Pobreza pode levar Amazônia a repetir a Colômbia, onde o povo está se envolvendo com narcotráfico
4 de março de 2004Senadora Marina Silva defende políticas públicas que tragam um novo paradigma de desenvolvimento para a Amazônia
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O Brasil vai parar com essa história de ficar vendo o fantasma da internacionalização da Amazônia depois que fizer seu dever de casa com relação a essa região.
O alerta é da senadora Marina Silva (PT-AC), para quem o dever de casa do país em relação à Amazônia começa com a implantação, pelo governo federal, de políticas públicas de desenvolvimento que sejam baseadas em critérios de sustentabilidade. "No momento em que estivermos fazendo as coisas corretamente na Amazônia, vamos perder essa insegurança que nos persegue o tempo todo", ensina a senadora, que se transformou no exterior num dos maiores expoentes políticos brasileiros da luta pela preservação da Amazônia e pelo desenvolvimento sustentável do país. Em entrevista exclusiva à Folha do Meio, a senadora Marina Silva, de 39 anos, nascida e criada nos seringais acreanos, alerta que a ausência de políticas sociais pode gerar na Amazônia brasileira uma realidade semelhante à de outro país amazônico, a Colômbia, onde a miséria, segundo ela, está levando a população a se envolver, de forma generalizada, com a prática do narcotráfico. Falando desde seus tempos de infância nos seringais acreanos, onde, com cinco anos, já tentava salvar árvores como o cedro, estancando "o sangue" que escorria dos cortes do machado do pai, Marina Silva aposta que as ações de desenvolvimento sustentável que vêm sendo empreendidas por governos como os do Acre e Amapá podem ser o caminho para um novo paradigma econômico para a Amazônia. "Nós temos que parar de achar que ser desenvolvido é ser como São Paulo. Nós temos que buscar o nosso caminho, afirmar a nossa identidade. A gente não precisa ter tudo em linha reta, a gente é acostumado com as curvas dos rios", diz a senadora. Veja, a seguir, a íntegra da entrevista.
Folha do Meio – Como foi sua infância na Amazônia?
Marina Silva – Fui uma criança que cresceu até a adolescência junto com velhos, que moravam na casa de minha avó, para onde me mudei com cinco anos. Esses velhos tinham sabedorias da floresta, da mata, dos costumes e até mesmo das coisas do Nordeste.
FMA – Quando começou sua relação com o meio ambiente?
Marina – Eu morava no seringal Bagaço, na colocação Breu Velho, situada na altura do km 70 da BR-364 (que liga Rio Branco-AC a Porto Velho-RO). Meu tio-avô, que morou muito tempo com os índios, era meio xamã. Ele fazia, em miniatura, todos os instrumentos de trabalho que se usava no seringal para eu brincar quando. Eu tinha um pequeno defumador, uma pequena bacia, uma pequena estradinha perto de casa, onde eu brincava de cortar seringa.
FMA – Como foi a história de você tentar salvar as árvores?
Marina – Quando alguém adoecia, com um corte na pele, a minha avó passava penicilina. Primeiro estancava o sangue com uma planta e enchia o corte de pomada de penicilina. Meu pai botava roçado de subsistência e vez por outra tinha um cedro dentro do roçado, que meu pai era obrigado a derrubar. Quando o cedro é cortado, a seiva dele parece sangue. Meu pai anelava o cedro com machado para poder a seiva escorrer e não salpicar nele. Então, eu ia até o cedro e pegava pedaços de casa de cigarra e, com um pouco de tabatinga, tapava os cortes onde a seiva estava derramando. Aí eu dizia para a árvore: 'estou passando penicilina em você. Você vai ficar boa'.
FMA – Essa consciência ecológica do pessoal que mora na floresta vem de onde?
Marina – Até 16, 17 e 18 anos, eu não tinha essa noção que isso era ecologia. Eu tinha sentimento com a mata porque eu vivia dela. Quando você convive com algo que te provém todas as coisas, é claro que você cria uma relação de amor e afeto. Você tem a seringueira, da qual você sobrevive extraindo borracha. Você vai para a mata e de repente você volta com uma caça. Você tem na mata o teu celeiro, o teu nutriente.
