Piracema e defeso

Defeso é fundamental para sobrevivência das espécies

4 de março de 2004

A viagem de muitos quilômetros deixa os peixes extenuados e aí os pescadores aproveitam-se dessa fragilidade para capturá-los facilmente

 








Silvestre Gorgulho


Rômulo Mello: ?Nós do Ibama temos que agir para evitar as armadilhas dos homens, com redes, tarrafas, puçás e tantos outros artifícios que interrompem esse processo de procriação, comprometendo a vida sustentável nos nossos rios

No verão, quando as chuvas se tornam mais freqüentes e intensas, com o aquecimento e o aumento das águas dos rios, o instinto natural leva os peixes a iniciar a grande aventura de migração para reprodução. Isso acontece em grande parte do Brasil entre os meses de novembro e fevereiro. “Pode ter uma pequena variação nesse período, dependendo de região para região, em razão das características climáticas e ambientais” – explica Rômulo Mello, diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama – e conclui: “E é assim que se configura a piracema”.


A palavra piracema vem do Tupi-guarani: pira = peixe, cema = agitação. A explicação é fácil. Esse é o período em que os peixes nadam contra a correnteza buscando nas cabeceiras dos rios ambientes propícios para a reprodução, como águas mais limpas e mais tranqüilas, onde liberam e fecundam seus óvulos.


“Nessa viagem de risco, os peixes se agitam ruidosamente na linha da água, passando por momentos de grandes perigos. Além dos obstáculos naturais, precisam sobrepor as ameaças criadas pelo homem como a poluição, barragens e a pesca predatória. Ou seja, nós do Ibama temos que agir para evitar as armadilhas dos homens, com redes, tarrafas, puçás e tantos outros artifícios que interrompem esse processo de procriação, comprometendo a vida sustentável nos nossos rios”, acrescenta Rômulo Mello.


Instinto animal
O instinto animal luta pela sobrevivência e faz um esforço fantástico para perpetuar a espécie. Esse é um instinto muito forte que começa antes, muito antes da reprodução propriamente dita acontecer. Assim, os animais interpretam os sinais ambientais de que a estação favorável está para chegar. São justamente os dias mais quentes, as chuvas mais freqüentes, a água mais oxigenada. Tudo isso é um sinal que o instinto deles sabe captar. E o que acontece? Os machos e as fêmeas dispersos em pontos diferentes dos rios como os lagos, baías e áreas de alimentação deixam esses pontos de sossego e vão para as calhas dos rios. Deslocam-se milhares de quilômetros formando cardumes que se dirigem às áreas de desova, onde estarão próximos, maduros, prontos para o acasalamento. A fecundação dos peixes migradores é externa, e a elevada concentração de machos e fêmeas aumenta as chances de fertilização no ambiente aquático.


E a lei da natureza continua: os milhões de ovos e larvas, como nuvens suspensas na coluna d’água, serão vítimas de predadores, da escassez de alimentos e de muitas outras condições adversas. Na verdade poucos chegarão à fase adulta. A dispersão dos ovos, embriões e larvas para as margens dos rios, feita pelas correntes, concorre para que encontrem maior quantidade de alimento e proteção, reduzindo essa perda.


E por que existem restrições à pesca?
O instinto de perpetuar a espécie fala mais alto, por isso durante a piracema, o apelo para reprodução é tão intenso que os peixes se descuidam de suas estratégias de proteção e ficam muito vulneráveis. Tornam-se presa fácil. “A viagem de centenas de quilômetros os deixa extenuados. Aí os pescadores aproveitam-se dessa fragilidade para capturá-los facilmente. Pior: em grandes quantidades”, explica Rômulo Mello. “Agindo desse modo, interferem em todo o processo de perpetuação da espécie e renovação dos estoques, que será sentido na diminuição do tamanho dos peixes e na quantidade disponível para a pesca nos anos subseqüentes. Por isso é tão importante a proteção dos peixes na época da piracema”, acrescenta o diretor do Ibama e alerta: “Até a viagem de barco – só a passeio pelo rio – já é prejudicial. Os motores das embarcações não só dispersam cardumes, como provocam movimento das águas que acabam por influenciar no número de ovos fecundados, evidente que prejudicando terrivelmente a reprodução”.


 


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