Crime Ambiental

Pesca com bomba mata peixe-boi em área de proteção ambiental

29 de abril de 2004

Ministro Sarney Filho quer providências contra a pesca predatória

Crime Ambiental
“Pescar mediante a utilização de: 1-explosivos ou substâncias que em contato com a água, produzam efeito semelhante; 2-substâncias tóxicas.”
Pena – reclusão de um a cinco anos
(Art. 35 da Lei da Natureza)


Aparecida era uma peixe-boi fêmea doente. Foi recuperada e tratada por técnicos do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA)/Ibama, por meio do Projeto Peixe-Boi, em Itamaracá, Pernambuco. Ela foi devolvida ao mar no início de maio deste ano. Mas morreu três dias depois.


Foto: Os dois peixes-bois, Aparecida e Aldo, são colocados dentro do viveiro para serem soltos no final do dia


A história
Aparecida teve uma trajetória peculiar. Em março do ano passado, ela entrou por vontade própria em um viveiro, na Barra de Mamanguape, Paraíba, onde já viviam dois peixes-bois. Sete meses depois, os técnicos perceberam que ela estava apática e sem se alimentar. Aparecida, cinco anos de idade, estava com pneumonia. Foi diagnosticada e transferida para a Unidade de Reabilitação e Pesquisa do Projeto Peixe-Boi. “Ela chegou aqui quase morta”, lembra a veterinária do projeto, Jociery Vergara, que acompanhou de perto o tratamento do animal.
Desidratado e com o estado de saúde debilitado, o mamífero foi tratado com antibióticos, antiinflamatórios e hidratação. Aparecida, contudo, perdeu o apetite e chegou a pesar 160 quilos, o equivalente ao peso de um animal de um ano e seis meses. Depois, reagiu à medicação e ganhou 75 quilos distribuídos nos seus mais de 2 m de comprimento. Passou a comer grandes quantidades de capim-agulha (alimento encontrado no mar e apreciado pelos peixes-bois), além das mamadeiras com suplementos. Segundo a veterinária, foram seis meses de tratamento e muito carinho para que Aparecida estivesse apta a voltar ao seu habitat natural.
Na madrugada do dia 4 de maio começou a saga do peixe-boi fêmea para ser levada ao mar onde se juntaria a Aldo, peixe-boi macho. Às 2h30 da manhã saiu o comboio de Itamaracá levando Aparecida em um caminhão, dentro de uma piscina forrada por colchões úmidos, que serviam para aliviar o impacto da estrada.
Mais de 20 pessoas, entre biólogos, oceanógrafos, veterinários, guardas florestais e engenheiros de pesca, participaram da operação. Durante todo o percurso, Aparecida foi assistida pela veterinária, que molhava o animal com água doce para evitar o ressecamento de sua pele. Foram mais de 12 horas até chegar à Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais, na Praia da Lage, em Porto de Pedras (AL). Enquanto a fêmea estava a caminho, outra operação foi desencadeada para capturar Aldo, que estava vivendo no rio Tatuamunha, no município de Porto de Pedras, a 100 quilômetros de Maceió.


Mobilização
Às 9h30, Aldo, com 125 quilos e 1,80 m de comprimento, chegou ao viveiro para se encontrar com Aparecida, que se juntou a ele às 11h. Nesse meio tempo, Aldo fugiu e deu trabalho para ser recuperado. O município de Porto de Pedras parou para assistir a chegada dos animais. As crianças foram dispensadas das escolas para que pudessem acompanhar de perto uma verdadeira aula de educação ambiental. Cerca de 500 pessoas da comunidade local – estudantes, professores e pescadores – estavam mobilizadas aguardando a chegada dos mamíferos.
“Não sei como as pessoas têm coragem de matar um animal tão dócil como o peixe-boi”, protestou a estudante Janaína Silva, de 16 anos. Já o estudante Pedro de Oliveira, de oito anos, torcia para que o acasalamento desse certo. “Tomara que possam nascer um monte de peixes-boizinhos desse casamento”.
Aldo e Aparecida ficaram juntos no viveiro até o final da tarde quando então os portões foram abertos. “A idéia é que eles permaneçam um pouco juntos porque geneticamente têm as mesmas chances de se multiplicar”, observou Vergara. Os animais foram soltos com rádios-transmissores para localização e monitoramento pelos técnicos da área.
“O trabalho técnico foi perfeito. Agora depende deles. A sensação é de missão cumprida”, comemorava o chefe do centro, o oceanógrafo Régis Lima, sem saber que o sucesso da operação não dependia apenas dos dois mamíferos devolvidos à natureza, mas também da consciência das pessoas. Quatro dias depois, quando todos pensavam que a operação tinha sido bem sucedida, Aparecida foi encontrada morta na praia, no mesmo local onde foi solta. Havia mordido uma bomba usada na pesca predatória.
“Só encontramos a carcaça do animal. Ela estava sem o crânio e em avançado estado de decomposição”, contou o engenheiro de pesca Cristiano Santos, técnico do projeto. Segundo o relatório de necrópsia, o animal estava com o estômago cheio de algas vermelhas típicas do local, indicando que estava se alimentando normalmente. “O que é um indício de adaptação ao meio ambiente”, disse Santos.


