia.


10. Quando uma outorga de direito de uso da água pode ser suspensa?


Estão previstos os seguintes casos de suspensão para outorgas, de acordo com a Lei Federal no 9.433/97: 1 – O não cumprimento, de parte do outorgado, de qualquer de suas obrigações constantes do ato de outorga. Por exemplo, a utilização de água em vazão maior do que a outorgada, a inadimplência em relação ao pagamento dos valores devidos em razão da cobrança pelo uso da água, o descarte de substâncias nocivas à qualidade da água, entre outros; 2 – O não uso da água conforme outorgado por três anos consecutivos, caracterizando a ociosidade da outorga; 3 – Necessidade premente de água para assistir a situações de calamidade como, por exemplo, secas severas e inundações; 4 – Necessidade de se prevenir quadro grave de degradação ambiental que, de alguma forma, requeiram vazões já outorgadas. 5 – Necessidade de água para se atender a usos de interesse coletivo para os quais não se disponham de fontes alternativas. 6 – Necessidade da manutenção de condições de navegabilidade do corpo d}água, isto é, o calado das correntes de água deve permitir o tráfego normal de embarcações ao longo de seu curso.


11. Qual a relação da outorga com a cobrança?


Outorga e cobrança se complementam. Como já foi referido, a outorga reduz conflitos, permite o controle da qualidade e da quantidade da água, além de assegurar o direito de uso da água ao outorgado. A cobrança, por sua vez, é capaz de induzir o usuário à adoção de uma postura de racionalidade quanto à utilização dos recursos hídricos, além de permitir o alcance de vários outros objetivos. A combinação desses dois instrumentos constitui, pode-se afirmar, a essência do gerenciamento do uso dos recursos hídricos, uma vez que, para chegar aos indicadores, parâmetros e regras que norteiam outorga e cobrança, praticamente todos os demais instrumentos terão sido estudados e definidos. Aqui refiro-me aos planos de recursos hídricos, sistema de informações e enquadramento de corpos d’água.


Mas, sob o ponto de vista de aplicação, é importante que se comente que a outorga pode ser aplicada autonomamente, o que não ocorre com a cobrança, isto é, a cobrança somente pode ser posta em prática para usuários já outorgados. Finalmente, diga-se, o grande esforço que neste momento se faz no campo da gestão de recursos hídricos no Brasil é, diria eu, prioritariamente voltado para a colocação em prática, em curto e médio prazos, desses dois instrumentos de política, como, aliás, o vem fazendo a nova Agência Nacional de Águas – ANA, com elevado acerto na definição de suas prioridades.






Outorga e cobrança se complementam. A outorga reduz conflitos, permite o controle da qualidade e da quantidade da água, além de assegurar o direito de uso da água ao outorgado. A cobrança é capaz de induzir o usuário à adoção de uma postura de racionalidade quanto à utilização dos recursos hídricos


12. Que profissionais trabalham com o tema da outorga?


Inúmeras categorias profissionais estão envolvidas com a outorga. Começando pelo serviço público, os engenheiros, principalmente os especialistas em hidrologia, e os geólogos, sobretudo aqueles que se dedicam à hidrogeologia aplicada, são os profissionais que tratam da questão sob o ponto de vista do conhecimento do comportamento do manancial. Além destes, os biólogos, com destaque para os limnologistas por se ocuparem das águas doces e seus organismos, principalmente sob o ponto de vista ecológico, devem estar envolvidos com os procedimentos de outorga; ao lado destes, deve-se considerar o papel dos químicos, cujo conhecimento é essencial para enriquecer o trato da questão da qualidade da água. No que se refere à demanda, há engenharia para todos: os engenheiros agrônomos, para avaliar a justeza dos pleitos para irrigação, para dessedentação de animais e para a piscicultura; os engenheiros eletricistas para fazerem o mesmo em relação às reservas de demanda de vazão de parte da ANEEL; os engenheiros sanitaristas, para a análise dos pleitos de outorga para estações de tratamento de água e de efluentes, além de avaliarem os descartes desses efluentes nos cursos d’água; os engenheiros de produção e os engenheiros industriais, para colaborarem na análise de pleitos do setor fabril. Além destes, os advogados, que se ocupam dos aspectos jurídicos, de grande importância na análise de um pedido de outorga; os geógrafos e os gestores públicos, voltados para avaliação de conjunto da bacia, com base em seu plano diretor e perspectivas futuras; os economistas, administradores e estatísticos, para avaliarem a viabilidade do que se pede, evitando ou indicando a correção, algumas vezes, de pedidos absurdos; os profissionais de saúde pública, os estatísticos e técnicos em demografia. Sem que se tenha esgotado a matéria, aí está uma gama variada de qualificações agasalhadas em um processo de outorga no serviço público. Todas essas categorias atuam, também, “do outro lado do balcão”, ou seja, como consultores, instruindo a elaboração de pleitos de outorgas para os usuários da água. Atuarão, ainda, nas agências de bacia que, por certo, no futuro, serão seguidamente consultadas sobre esses pleitos. Conforme se percebe, há uma rica trama de possibilidades de trabalho profissional girando em torno de um só tema que é a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, tudo isso sem contar as oportunidades indiretas como a pesquisa e ensino, a magistratura, o Ministério Público, o legislativo e outras mais.


