Qualidade de vida

O Primeiro Mundo descobriu a pobreza

14 de abril de 2004

Banco Mundial, UNCTAD e FMI mudam a linguagem. É hora de diminuir a distância dos mais ricos para os mais pobres

Milano Lopes


Os dados são do relatório do Banco Mundial “Informe do Desenvolvimento Mundial 1999/2000 – Entrando no Século XXI” – que acaba de ser divulgado: há 1,5 bilhão de pessoas no mundo vivendo na miséria, com uma renda inferior a um dólar por dia. Em 2015 serão quase dois bilhões.
De 4,4 bilhões de indivíduos que vivem em países em desenvolvimento, como o Brasil, 60% não têm acesso à mínima oferta de saneamento; 33% não têm água limpa, 25% não têm moradia adequada e 20% não têm acesso a serviços médicos.
Ainda conforme o Banco Mundial, 20% das crianças não completam cinco anos de escolaridade e passam fome.
Na América Latina e no Caribe a situação vem se agravando: em 1987, pelo menos 90 milhões de pessoas, ou 22% da população total, viviam na miséria. Em 1998 – último dado disponível – esse número passou para 110 milhões, correspondentes a 23,5% da população total.


Desigualdade
O aumento da pobreza ocorre, concomitantemente, com o aumento da desigualdade, revela o relatório anual da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento – UNCTAD.
Segundo o documento, pela primeira vez nesta década, os países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, tiveram um crescimento menor do que os países ricos.
Em 1998 o Produto Interno Bruto – PIB – mundial expandiu-se 2%, o dos países industrializados 2,2% e o dos países em desenvolvimento apenas 1,8%. Se for excluída a China, o produto dos países menos desenvolvidos no ano passado cai para 0,7%. Nesse mesmo ano o PIB brasileiro cresceu desprezíveis 0,2%.
Para o secretário – geral da UNCTAD, embaixador Rubens Ricupero, “isso é grave, porque o sentido do desenvolvimento é diminuir a distância dos mais ricos para os mais pobres. Assim, esse abismo não vai cessar de se aprofundar”, garante.
Ricupero chama a atenção para o fato de que o crescimento da economia mundial este ano deve permanecer em 2%, repetindo o resultado do ano passado, o que é insuficiente para reduzir o desemprego em todo o mundo.


Operação emergência
A UNCTAD defende em seu relatório anual uma operação gigante e de emergência de aplicação de recursos públicos nas economias mais pobres e endividadas. Entende o organismo da ONU que o cenário econômico mundial nos próximos anos será marcado pela fragilidade e novos riscos, principalmente para os mercados emergentes.
Na América Latina, a principal preocupação é conciliar o ajuste das contas públicas e das contas externas com uma aceitável taxa de crescimento econômico. A UNCTAD salienta a crise que estão vivendo as duas principais economias sul – americanas – Brasil e Argentina – ambas às voltas com a recessão e elevados índices de desemprego.
A UNCTAD defende também a reciclagem da poupança japonesa e européia e o simples cancelamento das dívidas oficiais impagáveis dos países em desenvolvimento, além do reforço do mecanismos de financiamento global do Fundo Monetário Internacional – FMI.
O Banco Mundial também se preocupa com o movimento de capitais no mundo. Segundo seu relatório, haverá, no início do ano 2000 um estoque de poupança global de US$ 13,7 trilhões. Essa massa de dinheiro, em princípio, buscaria retornos atraentes investindo nos países em desenvolvimento.
Ocorre que os capitais são voláteis – buscam o lucro fácil e ao primeiro sinal de crise fogem do país que estavam explorando – e além disso, apenas 25% dos US$ 13,7 trilhões são, de fato, aplicados nos países em desenvolvimento.


O FMI a favor dos pobres?
Será que a mudança não ficará só na retórica?


O diretor – gerente do Fundo Monetário Internacional – FMI – Michel Camdessus, utilizou todos os adjetivos dramáticos que um sóbrio banqueiro europeu poderia usar, no discurso de encerramento da recente reunião do Fundo, anunciando que a ordem agora é “humanizar a globalização”.
Enfático, Camdessus disse aos ministros da economia dos países industrializados que eles não podem deixar de “mostrar ao mundo, que vocês, juntos, não precisam da pressão de uma crise para fazer o seu trabalho coletivo pelo bem da humanidade”.
“Digo isso – continuou Camdessus – com toda a minha convicção: é urgente! Deixar para o próximo ano poderia ser tarde demais! É tempo de ação. A necessidade está aí. A agenda está definida. Os compromissos foram feitos. Os alvos foram demarcados. É tempo para a ação. Vamos em frente”.