FMA – É daí, então, que nasce o sentimento de proteção da floresta?
Marina – A gente adquire uma relação muito viva com a mata, esse ser que te nutre, do qual você depende para sobreviver.
“Saí do convento para servir a Deus e lutar ao lado do povo”
FMA – Todo o povo da floresta tem esse sentimento?
Marina – Não sei se todo o povo, mas uma grande parte tem. Se você for na periferia das cidades, os mais antigos têm um certo saudosismo da mata e muitos deles vieram para a cidade na ilusão de que iria dar uma vida melhor para os filhos. Os filhos iriam poder estudar, os filhos iriam deixar de ser analfabetos. Como o trabalho na mata era um trabalho muito árduo, as pessoas sonhavam em dar melhores dias para os seus filhos. Imagine o que é você acordar todos os dias quatro horas da manhã, fazer uma farofa e andar sete quilômetros cortando seringa, depois mais sete quilômetros colhendo o leite para fazer borracha.
FMA – Quando nasceu a força para lutar em favor da floresta?
Marina – Uma coisa era o meu sentimento individual, pessoal com a floresta. Mas isto não significava uma consciência política coletiva. Eu só fui adquirir uma consciência política quando conheci o Chico Mendes.
FMA – Como se deu o seu encontro com Chico Mendes?
Marina – Quando eu tinha 15 anos, houve um empate (ação dos seringueiros para evitar a derrubada da mata) lá perto de casa. O meu pai, embora não fosse na nossa área, foi para ajudar. Eu senti muito medo porque sabia que os fazendeiros estavam lá derrubando, tinha peões e poderia haver algum tipo de confronto. Aí já fui tendo noção de que estava havendo um problema grave. Saí do seringal e fui para a cidade, onde trabalhei como doméstica. Depois, entrei no convento. Conheci o Chico Mendes quando fiz o curso da Comissão Pastoral da Terra, por volta de 1979.
FMA – Esse curso foi a arrancada para iniciar a luta?
Marina – Foi a partir daí que fui tendo consciência da luta pela preservação da floresta. Eu lembro que foi nesse curso que eu tive a noção do que era Estado. Quando entendi o conceito de Estado enquanto estrutura institucional parecia que tinham tirado o véu da minha cara. Eu fiquei muito amiga do Chico e fui me interando cada vez mais da luta dele.
FMA – E o que aconteceu depois?
Marina – Foi a partir desse curso, com a participação do Chico Mendes, que comecei a me desvencilhar daquela forma que eu tinha de sofrer, do recolhimento. Eu disse: 'pôxa, bom mesmo é estar servindo a Deus lutando com o povo'. Depois de um ano saí do convento, passei a estudar em colégio público e fiz um curso de teatro. E haja política.
FMA – Daí começa a sua formação política?
Marina – Daí nasceu o meu envolvimento com o sindicalismo. O Chico Mendes, nesse período, ainda não tinha uma articulação. Depois é que ele foi se articulando com o Gabeira (Fernando Gabeira, deputado federal), com a Mary Alegretti (atual Secretária da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente). Fui introduzindo essas coisas muito voltadas para a defesa do meio ambiente, para a ecologia. Eu comecei a ir muito a Xapuri, me envolvendo com a luta do Chico. Em 1984, fui eleita vice do Chico na coordenação estadual da CUT. A política não era só a questão da terra ou da reforma agrária. Passava a ser a questão da reserva extrativista, da luta para evitar que a mata fosse derrubada.
FMA – Quer dizer que a prática de vocês se juntou à teoria que vinha de fora do Acre?
Marina – Nós tínhamos o sentimento e a prática da defesa do meio ambiente, pois defender reserva extrativista era uma ação de sustentabilidade. Teoricamente, isso não estava posto para nós. É muito fácil quando você tem a prática, o sentimento e a sensibilidade e você se depara com o instrumental teórico. E aí, essas coisas começaram a ser difundidas. Isso foi sendo discutido, foi sendo democratizado, partilhado, vivenciado.
