Orlando Villas-Boas

Sertanista, doente, termina livro de memórias

4 de março de 2004

Autobiografia de Orlando Villas-Boas é mais um gesto de resistência

 


Orlando-Villas Boas sente-se em casa toda vez que chega ao 
Parque Nacional do Xingu

Último dos pioneiros da saga conhecida como expedição Roncador/Xingu, que nos anos quarenta foi responsável pelo contato com os índios do Brasil Central e indicado duas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, o sertanista Orlando Villas-Boas, se recupera de um acidente cardiovascular como um velho guerreiro das matas e dos rios.

Aos 86 anos, lúcido, Orlando está escrevendo a sua biografia. Na obra, conta como tudo começou. Da luta renhida para criar o Parque Nacional Indígena do Xingu, nos anos sessenta, aos primeiros contatos de tribos com os "civilizados" homens brancos. Pois e' este homem, com a sua experiência e sabedoria, que emocionou o presidente da Republica ao dizer que o “ Brasil tem muito a aprender com os índios, principalmente pela solidariedade, o respeito à natureza, às crianças e aos velhos”.

No final de julho, o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, telefonou para o sertanista Orlando Villas-Boas no Hospital Albert Einstein, na capital paulista. Não satisfeito, fez com que o seu ministro da Justica, José Gregori, lhe representasse numa visita pessoal no apartamento em que o indigenista estava se recuperando, depois de ter sido acometido de complicações cardiovasculares. 

O que faz com que a mais importante autoridade política do país se dirija a um simples mortal de 86 anos? Sabedoria e respeito. O presidente sabe que Villas-Boas é responsável por uma obra antropológica e social que revolucionou a forma de tratar as civilizações indígenas do Brasil. Na conversa telefônica que mantiveram, Fernando Henrique Cadoso disse que "Orlando tinha ainda muito a fazer pelo país e que a sua experiência é fundamental para que os índios brasileiros continuem sendo tratados com o máximo de respeito". Como de praxe, desejou plena recuperação ao sertanista, e deixou aberta a possibilidade de visitá-lo na residência do Alto da Lapa, em São Paulo. 

"O presidente foi elegante, tranquilo e mostrou que estava preocupado com a minha saúde. Fiquei feliz, porque mostra que os desencontros do passado foram superados", afirmou o sertanista antes de caminhar cerca de duzentos passos no corredor principal da ala de tratamento semi-intensivo do hospital em que estava internado.

Constrangimentos 

Nem sempre as relações com o Palácio do Planalto foram boas. Em fevereiro último, o ex-presidente da Fundação Nacional do Indio, Frederico Mares de Souza, demitiu o sertanista por fax. A demissão causou constrangimento e desconforto internacional para o Presidente da República. Mesmo telefonando para se desculpar, não conseguiu diminuir o impacto negativo do gesto do seu subordinado, que afrontou o único pioneiro do Parque Nacional Indigenista do Xingu e da antológica expedição Roncador-Xingu. Na verdade, os irmãos Villas-Boas (Leonardo, Claúdio e Orlando) foram os responsaveis pela criação de mais de 65 cidades e pelo contato com mais de 100 tribos no Brasil Central.

Amparado pelos filhos Noel e Vilhinha e acompanhado de perto pela mulher, dona Marina, Villas Boas não aparenta ser o mais contundente crítico da política indigenista do atual governo. Ele tem reclamado de que as tribos que habitam as cidades estão totalmente marginalizadas e vivendo, praticamente, no último grau de miséria.

A fisioterapeuta do hospital lhe chama atenção com um misto de carinho e puxão de orelha 

-"Seu Orlando, o senhor não pode querer fazer tudo de uma vez. Vá devagar, há tempo para a sua recuperação", comentou no longo corredor da ala em que o sertanista se recuperava. Teimoso, Orlando Villas-Boas caminhou duzentos metros sem sapatos, apenas usando meias. "Quero sentir o chão, nao vejo a hora de ir para casa. Tenho muito que trabalhar".

