Alerta: os lençóis freáticos estão sendo contaminados

29 de abril de 2004

Conheça os principais focos de contaminação das águas subterrâneas

Além das atividades do homem, poluindo o meio ambiente – principalmente as terras e as águas – causas naturais afetam as águas subterrâneas, como a presença de teores de elementos químicos nocivos, oriundos de rochas armazenadoras ou dos aqüíferos.


O professor Aldo da Cunha Rebouças, do Centro de Pesquisas em Águas Subterrâneas, CEPAS, da USP, descobriu que e elevado flúor contido nas águas do Nordeste do Paraná e na região paulista de Águas da Prata, produz uma doença chamada fluorose, que provoca a destruição dos dentes em crianças e adultos, ao invés de protegê-los.


Também em São Paulo, em Ibirá, a presença de vanádio foi identificada pelo professor Nelson Elert nas águas da região. Trata-se de um mineral cuja absorção causa má formação congênita em crianças.


A ação do homem


Os técnicos chamam de “causas antrópicas”, quando as atividades humanas é que provocam a contaminação das águas subterrâneas. São diversas as formas de contaminação, envolvendo desde organismos patogênicos, até elementos químicos como os metais pesados – caso do mercúrio – e moléculas orgânicas e inorgânicas.


Todavia, conforme assinala o geólogo Luiz Amore, consultor técnico da OEA e da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, a possibilidade dos contaminantes atingirem os poços perfurados vai depender das características dos aqüíferos, particularmente as estruturas geológicas, a permeabilidade do solo, a transmissividade etc.


Amore sustenta que várias fontes poluidoras já foram estudadas, e alguns casos são clássicos, “que longe de serem fenômenos isolados podem estar ocorrendo em diversas regiões do país e com intensidades diversas, infelizmente ainda pouco conhecidas”.



Os maiores focos de poluição dos lençóis freáticos:


1 – Lixos e cemitérios


As águas subterrâneas localizadas nas proximidades dos grandes lixões registram a presença de bactérias do grupo coliformes totais, fecais e estreptococos. Segundo o professor Alberto Pacheco, do CEPAS, são componentes orgânicos oriundos do chorume, que são substâncias sulfloradas, nitrogenadas e cloradas, com elevado teor de metais pesados, que fluem do lixo, se infiltram na terra e chegam aos aqüíferos.


As águas subterrâneas situadas nas vizinhanças dos cemitérios são ainda mais atacadas. O professor Alberto Pacheco cita o exemplo dos cemitérios municipais de São Paulo. Águas coletadas nas suas proximidades revelaram a presença de índices elevados de coliformes fecais, estreptococos fecais, bactérias de diversas categorias, Salmonella, elevados teores de nitratos e metais como alumínio, cromo, cádmio, manganês, bário e chumbo.


Os cemitérios, que recebem continuamente milhares de corpos que se decompõem com o tempo, são autênticos fornecedores de contaminantes de largo espectro das águas subterrâneas das proximidades. Águas que, via de regra, são consumidas pelas populações da periferia.


2 – Postos e fossas


Estudo de autoria do professor Aldo da Cunha Rebouças, t ambém da equipe do CEPAS, mostra a contaminação oriunda do vazamento de tanques de armazenamento subterrâneo de gasolina em poços de abastecimento de água em residências vizinhas. A água recolhida desses poços revelou elevados teores de benzeno e demais compostos orgânicos presentes na gasolina, como tolueno, xileno, etilbenzeno, C benzeno e naftaleno.


O professor adverte para o fato de que a combustão da gasolina é auto detonante a 400 ppm (partes por milhão). Se esse combustível se infiltrar em redes de esgoto e túneis de obras de engenharia, haverá risco real de explosões de grandes proporções.


A presença das fossas na condição de contaminantes dos aqüíferos foi estudada no Vale do Paraíba do Sul, em São Paulo, pelo professor Uriel Duarte, da equipe do CEPAS, e em São Luís, no Maranhão, pelo professor Waldir Duarte da Costa, da Universidade Federal de Pernambuco.


