Negritude

Como superar o racismo na escola

24 de março de 2004

Racismo nos livros didáticos e as dicas para professores tratarem do problema na sala de aula

 



Um tema pouco conhecido e pouco divulgado – o racismo praticado nas escolas – é agora objeto de um livro que acaba de ser editado pelo Ministério da Educação, reunindo 14 artigos de educadores que vivenciaram experiências sobre a discriminação, que atinge sobretudo os alunos de origem negra. Mais do que denunciar as diversas formas de expressão do racismo, os professores fazem sugestões sobre como combatê-lo, propondo ações que envolvem tanto os educadores em sala de aula como os alunos. Os especialistas em educação autores dos trabalhos foram escolhidos pelo Grupo Interministerial para Valorização da População Negra, criado por decreto do governo federal em 1995, presidido pelo Secretário Nacional de Direitos Humanos, à época o então ministro da Justiça, José Gregori. A coordenação dos trabalhos para a realização do projeto do livro coube a Carlos Alberto de Xavier, chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, e a organização do livro a Kabengele Munanga, professor da Universidade de São Paulo.


Os artigos tratam de questões comuns no cotidiano das escolas públicas brasileiras, como as imagens que aparecem nos livros didáticos, os estereótipos, os problemas religiosos, os conflitos de linguagem e as simplificações de situações correntes, as quais, quase sempre, escondem preconceitos.


A esse respeito, lembra o professor Kabengele Munanga, na apresentação do livro, que “os livros e outros materiais didáticos, visuais e audiovisuais, carregam o mesmo conteúdo viciado, depreciativo e preconceituoso em relação aos povos e culturas não oriundos do mundo ocidental”.


Segundo ele, “os mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das relações sociais de alunos entre si e de alunos com professores no espaço escolar”. Munanga acha que muitos professores, por despreparo ou mesmo por preconceito, não sabem aproveitar as situações em que a discriminação se manifesta – e elas não são raras – para discutir a questão abertamente e conscientizar os alunos sobre a necessidade de não discriminar os colegas de outras raças. 


Prejuízo do aprendizado


O professor da USP assegura que o preconceito racial embutido nos livros didáticos, somado ao preconceito do próprio professor, ou à sua incapacidade de lidar em sala de aula com a discriminação, desestimulam o aluno negro e prejudicam o seu aprendizado. “O que explica – diz – o coeficiente de repetência e evasão escolares altamente elevado do aluno negro, comparativamente ao aluno branco”, embora não se possa minimizar o impacto da situação sócio-econômica dos pais dos alunos negros.


Segundo Munanga, “pelo menos os educadores conscientes sabem que a história da população negra, quando é contada no livro didático, é apresentada apenas do ponto de vista do “outro” e seguindo uma ótica desumana e humilhante”. Esse “outro”, conforme o professor a USP, é o sistema educativo vigente, baseado no modelo europo-cêntrico, ou seja, que tende a considerar o negro ou o não-ocidental como sub-raça, sem memória e sem história.


Munanga diz que o resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra, mas aos alunos de outras etnias, principalmente branca, “pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas”. 


Além disso – explica – essa memória não pertence apenas aos negros, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolveram, contribuíram cada um a seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional”.


Sociedade racista


O professor Kabengele Munanga admite que “não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas”, mas sustenta que é possível, através da educação, “questionar e destruir os mitos de superioridade e inferioridade existentes entre grupos humanos, os quais foram introduzidos neles pela cultura racista na qual foram socializados”.


Para tanto, acha que “a primeira atitude corajosa que devemos tomar, é a confissão de que nossa sociedade é racista”, embora não na intensidade de outras, como a minoria sul-africana e os Estados Unidos. 


Criticando a afirmação, muito freqüente até em pessoas “supostamente sensatas”, de que as atitudes preconceituosas só existem na cabeça das pessoas ignorantes, Munanga diz que o preconceito é produto das culturas humanas, que em algumas sociedades transformou-se em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros”.


Sendo assim, relacionar o preconceito com a ignorância das pessoas, é uma tentativa de responsabilizar mais os indivíduos do que a sociedade. Seria o absurdo de admitir que o racismo seria um fenômeno raro nos países onde a educação é mais desenvolvida.


Desafio da educação


O desafio da educação, para enfrentar o racismo nas salas de aula, é inventar estratégias educativas e pedagógicas que conduzam a uma aceitação consciente, pelos alunos, de que a sociedade brasileira é plural, étnica e culturalmente, desde os tempos do Brasil colônia.


Portanto, para que haja efetivamente democracia racial, será necessário respeitar a diversidade do povo, ou seja, as raízes étnicas e raciais que deram ao Brasil sua feição multirracial composta de índios, negros, orientais, brancos e mestiços.


Não basta – diz o professor Munanga – a lógica da razão científica que ensina que, biologicamente, não existem raças superiores e inferiores, como não basta a moral cristã que diz que perante Deus somos todos iguais, “para que as cabeças de nossos alunos possam automaticamente deixar de ser preconceituosas”.


É preciso descobrir técnicas e linguagens que alcancem o imaginário dos alunos e destruam o preconceito, que foi introduzido culturalmente ao longo dos séculos, e que se instalou e se estratificou no inconsciente coletivo.


Como não existem fórmulas e receitas anti-racistas, cabe aos professores e educadores inventá-las.