Turismo religioso no Sul de Minas

Pelas estradas de terra das cidades das águas

11 de fevereiro de 2004

Peregrinação a Nhá Chica inaugura turismo religioso e divulga trilha ecológica na região das estâncias hidrominerais, no Sul de Minas


Quando o dia amanheceu e as vacas ainda mugiam nas porteiras dos currais, a trilha que corta montanhas e vales estava ponteada de andarilhos.  Em grupos, várias centenas de pessoas percorriam o caminho de 33km que liga São Lourenço à Baependi, no Sul de Minas. Eram peregrinos rumo ao santuário de Nossa Senhora da Conceição, erguido em homenagem à Nhá Chica. Há três anos, a antiga estrada de chão que passa pelos municípios de São Lourenço, Soledade de Minas, Caxambu e Baependi entrou para o livro Roteiros de Fé Católica do Brasil, da Embratur,  como o Caminho Santo à Nhá Chica. A iniciativa do movimento
comunitário Viva São Lourenço Viva e o envolvimento do Ciclo de Formação Cristã e do Curso de Turismo e Hotelaria da Faculdade Santa Marta, na organização,  inaugurou o primeiro circuito
religioso do Circuito das Águas.


Nhá Chica, a velha senhora que viveu em meados do século 19, provavelmente andou por esses caminhos de terra e pedras, para levar comida, remédios  e cuidados aos moradores pobres dessas roças. Tanta dedicação e sacrifício resultaram em curas, muitas consideradas milagrosas, e deram fama à senhora que passou a ser venerada depois de morta. Esses fatos levaram o Vaticano a estudar sua beatificação. Com um milagre comprovado, Nhá Chica está a um passo de se tornar beata e bem mais perto de ser reconhecida como santa. Aliás, santa ela já considerada por uma legião de devotos.


A Caminhada
Os primeiros passos começam em São Lourenço, na capelinha de Nhá Chica, construída pelo artista plástico Marco Aurélio, como pagamento de promessa. O Caminho Santo, apesar do crescimento das cidades nos vales do entorno, permanece como no século 19, mesmo tendo, em alguns trechos, servido de leito para a ferrovia. A estrada é uma fronteira que dá acesso a grandes propriedades e pequenas comunidades. Difícil imaginar que na pequena e densamente povoada São Lourenço (56km2 e mais de 40 mil habitantes) possa se afastar tanto do urbanismo. Um acesso de terra batida saindo da rodovia principal, o Anel Rodoviário, leva para longe o barulho do trânsito e a paisagem de concreto. Uma casa aqui, outra ali, povoam a comunidade da Conquista. São casas simples, sem calçadas, com cercas de madeira, por onde fogem as galinhas e os porcos que passeiam pela estrada. Arbustos floridos, chaminés fumegantes e roupas no varal completam o cenário.
A estrada  é larga o suficiente para as carroças que transportam leite, capim… Mas também passam bem carros e caminhões pequenos que abastecem as poucas e pequenas vendas da comunidade. As subidas curtas e pouco íngremes, já atraíram cavaleiros, motoqueiros e jipeiros. Em alguns trechos, o acúmulo de pedras e os sulcos deixados pelas chuvas e enxurradas, deixam a pista em condições ideais para esses tipos de esporte. O Enduro da Independência de 1997, seguiu essa trilha. A caminhada, no entanto, é mais democrática e consideravelmente mais ecologicamente correta.


KM 11 – Até então não se passaram 10km. A subida é dura, mas sombreada por árvores e barrancos. A descida garante a vista de um vale, ocupado por fazendas bem cuidadas e com águas represadas. O Hotel Fazenda Vista Alegre – já no município de Soledade de Minas – é um oásis com lagos, patos e muitas árvores. Então é hora de reduzir a marcha e encarar outra subida, passando por  residências rurais. Casa de quem fugiu da cidade grande, sem abrir mão do conforto, atrás da paz do campo.


Bandos de pássaros coloridos e barulhentos cruzam o céu e se embrenham nas matas a toda  hora. O gavião voa solitário e, não raro, é visto descansando ou observando no mourão de alguma cerca.


No KM 13 fica o bairro do Mato Dentro. Uma venda, algumas casas e a igreja de São José, onde as Folias de Reis se encontram no dia 6 de janeiro. Mais adiante um campinho de futebol dos mais bem cuidados garante os jogos nos fins de semana. Nesse trecho, o gado começa a aparecer não apenas nos pastos, mas descansando e ruminando, às vezes amamentando, no meio da estrada.