Eles concluíram que a construção e operação de poços de abastecimento d’água, próximos a fossas em zonas urbanas e ruraiss, pode levar à contaminação da água por patogênicos gerais e substâncias orgânicas diversas, transmitindo doenças a quem utiliza e consome a água.


Preocupada com o problema, a Organização Panamericana de Saúde – OPAS – recomenda que essas fossas devem ser construídas a uma distância mínima de 20 metros, ou ainda mais, dependendo das condições intrínsecas do aqüífero, em especial a permeabilidade do terreno.


Ocorre que essa recomendação dificilmente é levada em conta, especialmente na periferia das grandes cidades, onde o favelamento reduz o espaço útil dos quintais dos casebres, levando seus habitantes a construírem a fossa e cavarem o poço praticamente lado a lado.


3 – Agrotóxicos e fertilizantes


Resíduos de agrotóxicos foram encontrados em animais domésticos e seres humanos que utilizaram águas subterrâneas contaminadas por agrotóxicos em Campinas, São Paulo.


O professor Ricardo Hirata, da equipe do CEPAS, autor da descoberta, diz que a contaminação resultou tanto de substâncias aplicadas incorretamente na plantação, como oriunda de embalagens enterradas com resíduos de defensivos agrícolas. Em ambos os casos houve a infiltração e o acesso dos agrotóxicos aos aqüíferos.


O uso indevido de fertilizantes também afeta as águas subterrâneas. Segundo o professor Aldo Rebouças, substâncias fosforadas e nitrogenadas, que provocam a doença azul em crianças, podem acessar os sistemas aqüíferos, com a desvantagem de que são de difícil remoção.


Na região de Novo Horizonte, em São Paulo, centro produtor de cana de açúcar, a aplicação de vinhaça resultante da destilação do álcool, como fertilizante, provocou a elevação do pH (índice de acidez)e conseqüente remoção do alumínio e ferro do solo, que foram se misturar às águas subterrâneas.


Os aqüíferos também são contaminados pela disposição irregular de efluentes de curtumes no solo, fato observado pelo professor Nelson Elert nos centros produtores de calçados de Franca e Fernandópolis, em São Paulo. Segundo ele, os resíduos de curtume dispostos no solo provocam a entrada de Cromo 6 e de organoclorados, afetando a qualidade dos lençóis subterrâneos.


4 – Rejeitos e aterros industriais


As águas subterrâneas de Cubatão, em São Paulo, considerada a cidade mais poluída do Brasil, não podiam escapar à ação dos contaminantes. A técnica Dorothy Casarini, da Cetesb, a agência ambiental do governo paulista, diz que aterros não controlados por indústrias químicas da região resultaram em mortes e contaminação carcinogênica (através do câncer) inclusive no leite materno.


No caso de Cubatão, o agente contaminante foi o Bifenilas Policloradas (PCB), cujos rejeitos, depositados no solo sem qualquer tratamento, se infiltraram e danificaram as águas subterrâneas.


Em Minas Gerais, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e em Campinas, São Paulo, a proximidade de aterros industriais clandestinos está contaminando as águas por resíduos industriais ou pela presença de atividades mineradoras.


Nos dois casos, o professor Paulo Scudino, da CETEC-MG, e a especialista Dorothy Casarini, da CETESB-SP, identificaram nas águas subterrâneas das duas regiões a presença de diversos metais pesados e hidrocarbonetos que, uma vez ingressando no corpo humano, lá ficam depositados para o resto da vida.


5 – Rebaixamento do lençol freático


Segundo o geólogo Luiz Amore, a exploração excessiva dos aqüíferos pode ocasionar não só o desperdício de água, mas, o que é pior, a contaminação dos postos de abastecimento por migração de águas situadas nas suas proximidades.


Há, também, casos em que a devastação da cobertura vegetal em áreas de recarga dos aqüíferos resulta no rebaixamento do lençol das águas subterrâneas e conseqüente redução das disponibilidades hídricas da bacia.


O caso mais expressivo é o relatado pelo técnico pernambucano Waldir Duarte da Costa: o bombeamento excessivo de águas subterrâneas para o abastecimento público do elegante bairro de Boa Viagem, em Recife, resultou na infiltração de água do mar no sistema de água potável.