 


Sarney quer providências
A bomba que matou peixe-boi pode fazer outras vítimas


A equipe do CMA/Ibama acredita que o peixe foi morto pela explosão da bomba. “É preciso acabar com este tipo de crime brutal. Não são os pescadores que cometem este crime. São pessoas de fora da comunidade”, observou Régis Lima, que vai encaminhar o laudo ao Ministério Público Federal e à Procuradoria do Estado de Alagoas. A APA Costa dos Corais foi criada por decreto assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997, mas, segundo Lima, “é uma unidade de conservação que foi criada e não implantada. Até hoje não há uma estrutura”.
O ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho, ficou consternado ao saber da notícia, e determinou aos técnicos do Projeto Peixe-Boi que tomem todas as providências cabíveis para esclarecer a morte do peixe-boi fêmea Aparecida. A utilização de explosivos na pesca é considerada crime ambiental, como prevê o artigo 35 da Lei de Crimes Ambientais. Quem for pego em flagrante pode pegar até cinco anos de cadeia. Ao matar corais, plânctons e tudo ao redor, essa prática acaba com a produtividade pesqueira.
Em cinco anos, Aparecida foi o sétimo peixe-boi devolvido à natureza depois de recuperado e tratado nos oceanários do centro. “Foi o primeiro caso de morte constatado, já que o peixe-boi Pipinha, reintroduzido em setembro do ano passado, desapareceu sem ser localizado até o momento”, observou o chefe do centro. Ele ressaltou que os outros cinco peixes-bois estão bem e sendo monitorados por voluntários da comunidade local.


 


Projeto Peixe-Boi luta há 18 anos para preservar espécie em extinção


Dóceis, amigáveis, inofensivos, simpáticos e brincalhões. Essas são as características dos únicos mamíferos aquáticos herbívoros do mundo que vivem no mar e nos rios amazônicos. Mas eles correm sério risco de desaparecer. O peixe-boi, caçado desde o descobrimento do Brasil por causa do óleo, da pele e da carne, praticamente desapareceu da costa brasileira. No entanto, um projeto de conservação do animal no Norte e Nordeste do país, onde é encontrado, luta há 18 anos para preservar o animal em extinção.
O Projeto Peixe-Boi, com sede nacional no Centro Mamíferos Aquáticos (CMA)/Ibama, em Itamaracá, Pernambuco, cria e estuda o animal em cativeiro. Técnicos do projeto devolvem o mamífero ao seu habitat natural depois de tratado e recuperado, além de desenvolver programas de educação ambiental com as comunidades locais. “O programa de reintrodução de peixes-bois órfãos reabilitados em cativeiro é uma tentativa de reverter o grave status em que se encontra a espécie, criticamente ameaçada de extinção”, destaca o chefe do CMA, o oceanógrafo Régis Lima.
A principal causa de mortalidade hoje no litoral nordestino é o encalhe de filhotes recém-nascidos. As redes de pesca e a poluição ambiental também são sérias ameaças ao peixe-boi marinho. Ao se enganchar na rede, o animal não consegue subir à superfície para respirar e morre por asfixia. Como as baleias e os golfinhos, os peixes-boi têm que vir à superfície em intervalos de dois a cinco minutos para respirar. Já a poluição que atinge os manguezais destrói as plantas que nascem à beira d’água, sua principal fonte de alimentação.
Os peixes-bois são mamíferos aquáticos da Ordem Sirenia e tem sua origem há cerca de 45 milhões de anos. O Brasil possui duas das quatro espécies existentes no mundo: o peixe-boi marinho (Trichechus manatus) e o peixe-boi da Amazônia (Trichechus inunguis). O marinho habita a costa nordeste e norte, nos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e Amapá. Enquanto que o amazônico só existe no rio Amazonas e seus afluentes.
A caça indiscriminada fez a espécie desaparecer nos estados do Espírito Santo, Bahia e Sergipe. Hoje a população no Brasil está estimada em 400 animais. Os peixes-bois alimentam-se de algas, mangue e capins. Vivem até 50 anos e possuem baixa taxa reprodutiva. A fêmea tem geralmente um filhote a cada três anos, sendo um ano de gestação e dois para amamentar. No Brasil, o peixe-boi é protegido desde 1967 pela lei de Proteção à Fauna. Matar um peixe-boi pode render até três anos de prisão.


Turismo de observação
Segundo o chefe do CMA, o primeiro passo do trabalho de preservação da espécie foi conscientizar os pescadores e as comunidades ribeirinhas, que se tornaram aliados do projeto e passaram a atuar como informantes da ocorrência de encalhes de filhotes. “A campanha de informação junto à população é fundamental para a preservação da espécie. Com uma sociedade informada, conquista-se sua participação e pode-se cobrar suas responsabilidades enquanto parte integrante de um ecossistema”, explica Lima.
O projeto tem apoio da Fundação Mamíferos Aquáticos, ONG responsável por capturar recursos não-governamentais para as pesquisas, e patrocínio da Petrobrás e da Fundação O Boticário. De acordo com Lima, o projeto vem buscando parcerias com setores ligados ao turismo para desenvolver o ecoturismo na região. “O turismo de observação de animais ameaçados de extinção é uma das atividades que mais crescem no mundo todo.” No caso do peixe-boi, esse turismo é chamado de manatee watching.
Mais informações: Projeto Peixe-boi – Tel: (081) 544-1056 / 544-1835