Abril: mês do índio

Cacique dá aula de educação ambiental

25 de março de 2004

Uma relação de harmonia e convivência: a natureza dos povos indígenas e os povos indígenas na natureza


 


A carta do cacique Seattle é famosa. Foi endereçada ao ex-presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Pierce, como resposta à sua proposta para comprar as terras dos Peles Vermelhas. Mais do que uma resposta, ela é um documento histórico que revela o pensamento, o sentimento e a cultura da tribo duwamish. De uma beleza poética singular, a carta apresenta duas concepções de natureza etnicamente conflitantes. Uma pertencente ao povo duwamish e a outra concepção, ao chefe branco americano. Apesar de quase um século e meio de existência, o documento escrito em 1854 tem sobrevivido a inúmeras versões. Mas continua atual. 


Aproveitamos o dia 19 de abril, Dia do Índio, para mais uma leitura e interpretação desta carta que oferece aos professores e alunos uma oportunidade de trabalhar a temática ambiental dentro de um contexto que ultrapasse uma abordagem naturalista. O cruzamento de duas ou mais concepções de natureza cria condições para uma reflexão sobre a relação de diferentes grupos sociais, num determinado tempo e espaço, com o mundo natural. Nessa perspectiva, este texto apresenta trechos da carta acompanhado de uma pequena análise como sugestão de caminhos para discussão.


O homem não tramou o tecido da vida, 
ele é simplesmente um de seus fios…
A terra não pertence ao homem: 
o homem pertence à terra….
Há uma ligação em tudo. 


A interação do índio com a natureza se estabelece através de uma reciprocidade em que ambos são considerados e respeitados como sujeitos. Isto implica um tipo de contrato natural entre as partes em que não há posse nem dono; conseqüentemente, não se pode vender nem comprar. A terra não pertence ao homem. Para os duwamish a terra é um sujeito. E não um objeto ou uma mercadoria que pode ser comercializada pelo valor de uso e de troca.


Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.


Na cultura duwamish cada pedaço da terra é sagrado. A vida pulsa num ramo brilhante, num punhado de areia, numa penumbra, num zumbido de um inseto inscrevendo-se na memória e na experiência desse povo. A existência em si de cada elemento natural e a relação de parceria garantem então a sacralidade. A seiva que percorre o corpo das árvores (repare que não é um tronco mas o corpo) carrega consigo as lembranças do homem vermelho. Essa cumplicidade só se estabelece entre sujeitos que se interagem e convivem num mesmo espaço e tempo.


Segundo o professor e antropólogo Carlos Rodrigues Brandão reconhecer-se em condições de igualdade com as plantas, os animais, os minerais, as estrelas, a lua, indica que a natureza adquire também significados como natureza-sujeito, natureza-significativa e natureza-social. Para esse antropólogo, o relacionamento dos grupos tribais com o mundo natural demonstra como essas três concepções de natureza estão bem articuladas: “Os índios estão “naturalmente” imersos no mundo natural, vendo-se a si mesmos como as plantas e os animais com os quais convivem prática e simbolicamente. Há um conhecimento científico indígena do mundo e cada cultura particular o faz variar de acordo com a maneira como combina os seus próprios termos de significado da realidade. Dentro de uma lógica de explicação da origem dos seres humanos, uma tribo pode imaginar-se descendente de uma união entre sol e a lua, enquanto uma outra pode considerar-se gerada por um casal de animais totemicamente tido como ancestral. Os índios vêem-se no interior de uma trama de relações ativas, intencionais e significativas no mundo da natureza. Isso com a condição de sentir este mundo como alguma coisa não apenas viva, mas vitalmente significativa, ou seja, algo animado e reciprocamente social. Social no sentido de, por exemplo, poder reger-se de acordo com as regras tribais de aliança e parentesco. Um mundo em que o homem se inclui justamente porque pode “trocar” bens, serviços e significados de alguma maneira, tal como as pessoas o fazem, fazendo disso a possibilidade da própria vida social. Neste amplo e generoso campo de permutações, os homens indígenas vêem-se em trocas continuadas com a natureza e, também, em sistema de trocas entre eles, por meio da natureza. Assim, o mundo em que vivem e o mundo que conseguem imaginar são, ao mesmo tempo, um sujeito de trocas e um contexto de trocas”.


Nesse campo de permutações não existe uma adaptação passiva do índio à natureza. As sociedades indígenas intervêm socialmente no ambiente e são o resultado de séculos de convivência com o mundo natural. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro ressalta que “a natureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstração vazia”. 


