Ilustre Brasileiro

Manuel Nardi, o guia de Guimarães Rosa, hoje empresta seu nome e história

12 de abril de 2004

Como um vaqueiro aposentado se tornou personalidade brasileira ?


Mineiro de Dom Silvério, na esquina do Rio de Janeiro com o Espírito Santo, era dono de um carisma contagiante e de um senso de humor raro. Ficou órfão de pai ainda menino e arranjou trabalho como cozinheiro de tropa. Saiu de casa para vencer na vida e como achou que não venceu, nunca retornou. Espontâneo e bem educado, não fez faculdade nem completou o primário. Vaqueiro, foi guia de Guimarães Rosa pelo sertão de Minas Gerais. Sua viagem com o escritor o tornou personagem representante de um mundo rural que deixou saudades. Com os olhos claros de Diadorim, se tornou um clássico da literatura em “Grande Sertão: Veredas”.


“Mamuelzão saiu cedo de casa para vencer na vida. Como achou que não venceu, nunca retornou”.


Contador de Histórias
Apoiava-se em um cajado sustentando encurvado suas longas barbas brancas. Com faquinha e garruchinha na cintura, chapéu e capa colonial, tinha disponibilidade para receber bem e contar causos a quem o procurasse. Dizia que dormia pouco e por isso contava as horas dobrado, somando dias e noites. Assim, não faltava tempo para puxar o fio da memória numa conversa sem fim. Filho de dona Rosa Amélia, devota de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, era do mundo. Não foi controlado pela política local, nem pela família, menos ainda pela igreja. Entre as muitas histórias que gostava de contar, uma das mais comoventes é a da morte da mãe que resultou, no lugar onde foi enterrada, na construção de uma capelinha na beira do Rio São Francisco. O caso inspirou o cineasta Helvécio Ratton, que fez um curta metragem. “Passei dez anos sem ver minha mãe”, contou o vaqueiro. “Levei ela pra morar comigo e pouco depois ela morreu”. Dias antes do acontecido, a mãe comentou que determinada paisagem era bonita: “O lugar ideal para se fazer um cemitério e uma capela”. Dito e feito. Manuelzão sepultou-a no local escolhido. “A melhor coisa que fiz foi enterrar minha mãe. Tive a satisfação de cumprir aquele seu desejo, do jeito que eu pude fazer”. Só que o padre de plantão recusou-se a benzer o lugar. Então, aconteceu o seguinte diálogo:
Vigário: Com ordem de quem o senhor fez a capela e o cemitério?
Manuelzão: Fiz eu mesmo na minha ignorância.
Vigário: Mas o senhor precisa ter um patrimônio para deixar para a igreja.
Manuelzão: Mas como? Eu não tenho patrimônio nem para morar! Vou ter para doar para os outros?
Vigário: Então vai ter que desmanchar a capela.
O boiadeiro não concordou e o padre disse que ia pedir ordem ao bispo.
Manuelzão: Não precisa, seu padre. Se o senhor não pode dar a bênção, então deixa como está. Se esse mundo todo foi Deus quem fez, então já está tudo abençoado.
Mais tarde, outro padre abençoou o lugar e o vaqueiro deu uma festa, imortalizada por Guimarães Rosa no conto “Festa de Manuelzão”, que integra o livro “Manuelzão e Miguilim”.


“Não tenho medo da morte porque sei que vou morrer.
Tenho medo do amor falso
que mata sem Deus querer”.


“Não adianta. Se não chegou a hora a pessoa escapa de tiro e até de acidente de avião. Mas quando chega, até um passarinho que voa assusta o sujeito que desequilibra e morre…” 


Imortalidade em vida
Há 60 anos iniciou uma viagem com destino a São Paulo. Em Lagoa Dourada conheceu um dono de boiada chamado José Figueiredo que resolveu contratar seus serviços. “Foi a viagem mais longa da minha vida”, disse Manuelzão. Só chegou a São Paulo em julho de 1992 quando concedeu entrevista ao “Jô Soares Onze e Meia”. Via seu sucesso com ironia: “Estão gastando muito papel com um simples vaqueiro”. A distância entre as diferentes realidades do mundo fez de Manuel Nardi personalidade pública. Não se preocupava em ganhar dinheiro com a imagem. Dizia: “Não sou um soberbo. Se derem, recebo e agradeço. Se não, é mais um amigo que tenho”. Foi uma existência que valorizou o viver. Morreu aos 92 anos em 1997. Tinha seis filhos, 22 netos e três bisnetos. Morava em Andrequicé, distrito de Três Marias, Minas Gerais, e vivia com uma pensão de aposentadoria do Funrural (Fundo de aposentadoria do Trabalhador Rural) e uma pequena ajuda da prefeitura local. “Não tenho medo da morte porque sei que vou morrer. Tenho medo do amor falso que mata sem Deus querer”.