13. Há relação entre outorga e licenciamento ambiental?


Há sim. E muito! Em primeiro lugar, um instrumento não libera o usuário da obtenção do outro, ao contrário, eles guardam entre si uma especial relação de complementaridade. Vamos comentar a outorga e, daí, tentar estabelecer sua relação com o licenciamento ambiental. A outorga pode ser decomposta em duas partes quanto a seu conteúdo. Os textos do Direito Administrativo as classificam em parte vinculada e parte discricionária. A parte vinculada, também dita regrada, estabelece requisitos necessários à sua formalização. No caso da outorga, esta se vincula às prioridades de uso, definidas nos planos das bacias, à preservação dos usos múltiplos, com destaque para a navegabilidade dos leitos, além do enquadramento dos corpos d’água. Basta que se recorra ao texto da Lei Federal no 9.433/97 para encontrar estes requisitos claramente definidos. Quanto ao caráter discricionário da outorga, que não pode ser confundido com arbitrariedade, este é indicativo da liberdade que tem o administrador público para eleger algum aspecto de interesse coletivo, devidamente motivado, para completar a caracterização do ato. É aí que se estabelece a complementaridade entre outorga e licenciamento ambiental, pois a parte discricionária da outorga irá, as mais das vezes, incidir sobre aspectos ambientais, os quais, não é ocioso assinalar, abrangem os meios físico, biótico e antrópico.


14. A competência do Poder Executivo Federal para outorgar pode ser delegada a outros níveis de Poder Público?


Pode sim. De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei Federal no 9.433/97, essa competência pode ser delegada, no caso de corpos d’água de domínio da União, aos estados e ao Distrito Federal. Mas observe-se que, ao delegar essa responsabilidade, a União deve verificar a real condição administrativa de que o estado ou Distrito Federal dispõe para a boa execução da tarefa de outorgar, pois a União, ao delegar, não se exime da responsabilidade que tem pela adequada aplicação das normas relativas à outorga. Um dado: o nível estadual de poder e o Distrito Federal não são obrigados a receber a delegação quando proposta pela União Federal.


15. A que penalidades está sujeito o usuário que não cumprir as normas relativas à outorga?


A Lei Federal no 9.433/97 caracterizou, em seu artigo 49, as infrações às normas de utilização de recursos hídricos. No artigo imediatamente seguinte, definem-se as penalidades aos infratores, que incluem advertência por escrito, multas que podem alcançar os dez mil reais, dependendo da gravidade da falta cometida, embargo, provisório ou definitivo, além da reposição, no seu antigo estado, dos recursos naturais degradados por força da infração cometida.






O racionamento do uso da água, medida extrema, terá critérios estabelecidos por meio de decreto do Presidente da República