O autor, tomando como referência o índio brasileiro, assinala dois aspectos fundamentais: a) as formas de organização sócio-política dos povos indígenas determina a relação com a floresta amazônica. b) os índios e o ambiente amazônico têm uma história em comum, evoluíram em conjunto, ou seja, “Hoje se começa a descobrir que a floresta amazônica, nos aspectos fitogeográficos, faunísticos e pedológicos, condicionou tanto a vida humana quanto foi condicionada por ela: a Amazônia que vemos hoje é a que resultou de séculos de intervenção social, assim como as sociedades que ali vivem são o resultado de séculos de convivência com a Amazônia”.


Ainda sobre os duwamish, observa-se que as relações do povo com a terra se caracterizam como relações de parentesco. A terra é concebida como mãe e os índios se consideram filhos, uma parte da terra. O fato de todos pertencerem à mesma família representa uma classificação una, que revela que todos tecem a mesma teia da vida. Não se separa as rochas da campina nem os animais dos humanos. Minerais, vegetais e animais se entrelaçam no mundo social indígena impregnado de significados, constituindo assim uma única família que evolui em conjunto. 


Os mortos do homem branco esquecem a terra onde nasceram, quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família


… Essa água cristalina que corre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados…cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida de meu povo. O murmurar das águas é a voz de meus ancestrais.


Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção da terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista prossegue seu caminho. Deixa para trás o túmulo de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas, como carneiros ou enfeites coloridos.


Nesses dois trechos da carta o cacique acentua inicialmente que a morte para o branco significa esquecimento da terra de origem. Na concepção do homem branco, a terra e o céu são considerados como coisas e inimigos a serem conquistados, dominados e explorados. Quanto à posição indígena, a terra é um ser vivo próximo, um parente a quem se chama de mãe e de irmã. Em hipótese alguma os elementos naturais são coisas e objetos. A água se inscreve no tempo e na memória, significando o sangue e a voz dos antepassados. No dizer do índio, a história do homem branco tem sido mais uma história contra o mundo natural:


Não há um lugar silencioso nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de flores na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o coaxar dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite?


O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o homem. Parece que o homem branco não liga para o ar que respira (…) O ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu a nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro.


O que seria do homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais breve, também, acontecerá ao homem. Há uma ligação em tudo. Tudo o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isto sabemos: a terra não pertence ao homem: o homem pertence à terra. O homem não tramou o tecido da vida, ele é simplesmente um de seus fios. O que quer que faça ao tecido, faz a si mesmo.


Essa ligação em tudo é fundamental para resgatar e reintegrar o ser humano no mundo natural. E mais, para que ele reconheça que não está só, que mesmo adotando ainda uma postura antropocêntrica partilha a terra e a vida com outros seres. Que toda atitude humana se desdobra em ações que se voltam contra si próprio. Tudo o que acontecer à terra acontecerá aos filhos da terra. A visão fragmentada e dissociada do ambiente, mesmo ainda sendo predominante, começa a se embaralhar, indicando o grande quebra-cabeça da vida onde todos são sujeitos e se entrelaçam. O enfoque centralizador, a atitude egoísta e possuidora, a relação manipulativa com a natureza, apresentam resultados que estão exigindo uma tomada de consciência do ser humano, levando-o a repensar sua inserção no mundo e, principalmente, suas relações sociais, buscando estabelecer um vínculo fraternal e solidário com os demais seres. 


Carlos Rodrigues Brandão destaca ainda três princípios de relações que orientam o sentimento e o saber dos índios a respeito do mundo em que vivem e os seres naturais com que se envolvem: “A terra e os seus elementos não são uma coisa, mas um dom; tudo o que existe e é dado ao homem estabelece a obrigação de uma reciprocidade que dissolve a dualidade entre a natureza e a sociedade e que se atualiza continuamente por meio de trocas de parte a parte: a terra não é somente um lugar, mas um tempo realizado de símbolos e de memórias”. 


A idéia de dom significa mais uma vez que a natureza não é um objeto a ser espoliado, saqueado e depredado. Ela é um patrimônio universal que une as gerações passadas, presentes e futuras (repare que o verbo é de ligação – unir – e não de pertencer, que denomina posse.), inscrevendo-se em vários tempos. Para estabelecer tais vínculos de união as relações têm de estar assentadas em bases de reciprocidade, de constante trocas de parte a parte, em que cada parte adquire significados específicos mas sem perder a característica central de igualdade entre sujeitos diferenciados. Num tipo de sociedade que se estrutura por uma atividade econômica de exploração de recursos naturais e de recursos humanos, sem considerar os aspectos ecológicos e simbólicos, compreender a natureza como um sujeito igual requer uma mudança de mentalidade e de modo de vida.