Prêmio Nobel

Duas vezes indicado para o Prêmio Nobel da Paz na década de setenta, uma delas por meio da Câmara dos Lordes, da Inglaterra, Orlando Villas-Boas tem sido um incansável defensor do direito à privacidade dos índios. 

  • As reservas indígenas não podem ser depósitos de gente, mas lugares onde se cultivem as tradições milenares dos índios. 

  • O homem branco não deve querer impor a sua lógica às tribos. 

  • Turismo tem que ser fora das áreas demarcadas e as Ongs não podem querer mandar na vida da aldeia. 

  • A sabedoria medicinal dos pajés tem que ser preservada para ficar longe dos piratas da biodiversidade.

Biografia

Pois são estas inquietudes, seguida de uma lucidez rara, que estarão nas páginas da biografia de Orlando Villas-Boas. O título do livro? Bem, inicialmente está escolhido: De Mamando a Caducando. 

O lançamento do livro está previsto para o próximo ano, mas se depender do próprio autor a obra deverá ficar pronta ainda este ano. No mínimo, as linhas gerais da saga dos Villas-Boas, estarão concluidas. "Ja iniciei a viagem, e comecei pelo tronco da família que é de Portugal, e só penso em escrever", adiantou o sertanista.

Num dos trechos, ele conta como se incorporou à expedição Roncador-Xingu. "Eu era um jovem vivendo na capital e trabalhando numa multinacional inglesa de petróleo. Não aguentava mais o serviço, queria desbravar os sertões, ir para o mato, enfim, aventurar. O nosso pai, que era advogado, sempre nos criou com total liberdade e desde cedo nos ensinou a amar os índios. Tudo foi muito intuitivo, como tem sido até hoje ", observou.

As lutas e espinhos

Mas não se espere da biografia de Orlando uma obra sem espinhos. Estão ali as lutas contra os fazendeiros, os políticos sem escrúpulos, os garimpeiros, os aventureiros internacionais, pastores e toda a fauna de oportunistas, que, ao longo de mais de 500 anos tem matado, roubado e perseguido os índios.

Orlando relembra todos os primeiros contatos que fez com as tribos do Brasil Central. Os encontros com os Calapalos, Kuikuros, Kamayuras, Xavantes, Ialapitis, dentres outras civilizações indígenas formam um caleidoscópio da fina antropologia pragmática que os Villas-Boas souberam trilhar nos mais de cinquenta anos que viverem em comunhão com os índios. "O Marechal Rondon foi o nosso mestre, e o que mais nos emocionava era saber que ele, no fim da vida, reconheceu que o índio não devia ser incorporado a vida normal dos brancos, mas mantidos em seu habitat natural para preservar a sua cultura. Esse foi um dos principais motivos para a nossa luta na criação do Parque do Xingu", destacou o sertanista.

287 Malárias

Com mais de 287 malárias, Orlando Villas-Boas já se julga imune à "maleta" como dizem os caboclos. A tenacidade e coragem com que os Villas-Boas enfrentaram as dificuldades do sertão valem um capítulo especial na biografia. Nele, Orlando ensina que a paciência, a observação e o respeito à natureza são elementos que salvam vidas, nos lugares onde os médicos são cada vez mais difíceis. "Não fosse a Escola Paulista de Medicina, o Noel Nutels, a Forca Aérea Brasileira e a nossa teimosia, muitas tribos teriam sido aniquiladas", comentou.

O tremor e as altas e baixas temperaturas no organismo provocadas pela malária não foram suficientes para arrancar da cabeça dos Villas Boas o ideal de defender os índios a qualquer custo. "A malária era o de menos, o que nos deixava muito preocupado eram as doenças que os índios pegavam de nós, como a gripe, o sarampo, a varíola, dentre outros males do homem branco".

Pois é este homem, que hoje, aos 86 anos, e com a saúde inspirando cuidados, que não descansa na luta pelos direitos dos índios. O cacique Ialapiti Aritana, um dos mais respeitados do Xingu, definiu em uma frase o que representa Orlando Villas-Boas para os índios da região: “Orlando é pai, irmão e um grande espírito da floresta e dos rios".