Fórum Social quer humanizar a globalização
3 de março de 2004Encontro realizado em Porto Alegre busca fortalecer um movimento mundial para se contrapor ao modelo hegemônico defendido pelo “Clube de Davos”
Encerrado no último dia 30 de janeiro, com o anúncio de uma segunda edição programada para a mesma cidade de Porto Alegre no ano que vem, o Fórum Social Mundial fez barulho suficiente para ser ouvido no outro hemisfério – mais especificamente em Davos, Suíça, onde se reuniam representantes de governos e alguns dos mais bem-sucedidos homens de negócios do mundo. Barulho, no melhor dos sentidos: conseguiu abrir espaços nos veículos de comunicação mais prestigiados do mundo, a ponto de provocar reações dos convidados do Fórum Econômico Mundial às críticas vindas da capital gaúcha. A diversidade de interesses, opiniões e propostas presentes ao Fórum Social Mundial -realizado entre 25 e 30 de janeiro – foi tão ampla que defini-lo é um exercício difícil. De maneira geral, todas as preocupações tiveram em comum o inconformismo face ao modelo de globalização dos mercados formulado no grupo de países do Norte desenvolvido e disseminado nas últimas duas décadas mundo afora. A primazia do livre comércio sobre outros valores da humanidade e o aumento do poder das corporações e das estruturais internacionais – como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os bancos multilaterais – frente às estruturas públicas nacionais de poder estiveram no centro dos debates e palestras dos convidados.
As preocupações e críticas a tal modelo, no entanto, são muitas e, em geral, estiveram vinculadas a riscos e ameaças: os riscos que a concentração de setores chaves da economia global, como o de sementes, traz para produtores e consumidores; os riscos que a privatização de recursos importantes, como a água, podem trazer às comunidades locais; as ameaças que a aproximação entre as indústrias de biotecnologia e alimentícia (os transgênicos) trazem para a saúde, o meio ambiente e a agricultura; as ameaças que os acordos de livre comércio apresentam para a legislação ambiental dos países; as conseqüências da padronização cultural promovida pelas grandes estruturas midiáticas multinacionais – enfim, uma lista enorme de temas, que estiveram em foco em oficinas e palestras nos cinco dias do encontro.
Fórum Social deu seu recado ao mundo
Novo ?internacionalismo? mostra a influência e a força da sociedade civil organizada
Com cerca de 15 mil participantes, de cerca de 117 nacionalidades, entre ativistas, índios, políticos e intelectuais, o Fórum Social Mundial não teve a pretensão de anunciar ao planeta um novo consenso global formulado pela esquerda. Não, por enquanto. Como afirmam alguns dos especialistas que falaram em Porto Alegre, o encontro pretendeu promover a troca de experiências de idéias para, no futuro, apresentar propostas de um desenvolvimento alternativo, que inverta a lógica do modelo hegemônico atual, colocando ao seu centro “o humano, sua dignidade, sua liberdade, seus direitos, sua cidadania e seu bem-estar”, conforme escreveu o deputado federal José Genoino (PT-SP). Por sinal, o “resgate do parâmetro humano” inspirou um texto do escritor Luís Fernando Veríssimo, distribuído ao final do encontro (leia sua íntegra nesta página).
Na verdade, embora haja a perspectiva de construir propostas objetivas, mais importante era tecer as bases para a construção de uma ampla aliança dos setores críticos da globalização contemporânea. Ou, como definiu o francês Bernard Cassen, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, um dos organizadores do Fórum Social, erguer “um novo internacionalismo, que progressivamente vá se firmando em escala mundial”.
Certamente uma característica desse “novo internacionalismo” será a influência da sociedade civil organizada – ou seja, das famigeradas ONGs. Em mais de uma ocasião os líderes do Fórum de Porto Alegre manifestaram que o avanço do movimento carece, além de uma agenda programática, de estruturas de poder que não podem dispensar o Estado. A marcante presença das ONGs desde os protestos na reunião da OMC em Seattle (EUA), em 1999, indica a exigência de um Estado mais democratizado, permeável ao diálogo com os vários segmentos da sociedade, que não se reduza ao papel de preposto das grandes corporações e do sistema financeiro internacional.
O Fórum de Porto Alegre deixou seu recado e, ao contrário de alguns profissionais da imprensa brasileira, o Clube de Davos parece ter compreendido. (MCG)
Davos e o meio ambiente
Milano Lopes
O meio ambiente esteve presente nas preocupações da 31º edição do Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, na Suíça, em janeiro último. O documento que resultou do encontro, preparado por 70 figuras políticas e econômicas de expressão, incluiu a biotecnologia como um dos pontos de destaque.