Começa o caminho das porteiras. São cerca de 3km e pelo menos três porteiras que não devem ser esquecidas abertas, justamente para impedir o passeio do gado de uma fazenda para outra. 


As propriedades que se escondem nos vales e grotas até esse trecho são construções antigas que se dedicam ao gado e a pequenas culturas. Nessa época do ano, de pouca chuva, a poeira cobre a vegetação das margens da estrada e inibe o florescer de inúmeras e coloridas espécies. Mesmo assim, o mato fica salpicado de pequenas flores roxas, amarelas e brancas.


No KM 17, o caminho já está no município de Caxambu. Um ribeirão de água limpa corta a estrada que fica um pouco mais larga.  A fazenda Ouro Verde destaca-se na paisagem, ora pelo silo ora pelos lagos. Os cafezais cobrem os morros mais altos e mais distantes da estrada. Logo depois da Ouro Verde, o sítio Primavera, com cercas floridas, lago e currais bem tratados convidam o turista para um dia típico no campo. Em seguida, aparece a fazenda da Glória e, logo adiante, um mini parque aquático, o Pingo d’água.


No KM 25 o anúncio de um loteamento dá sinais de que o asfalto se aproxima e, 500 metros depois surge o centro de convenções e a rodoviária de Caxambu. O caminho pela civilização e pelas ruas calçadas dura pouco mais de um quilômetro. É só o tempo de passar por trás da rodoviária para pegar mais terra para os oito quilômetros que faltam até Baependi. Esse trecho é plano, mas cercado de planícies, o que significa dizer que o sol brilha sem bloqueio de árvores ou morros. A pista cheia de pedras e cascalhos exige um pisar mais cauteloso.


Já na cidade, antiga e ladeirosa, o caminho termina com a visita ao Santuário de Nossa Senhora da Conceição, uma construção moderna, onde está o túmulo de Nhá Chica. Mas a grande emoção do caminho é entrar, a alguns metros dali, na casa simples, com cômodos pequenos e fogão à lenha, onde Nhá Chica descansava de suas andanças e também cuidava de suas visitas. A casa guarda muitas mensagens de agradecimentos de graças alcançadas, e fotos da velhinha venerada que aparece sempre envolta em panos, deixando a mostra apenas as mãos, que seguram um inseparável cajado e o rosto suave, com as marcas do tempo.


A Caminhada de Nhá Chica já entrou no calendário turístico e religioso do Sul de Minas e será realizado todo 1ª de Maio. Em 2003 tem mais.


 


Para contemplar e meditar
A oração é uma forma de agradecimento e de exaltação à natureza


A peregrinação é um estímulo à prática já muito adotada pelo homem do campo. Independente das recomendações médicas e do modismo, na roça sempre se anda muito para chegar a qualquer lugar: ao hospital, a escola, a cidade… É um hábito que começa na infância e acompanha homens e mulheres que moram no campo pela vida inteira.


Néa Pereira Albim nasceu em Soledade de Minas. Está acostumada a caminhar desde criança. “Eu e minhas irmãs íamos longe, no mato, catar lenha”, conta. Para ela e o marido, Carlos Alberto, andar é um prazer. Na verdade é o lazer do casal nos finais de semana. O caminho Santo à Nhá Chica eles ainda não conheciam,e acharam uma ótima alternativa. Em compensação estão acostumados a cruzar os 20km de estrada de terra que separam São Lourenço de Dom Viçoso e os 25km que ligam o mesmo município a São Sebastião do Rio Verde. “Nós não podemos ver um chão vermelho que ficamos loucos”, diz Néa.


O mesmo prazer sente seu Zezé da Loteria. Aos 71 anos ele vai uma vez por ano de São Lourenço a Aparecida – 125 Km. O Caminho Santo à Nhá Chica para ele é percurso fácil. Faz os 33km em menos de seis horas. A média, para quem já está acostumado a longas caminhadas, é 6h30m.


Hoje as trilhas são uma das muitas alternativas de turismo ecológico. Caminhar, além de ser um esporte saudável, é uma prática acessível a pessoas de qualquer idade e não depende de equipamentos caros. Para quem está acostumado, como Néa, Carlos e seu Zezé, as caminhadas pelo campo são uma ótima oportunidade para meditar. Tudo em volta conspira  para isso: o silêncio, o ar puro, a paisagem. “A gente sempre reza”, diz Néa.


A oração é uma forma de agradecimento e de exaltação à natureza.


Responsabilidade com o ambiente


Após a Caminhada, um grupo de voluntários e de estudantes da Faculdade Santa Marta percorreram todo o trajeto recolhendo o lixo e fechando as porteiras das fazendas que  ficaram abertas.