Em Cubatão houve o mesmo fenômeno, resultante da utilização excessiva de águas subterrâneas para fins industriais. O lençol foi baixando até ser invadido por água salgada.


Efeitos danosos da superexploração também foram registrados na barragem do Descoberto, em Águas Lindas, estado de Goiás. Segundo o professor Elói Campos, da Universidade de Brasília, alguns poços na área de recarga reduziram significativamente a disponibilidade hídrica, a ponto de secar poços à jusante da barragem.



Cidade de três milhões de habitantes tem sede
Uso predatório, corrupção e má gestão pública deixam o Recife sem água


A piada todos conhecem: Os rios Capibaribe e Beberibe, que banham Recife, se unem para formar o oceano Atlântico. Mas o riso deu lugar à tristeza. A capital pernambucana atravessa uma crise sem precedentes de falta crônica de água. Conheça os motivos.


Milano Lopes


Uma cidade de três milhões de habitantes morre de sede.


Navios partem dos portos de Salvador e Fortaleza com enormes conteineres cheios de água. Seu destino: o porto do Recife, onde uma população de três milhões de pessoas é submetida a um severo racionamento. Algumas zonas da cidade recebem 24 horas de água a cada dez dias, ou seja, três dias por mês.


Para um país como o Brasil, cujas reservas de águas subterrâneas somam 112 bilhões de m3, o que ocorre na Grande Recife pode parecer um absurdo, mas não é. Trata-se, apenas, do resultado de políticas predatórias de utilização dos recursos aqüíferos (águas subterrâneas) e da gestão pública irresponsável e corrupta.


Na capital pernambucana, a única obra de captação iniciada nos últimos quinze anos está paralisada há vários anos, aguardando a apuração de denúncias de superfaturamento.


Mas a crise não se limita ao Nordeste. Em São Paulo, 60,5% dos núcleos urbanos são servidos por fontes subterrâneas, envolvendo uma população de 5,5 milhões de pessoas. O crescimento demográfico e a expansão econômica tornam essa dependência cada vez maior.


E mais grave: a maioria dos 200 mil poços artesianos existentes em todo o país, especialmente na periferia dos grandes centros urbanos, sofre o efeito de múltiplas fontes de poluição, que vão desde a presença na água de elevados teores de elementos químicos nocivos, até os lixões, os cemitérios, os postos de gasolina, o uso indevido de agrotóxicos, a disposição de rejeitos e a proximidade de aterros industriais clandestinos.


A crise agrava-se mais ainda em razão da superutilização das fontes subterrâneas de água, alimentando o desperdício e contribuindo para a exaustão das reservas.


Para o governo, responsável pela elaboração e execução da política de recursos hídricos, e para a sociedade – que consome a água – fica o desafio de administrar adequadamente o uso da água, com a consciência de tratar-se de um recurso finito.



A enorme sede de Recife


Moradores de 41 bairros do Recife, incluindo áreas nobres, como Boa Viagem, onde moram 200 mil pessoas, estão recebendo água apenas três dias por mês.


Navios trazem conteineres com água de Salvador e Fortaleza para o Recife. E trens carregam água de poços da Petrobras, perfurados em Cabo de Santo Agostinho, 33 quilômetros ao sul, para a capital pernambucana. Mas essa água tem uma destinação prioritária: atender aos hospitais, escolas e órgãos públicos.


A barragem de Tapacurá, responsável pela metade do fornecimento de água ao Recife tem menos de 3% de sua capacidade de armazenamento, que é de 94 milhões de metros cúbicos.


Ironia: Recife é, entre as capitais nordestinas, a que mais dispõe de água doce. Basta dizer que é cortada várias vezes pelo rio Capiberibe.


Mesmo assim, moradores dos subúrbios ficam até 15 horas nas filas para conseguir água captada de riachos nem sempre limpos. Mas é melhor água poluída do que nada.


O professor Aldo Rebouças, da USP, lista entre as causas da crise de água que afeta a cidade do Recife uma estiagem acentuada, que reduziu à metade a água das 13 barragens que atendem à cidade e milhares de poços privados construídos sem qualidade técnica , que resultaram em desperdício e na conseqüente falta do produto.


