Ponto de Vista

Gente cuidando das Águas

2 de fevereiro de 2004

Como exercitar a democracia no gerenciamento dos recursos hídricos

 


As constituições da maioria dos países realçam sempre os valores da democracia e da cidadania. As leis sobre águas estabelecem que a gestão deve ser democrática, compartilhada, integrada, descentralizada, contando com a participação dos usuários e das comunidades. Acima de ser considerada como um bem econômico e ambiental, “a água é um bem comum”. São conceitos irrefutáveis e universalmente aceitos. A questão fundamental é compatibilizar a vontade e o desejo expressos na lei com realidades concretas. Por exemplo: nossa experiência de democracias representativas irão sempre se reproduzir na gestão de águas com seus defeitos e virtudes. Os representantes nos órgãos colegiados, e, principalmente os usuários, tratam a água pelo seu lado utilitário. Esse comportamento (de defesa de interesses) limita a perspectiva de gestão integrada e compartilhada à repartição da água para os diferentes usos econômicos, sacrificando quase sempre sua funções ecológicas e outras de natureza transcendental.


Os problemas são mais agudos porque muitas sociedades e, principalmente as latino americanas, passaram da condição de rurais para predominantemente urbanas, em pouco tempo, (apenas duas gerações, no Brasil) e com população concentrada em grandes cidades. Estas não estavam preparadas para receber novos contigentes populacionais. Daí problemas sociais como violência, falta do tratamento de esgoto, coleta e disposição de lixo etc.
No mundo globalizado em que a circulação da informação em tempo real estimula a formação de opinião e conseqüente reação das pessoas perdem eficácia os mecanismos representativos, quando lentos, formais e burocráticos. Por outro lado, ganha força a possibilidade de participação direta da pessoas no processo de gestão. Devemos imaginar que os cidadãos e cidadãs indignados por tantas mazelas sociais, que se confundem em um círculo vicioso com as ambientais, possam se mobilizar de modo autônomo para melhorar o mundo em que vivem. A água é vetor desse processo. E nesse modo de estimular pessoas a cuidarem melhor da água em cada momento e cada lugar não estaríamos exercitando um utópica “democracia direta”, na gestão das águas? As pessoas contribuem com energias especiais, com a emoção que não têm lugar nos processos formais de gestão. E as diferentes formas de abordagem não competem entre si: são complementares. Isso funciona na linha de que “enquanto a emoção move a razão organiza”.


Vivemos um dos momentos mais complexos da história da humanidade onde a democracia se fragiliza (é o caso de muitos países) ou até mesmo ela se rompe quando a pobreza, em seu sentido absoluto ou relativo, aumenta. Assim, também a governabilidade (da água ou não) é afetada por mudanças culturais e de percepção política dos processos de transformação em curso no mundo. A falta de percepção correta, a dinâmica dos novos processos e relações políticas, sociais e econômicas aliados a perversa concentração de capital e poder promovidos pela globalização, enfraquecem e fazem envelhecer instituições, gerando perda de credibilidade do governo.



É hora de percebermos o início de uma “nova ordem” em que os cidadãos como seres humanos, sociais e políticos passem a exercer papel mais destacado na gestão das águas. Na perspectiva da complementaridade isso requer aceitar que “o governo pode muito, mas não pode tudo”. Trata-se de um processo de inclusão de gente cuidando de água em seu cotidiano com parte da sociedade civil não organizada. As pessoas cuidam da água não apenas por sua utilidade, mas por sua transcendência. Isso impulsiona a disposição delas de se mobilizarem, aumentado-lhes a auto-estima e reforçando sua convicção de poder serem protagonistas e empreendedoras assegurando sustentabilidade nos processo de gestão.


O ministro do Meio Ambiente do Brasil, José Carlos Carvalho, acaba de promover o lançamento de um livro que apresenta a metodologia de mobilização social, bem como sua importância: “Gente Cuidando das Águas” (Autores: Demóstenes Romano Filho, Patrícia Sartini e Margarida Maria Ferreira). O ministério assume, assim, que os mecanismos de comando e controle não são suficientes para a gestão eficaz da água. “Gente Cuidando das Águas” é parte dos resultados do projeto para elaboração “metodologia para a mobilização social,”dentro da programação do PNEA/MMA na perspectiva do esforço para revitalização da bacia do rio São Francisco.


Muito além da sua simples, clara e consistente base metodológica de orientação e apoio a ações pessoais ou para sustentar movimentos de cidadania pelas águas, o livro revela uma linha filosófica de elevado conteúdo mobilizador e inspirador de mudanças na forma de ser, de ver e de agir em relação à água. Dentre uma série registros com novas visões sobre a água em níveis não convencionais, sobressaem informações do livro do, dr. Masaru Emoto intitulado “Mensagem da Água”, em que ele demonstra a sensibilidade, as reações da água quando submetida a impactos diferentes (positivos ou negativos) através de técnica de fotografias de seus cristais. É como expressão de vida.
Mais fácil de entender essa conclusão é avaliarmos o que ocorre em nosso cotidiano onde água que é fonte de vida pode também ser veículo da morte. O que importa é a nova abordagem onde o cuidado com a água pelas pessoas, seja o contraponto da gestão da água pelas instituições no sentido da cooperação e da complementaridade.


As pessoas são sensíveis e necessitam de estímulos para se mobilizarem por causas, diferentemente das tradicionais abordagens de campanhas onde as instituições buscam mobilizar pessoas através de convocações no sentido imperativo do “faça” ou “não faça”. Essa perspectiva de motivar e oferecer condições para as pessoas se mobilizarem contém o sentido ético do respeito ao próximo (gente ou outro ser da natureza),e também no respeito a si próprio. A geração de compromisso ético no cuidado com a água, que é também de cuidado com a vida, atende à proposta do filósofo Leonardo Boff quando propõe que uma evolução das relações e dos valores no processo civilizacional passa pelo estabelecimento de uma “ética dos cuidados”. Cuidados com a água, com gente, com a vida. Finalmente, a leitura de “Gente Cuidando das Águas” reduzirá a angústia, a ansiedade, indignação e impulsionará pessoas para a saudável busca da transformação do mundo atual em um mundo melhor.