Ficou decidida a criação de um grupo com representantes das organizações não-governamentais – ONGs – destinado a examinar o impacto econômico, social e ambiental da biotecnologia.
Davos também serviu de palco para o lançamento de uma nova abordagem destinada a controlar a poluição e a gestão de recursos naturais. Trata-se do Environmental Sustainability Index (ESI) que calcula o desempenho ambiental de 122 países, a partir de cinco fatores: saúde dos sistemas ambientais, especialmente a qualidade da água e do ar; riscos e problemas, como os níveis de poluição; vulnerabilidade humana à degradação ambiental; capacidade social e institucional para responder às ameaças ao meio ambiente e contribuição à proteção global.
Dentro desses critérios, a Finlândia, a Noruega e o Canadá ficaram com as primeiras colocações, mas ao Brasil restou a 28º posição, atrás da Argentina, na 19º, dos Estados Unidos e da Finlândia.
O Haiti, a Arábia Saudita e o Burundi, foram classificados, pelos mesmos critérios, como os países mais poluidores do mundo.
O estudo concluiu também que competitividade econômica e ecologia não se misturam. Os Estados Unidos, por exemplo, ficaram com o primeiro lugar em competitividade, mas não estão classificados entre os 20 países mais poluidores. O Haiti, o mais poluído, tem uma competitividade perto de zero.
Mas as regras do ESI não escaparam às críticas de organizações ambientalistas. Uma delas: como explicar que a Finlândia seja o país menos poluído do mundo e utilize intensivamente a energia nuclear?
Embora o encontro de Davos tenha sido fortemente protegido por uma excessiva segurança, para impedir a repetição de manifestações de protestos, como as ocorridas no ano passado em Praga, durante a reunião do FMI, 16 ONGs participaram do evento.
Sua presença foi até elogiada pelo diretor-gerente do Fórum, Claude Smadja, para quem “as demonstrações recentes em todas as partes do mundo demonstram que tomou papel central a questão do envolvimento da sociedade civil em aspectos da governança, seja política, seja corporativa”.
O parâmetro humano
Luis Fernando Veríssimo
O Ser Humano é a medida de todas as coisas. Pelo tamanho do Ser Humano se mede a vastidão do Universo, assim como pelo palmo e a braça se começou a medir a Terra. Todo o conhecimento do mundo se faz de uma perspectiva humana, todo o julgamento das coisas do mundo se faz por um parâmetro humano. Assim, enaltecer o senso moral do Ser Humano não é um floreio de linguagem que a única espécie que fala se faz, é valorizar este frágil instrumento de medição pelo qual a vida revela seu sentido. O Ser Humano ou é moral, e julga tudo por um prisma moral, ou é apenas um mecanismo inútil.
O liberalismo pensa estar defendendo o indivíduo quando nega a primazia do social, ou diz que uma sociedade é apenas um conjunto de ambições autônomas. O culto ao individualismo seria um culto à liberdade se não elegesse como seu paradigma supremo a liberdade de lucrar, e como referência moral a moral do mercado. Se não fosse apenas a última das muitas tentativas de substituir o Ser Humano como a medida de tudo, e seu direito à vida e à dignidade como o único direito a ser cultuado. Já tentaram rebaixar o homem a mero servo de uma ordem divina, a autômato descartável de engrenagens industriais, a estatística sem identidade de regimes totalitários, e agora a uma comodidade entre outras comodidades, com nenhuma liberdade para escolher seu destino individual e o mundo em que quer viver. Mas o indivíduo só é realmente um indivíduo numa sociedade igualitária, como só existirá liberdade real onde os valores neoliberais não prevalecerem.
O que aconteceu nestes cinco dias históricos de Porto Alegre foi uma tentativa de resgatar o parâmetro humano. Se houve ações mais fortes, elas se justificam pelo princípio jurídico da auto-defesa, pois estava-se defendendo a saúde do planeta, ou pelo princípio teatral da ação simbólica. O principal foi que falou-se muito, e o que se falou foi ouvido no mundo inteiro. Se não foi entendido no mundo inteiro, não faz mal. A intenção era apenas mostrar que seres humanos não abdicaram da sua função, que o retorno de capital ainda não é a medida de todas as coisas do mundo. E afinal, este foi apenas o primeiro Fórum Social Mundial. Nos próximos, falaremos mais claro.