A vazão de quase mil litros por segundo dos cerca de dois mil poços já perfurados, se bem administrada, daria para atender cerca da metade dos três milhões de habitantes da Grande Recife. Mas não foi, e o resultado é o racionamento.


A superexploração – Foram os chineses que começaram, há sete mil anos, a cavar poços para alcançar as águas subterrâneas. Dados do IBGE indicam que, no Brasil, pelo menos 60% da população não servida por água recorre a poços rasos, escavados com as mãos, os quais vão se tornando mais profundos à proporção em que o lençol freático vai descendo.


É precisamente o perigo da exploração descontrolada e do desperdício, associados à ocupação indisciplinada do solo que chamam a atenção dos técnicos para a ameaça que paira sobre os aqüíferos.


A situação torna-se mais dramática nas cidades altamente dependentes das águas subterrâneas, como as do semi – árido nordestino, e mesmo do Sudeste. Dados da Secretaria de Recursos Hídricos de São Paulo informam que em municípios do oeste do estado a dependência de aqüíferos chega a superar os 90%.


Outro exemplo de superexploração resultante do desperdício é encontrado em Recife, onde cerca da metade da água tratada que chega por adutora vaza em decorrência de defeitos na rede de distribuição.



Como um país rico em água sofre com a escassez


A América do Sul é o continente mais rico do planeta em recursos hídricos, avaliados em 334 mil m3³/segundo. Deste volume, o Brasil participa com 179.900 m3³/segundo, ou 12% do total mundial, que soma 1.484.000 m3³/segundo.


Ocorre que 80% dessa oferta se localiza no Norte do país, onde vive apenas 10% da população. O Sudeste, região de maior consumo, tem menos de 10% do potencial hídrico do Norte. O estado de São Paulo, o maior do Sudeste, tem a oferta de água limitada a 12 litros/segundo por km², o que ainda é considerada uma boa oferta, em confronto com a Bahia, por exemplo, que, a despeito de ser cortada pelo rio São Francisco, tem apenas 2 litros/segundo de água disponível por km².


A distância das fontes superficiais de abastecimento, como rios e lagos, e os elevados índices de poluição dessas reservas, levam as populações, especialmente dos grandes centros urbanos, a uma crescente dependência dos recursos aqüíferos, ou seja, das águas subterrâneas.


A vantagem das águas subterrâneas em relação às superficiais, é que estas devem passar por um tratamento rigoroso – e caro – antes de serem distribuídas para o consumo. Ocorre que os recursos aqüíferos, conforme adverte o geólogo Chang Hung Kiang, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, sofrem a ação simultânea da poluição intensiva e da superexploração, empurrando-os velozmente para a escassez e a sua não utilização para o consumo humano.


Riscos da poluição – Somente um dos aqüíferos, chamado Aqüífero Guarany Gigante do Mercosul, que ocupa 1,6 milhão de km² da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, tem 1,1 milhão de m2² em território brasileiro, podendo oferecer, em regime auto-sustentável, 43 bilhões de m2 anuais, suficientes para atender a uma população de 500 milhões de habitantes.


O problema, conforme relata o estudo Mapeamento da Vulnerabilidade e Risco das Águas Subterrâneas no Estado de São Paulo, elaborado pelas secretarias paulistas de Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, Saneamento e Obras, é que quase 20% da área de recarga desse aqüífero são localizados em áreas de elevada poluição.


Na Região Metropolitana de São Paulo, segundo o estudo, metade da disponibilidade da água está afetada pela existência de lixões sem qualquer tratamento sanitário, tornando-se a água vetor principal de difusão de doenças como a cólera e a disenteria.


Dados do Centro Nacional de Epidemiologia do Ministério da Saúde não deixam dúvidas em identificar na má qualidade da água os surtos de cólera ocorridos entre 1992 e 1994. Os 2.103 casos da doença registrados em 1991, elevaram-se nos anos seguintes até alcançar 150 mil casos em 1994, transformando-se em epidemia.


Segundo o professor Kiang, assim como as águas superficiais, as subterrâneas também são afetadas pelos lixões, restos de pesticidas agrícolas, metais pesados liberados pela indústria e outras fontes de poluição. O processo é mais lento, porém inexorável e de mais difícil recuperação.