As hidrovias e o meio ambiente – RAYMUNDO GARRIDO
4 de março de 2004As águas são fundamentais no transporte e no processo de desenvolvimento sustentável de um país
Raymundo Garrido: o Brasil tem pouco mais de 40 mil km de vias navegáveis, mas nem 5% vem sendo utilizados pela navegação interior |
Folha do Meio – Desde que o homem é homem ele usa o transporte pelos rios. Existe uma definição para transporte hidroviário?
Garrido – Não oficialmente, mas nós podemos esboçar a tentativa de uma. Podemos afirmar que o transporte hidroviário é uma das alternativas mais econômicas para o transporte de pessoas e o escoamento de um razoável número de bens, quando esses bens são produzidos em grande quantidade e concentrados num determinado lugar.
FMA – Mas existe uma polêmica quanto às hidrovias. Elas são contra o meio ambiente?
Garrido – Pelo contrário, o transporte hidroviário não é só mais barato como também constitui uma tecnologia mais limpa do que outras modalidades de transporte.
Veja bem, não usa e não gasta pneus, consome menos combustível, além de tirar proveito de uma condição que é dada pela própria natureza, fazendo do leito de rios e lagos verdadeiras estradas, sem a necessidade de recapeamento, o que ocorre no caso do asfalto, e sem a necessidade de fazer a manutenção da via permanente, o que sucede na ferrovia.
É bom lembrar que asfalto, tanto quanto dormentes de madeira, implica agressão ao meio ambiente. E tem mais: nas hidrovias os riscos ambientais podem ser perfeitamente controlados.
FMA – Mas no caso das ferrovias já são usados dormentes de concreto…
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Garrido – Verdade. São incontáveis os exemplos de ferrovias com dormentes em concreto, inclusive nos sistemas metropolitanos. Mesmo assim, o cimento, a brita, a areia, as fôrmas, o aço e a água, que entram na composição desses dormentes não deixam de refletir, também alguma forma de agressão ambiental. Cimento implica extração de calcário e queima em altos fornos, a brita e a areia advêm de jazidas do solo, as fôrmas, se forem de madeira, implicam corte de árvores, e assim cada um desses elementos não deixou de dar sua parcela de contribuição à degradação ambiental.
FMA – Como está o Brasil em termos de exploração de hidrovias?
Garrido – Muito aquém do que já poderia ter feito. O território brasileiro tem um pouco mais de 40 mil km de vias navegáveis, dos quais cerca de 30 mil são presentemente navegáveis. Mas não chega a 5% o que vem sendo utilizado pela navegação interior.
É verdade que a maior parte desses leitos navegáveis (cerca de 28%) se encontra na Amazônia, onde há uma atividade econômica não muito significativa em decorrência da baixa densidade populacional. Mas, para um território como o nosso, seja na Amazônia, seja fora dessa região, as grandes hidrovias representam eixos de desenvolvimento. Aliás como foram adotados no contexto dos programas de desenvolvimento regionais, como ponto de partida para a redução dos custos com a movimentação da produção e de pessoas.
As oito administrações hidroviárias no Brasil: Administração Hidroviária do Sul, do rio Paraná, do rio Paraguai, do rio Araguaia, do rio São Francisco, Administração Hidroviária do Nordeste, do Norte e do Amazonas |
FMA – Há impactos indiretos na bacia e mudanças no regime hidrológico dos rios?
Garrido – No que se refere aos impactos na área de influência indireta, as hidrovias praticamente não afetam o território da bacia. Tampouco criam situações que possam modificar significativamente o regime hidrológico dos rios, a não ser a exigência do calado, natural ou artificial.
FMA – Vamos a um pouco de história. Que razões poderiam ter motivado essa falta de predomínio do transporte fluvial em nosso País?
Garrido – Essa é uma boa colocação. Veja que o café assumiu a liderança na pauta de exportações por volta de 1842, tomando o lugar do açúcar e do algodão, em decorrência da crise de preços que se seguiu à intensa concorrência que estes dois produtos sofreram no mercado internacional. De 1850 a 1930, o partido adotado para a infra-estrutura de transportes baseou-se no binômio “ferrovia-porto” para atender à economia primário-exportadora do Brasil. Este processo levou a que as maiores cidades brasileiras ficassem isoladas umas das outras, pois a ligação era ferroviária e com o litoral, para o porto por onde passaria o produto.
A formação dessas verdadeiras “ilhas” econômicas provocou a necessidade de rodovias para interligá-las. Afinal, as rodovias têm a vantagem de serem flexíveis em termos de projeto, chegando aonde se quiser, o que não ocorre necessariamente com as hidrovias, pois não se constroem rios e as obras de canais são onerosas. As ferrovias exigem raios de curvatura assaz longos e declividades suaves.
O Brasil adotou, então, sua política rodoviária, e o fato é que em 1960, à exceção de Belém e Manaus, todas as demais capitais já se encontravam ligadas por rodovias. E mesmo para Belém já estava a caminho a construção da Belém-Brasília, idealizada por Juscelino Kubitschek.
FMA – E por que o ciclo da rodovia se esgotou?
Garrido – O ciclo da rodovia, que se estendeu de 1930 a 1974, foi um modelo que se esgotou porque no início dos 70, quase todos os grandes eixos rodoviários já estavam construídos, dando respostas às necessidades nacionais que eram baseadas em indústrias leves e um produto agropecuário disperso.
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Entretanto, na segunda metade dos anos 70 , quando já avançava o II Plano Nacional de Desenvolvimento e seus projetos-vedete, quase tudo era voltado para a indústria pesada, ampliando a siderurgia, a indústria química, organizando e expandindo a petroquímica, a metalurgia. Além disso houve a consolidação de grandes e concentrados volumes de grãos, implicando a necessidade de transportes mais apropriados à carga pesada de grandes volumes, ou seja, ferrovias e hidrovias.