16. Que critérios têm sido considerados para avaliar a capacidade do manancial quando uma outorga é pedida?


No caso dos recursos hídricos de superfície, a disponibilidade hídrica admite avaliações distintas em razão do caráter aleatório das vazões, explicando a existência de diferentes metodologias usadas pelos estados e pela própria União. Em qualquer caso, todavia, a definição da vazão máxima passível de outorga em uma bacia ou curso d’água é o primeiro problema a considerar. Se a região é de clima úmido, com rios permanentes durante todo o ano, a outorga pode ter critérios definidos para períodos longos, adotando-se vazões cujo risco de não serem satisfeitas seja baixo, como, por exemplo a vazão notada por Q95, que somente não deverá ser atendida uma vez em cada vinte períodos de tempo, ou Q90 etc. Esse grau de risco variará com a prioridade do uso. Alguns estados brasileiros onde a densidade de uso dos rios ainda não é muito comprometedora, adotam oitenta por cento da vazão mínima de sete dias com dez anos de recorrência (0,80 . Q7,10) como referencial para a vazão máxima a outorgar. Em regiões mais congestionadas em termos de uso dos recursos hídricos (situações já consumadas quando se começou a outorgar), o referencial é uma percentagem de uma vazão média das médias. Em regiões áridas, o processo de avaliação de outorgas costuma basear-se em intervalos de tempo mais fragmentados, com vazões outorgadas em termos sazonais, em razão da intermitência dos rios, além de apelar para soluções por meio de obras de oferta hídrica. No que se refere às águas subterrâneas, parte-se de um conjunto de procedimentos e técnicas capazes de permitir o dimensionamento dos reservatórios aqüíferos(2), em termos geométricos e hidráulicos. Em particular, costuma-se solicitar ao usuário que apresente sua proposta de localização dos poços em uma base cartográfico-geológica adequada, com dados que identifiquem a coluna litológica, com descrições objetivas das formações cortadas pelos furos, além de dados experimentais e análise de teste de bombeio convencional, de maneira a permitir não somente especificar a vazão ótima de operação do poço (vazão ideal a outorgar), mas também avaliar as propriedades hidráulicas dos aqüíferos.


17. Há previsão de regime de racionamento para o uso dos recursos hídricos?


Sim, de caráter preventivo. O racionamento do uso da água, medida extrema, terá critérios estabelecidos por meio de decreto presidencial. Será adotado em episódios de secas ou de escassez relativa. A escassez relativa pode suceder quando há disponibilidade de água, mas que seja afetada (ou superada) pela demanda. O que é importante comentar quanto a racionamento, é a forma como este deve ser levado ao conhecimento da sociedade, que deve ser, a um só tempo, clara e positiva, ou seja, explicitando a verdade sem subterfúgios ou omissões, porém demonstrando que se trata de medida preventiva e não que se estejam remediando situações de escassez absoluta já instaladas.


18. Quanto já se comprometeu de água por meio da outorga no Brasil?


A resposta a esta indagação é, evidentemente, estimativa, pois há outorgas em mananciais de dois domínios. Mas, num breve exercício, pode-se chegar a algo ao redor dos 1.100,000 m3/seg (hum mil e cem metros cúbicos por segundo) de outorgas para usos consuntivos, resultado obtido a partir de um levantamento expedito entre os estados federados e a Agência Nacional de Águas, conforme ilustra o quadro abaixo. O total demonstrado no referido quadro é de 988,484 m3/seg, pois deixam de constar do mesmo os estados da Paraíba, Sergipe e Alagoas, que não dispunham do levantamento quando da solicitação para esta entrevista. A estimativa, jogando para 1.100,000 m3/seg, é minha, e comporta crítica, naturalmente. O Estado do Rio Grande do Sul nada registra em termos de outorga em razão de esta tarefa vir sendo exercitada apenas em caráter experimental e informal, sem edição de portarias. Conforme se percebe, aproximadamente 10% do total, em termos de vazão, procedem de águas subterrâneas e 90%, de águas superficiais. Agora, qual seria, por exemplo, o total utilizado de água no Brasil, excluída a parcela não consuntiva para gerar energia e aquela para diluir efluentes? Novamente, em termos estimativos, mas com um grau de precisão ainda menor, esta cifra pode alcançar os 3.000,000 m3/seg, vazão a que se chega somando-se as necessidades do abastecimento humano para toda a população brasileira, à confortável taxa de 200 litros por dia por pessoa, com a demanda para irrigação à base de um litro por segundo por hectare, em três milhões de hectares, e com uma estimativa grosseira para o uso industrial tomando-se, como ponto de partida, estudo da ABRH baseado no valor da transformação industrial, atualizado para 2001. Apesar de grosseira, esta estimativa vale como uma provocação para algum leitor que pretenda se debruçar sobre um trabalho de pesquisa nesta direção, além de ser útil aos gestores públicos de recursos hídricos, no Brasil, dando uma idéia do quanto ainda se tem por outorgar. Finalmente, a estimativa ora feita, ainda que imprecisa, dá-nos a sensação de quão rico em água é o nosso País, posto quanto os 3.000,000 m3/seg representam apenas 1,68% da vazão média dos cursos superficiais de todo o território nacional, que tem acumulado ainda, em formações subterrâneas, cerca de 112.000 km3 de água.








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