FMA – Como foi a influência dessa prática em sua vida?
Marina – O meu trabalho era local, muito voltado para Xapuri. A exceção foi a luta nos seringais Catuaba e Benfica, onde eu tive uma atuação muito forte junto com a Comissão Pastoral da Terra. Ali trabalhei com a Selma, que está hoje assessorando o senador Tião Viana. Os fazendeiros queriam expulsar um monte de gente que estava nos seringais, mas, na verdade, quem estava lá eram apenas duas meninas, duas jovens, que lutavam pela permanência dos seringueiros na área. Hoje, eu tenho toda a obrigação de ser respeitosa com os jovens, pois sempre fui uma jovem bastante respeitada por pessoas que não tinham obrigação de acreditar em mim.
FMA – Até que ponto a participação dos jovens é importante para a defesa do meio ambiente?
Marina – Essa participação é essencial. Principalmente hoje, quando há jovens sensíveis à causa e adultos que operam na causa com um grau de formulação e amadurecimento bem maior do que o que nós tínhamos. Hoje, isso é bem maior e a sensibilidade do jovem é grande para as questões de interesse público maior, como meio ambiente, direitos humanos e outros ideais de liberdade.
FMA – Você acha que a consciência dos jovens é suficiente para enfrentar as grandes questões que se colocam na área ambiental?
Marina – Eu diria que ainda é de minoria, muito embora a grande visibilidade que os meios de comunicação estão dando para o tema permita vislumbrar o quanto o terreno é fértil, porque a informação bate e o retorno é imediato. Veja o caso da mudança do Código Florestal: num final de semana, chegaram 20 mil e-mails no Senado, de pessoas de todo o país protestando contra o aumento da derrubada da reserva legal.
FMA – O que pode fortalecer a consciência nacional para a questão ambiental?
Marina – Acho que a mensagem, enquanto o poder da palavra, alcança uma determinada faixa de consciência, mas ela tem o seu limite. Chega o momento em que você precisa das ações práticas. Além de você criar uma consciência ambiental, você precisa ter uma ação que reflita essa consciência. E no Brasil, lamentavelmente, tivemos um crescimento em termos da consciência da defesa do meio ambiente muito associado à questão da defesa da Amazônia – neste sentido, o Chico Mendes foi vitorioso – mas faltou uma prática, que pudesse se traduzir em políticas públicas de desenvolvimento que considerassem a questão da sustentabilidade.
FMA – Que regiões da Amazônia estão praticando essas políticas públicas?
Marina – Hoje, nós temos dois pólos que podem se constituir neste grande exemplo, que são os do Acre e do Amapá. O Acre com a ação do governador Jorge Viana e o Amapá, com um governo já em segundo mandato, que estão tentando firmar-se pelo caminho do desenvolvimento sustentável, embora politicamente estejam enfrentando muitas resistências.
FMA – A prática da sustentabilidade em apenas dois estados da Amazônia, não é muito pouco?
Marina – Ainda é pouca, mas o que quero dizer é que, lamentavelmente, na maior parte das regiões do país, o que prevalece é o velho paradigma da visão desenvolvimentista sem levar em conta o meio ambiente. O próprio governo, quando coloca o Avança Brasil como um programa de desenvolvimento não cuida das repercussões em termos ambientais, cai no velho paradigma da infra-estrutura apenas pela infra-estrutura. Só agora é que eles estão correndo atrás do prejuízo. O Planejamento faz as ações e o Ministério do Meio Ambiente sai correndo atrás dizendo: “olha, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo…”.
FMA – A experiência nestes dois estados é suficiente para se chegar a este novo paradigma?
Marina – Mesmo sendo apenas dois estados, já é algo concreto que está acontecendo. Aqui temos um modelo que se for por esse caminho dá certo. Pode até ser um pouquinho mais trabalhoso, precisa de mais investimento e mais cuidado, mas esse é o caminho certo. Espero que a gente possa ser vitorioso porque hoje sinto que mesmo os outros estados da região já são obrigados a incorporar esses valores.