Agenda
A agenda referida por Camdessus foi um conjunto de propostas vagas aprovadas pelo FMI relativas à redução da pobreza extrema; reforço da educação primária universal; redução da mortalidade de bebês e crianças; igualdade econômica dos sexos; diminuição da mortalidade maternal e melhoria dos índices de saúde reprodutiva.
Propôs, também, uma estratégia nacional para o desenvolvimento sustentável, de forma a garantir que as tendências de perdas de recursos ambientais sejam efetivamente revertidas tanto no nível global quando nacional. Todas essas metas teriam de ser cumpridas até 2015.
Mas para muitos analistas, o toque emocional pouco comum nos pronunciamentos de Camdessus tem uma justificativa: a de tentar reduzir as críticas às políticas de ajuste prescritas pelo Fundo Monetário e que fracassaram na maioria dos países, inclusive na Ásia, na recente crise.
Aparentemente, nada vai mudar. De fato, dois dias depois de seu inflamado pronunciamento, Camdessus fez questão de explicar que não houve nenhuma mudança no chamado “Consenso de Washington”, um conjunto de políticas econômicas impostas aos países que pedem ajuda ao Fundo, e que inclui abertura comercial, liberalização dos fluxos de capital, privatizações e um rígido regime fiscal.
Mais explícito, o vice – diretor – gerente do FMI, Stanley Fischer, foi direto: “Nós não mudamos nossa política. A política macroeconômica e a política em relação a reduzir a inflação são os alicerces da estabilidade.”
“Não é o fim do Consenso de Washington” – disse Fischer. “Só os amadores acham isso. Na verdade, estamos apenas incluindo os aspectos sociais”.
Foi refletindo esse comportamento do FMI que o Ministro da Fazenda, Pedro Malan, a partir de Washington, onde ainda se encontrava, tratou de esfriar o entusiasmo que a “nova postura” do Fundo causou em alguns círculos da administração e do Congresso no Brasil, ao deixar claro que “não é nada disso”.
Em relação ao Brasil, por exemplo, “nada muda”. Tanto Camdessus como o Ministro Malan deixaram claro que o programa de ajuste aprovado para o Brasil já inclui para este ano e o próximo um esforço significativo na área social, especialmente em saúde e educação. E que os recursos alocados no Orçamento Geral da União para o ano 2000 e no Plano Plurianual, já garantem um bom nível de investimento social.
Portanto – dizem – nada será preciso mudar na política econômica no Brasil, em conseqüência da ênfase no desenvolvimento social e na redução da pobreza no mundo, que dominou o discurso de Camdessus.


O Brasil e seus 43
milhões de indigentes
Estudo do IPEA diz que metade da população é pobre


Com base nos dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio – PNAD – de 1996 e 1997, portanto, em pleno período áureo do Plano Real, uma pesquisa do Ipea – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – concluiu: há 43 milhões de indigentes no Brasil, correspondendo a 28% da população.
Considera-se indigente o indivíduo que ganha menos de R$ 73 mensais, pouco mais de um dólar por dia, e que se alimenta mal, consumindo uma quantidade de calorias abaixo dos níveis mínimos estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde – OMS.
O autor do trabalho, economista Marcelo Neri, coordenador do Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade do Ipea, informa que o pobre brasileiro tem algumas características específicas: a maior parte é de cor preta, jovem, vive no meio rural, tem baixa escolaridade e não possui carteira assinada.
O estudo mostra que a maioria da população brasileira – 50,2% dos 165 milhões de habitantes – é pobre, assim entendido aquele que percebe uma renda baixo de R$ 149 por mês, considerado o mínimo necessário para os gastos básicos de alimentação, moradia e transporte.
 
Campeão da pobreza
O Ipea revela que o Estado do Maranhão é o que reúne o maior número de indigentes: são 69% dos maranhenses que estão recebendo menos de R$ 73 por mês, e que moram sobretudo na área urbana.
O Estado da Bahia, apesar do mais industrializado do Nordeste, ocupa o terceiro lugar entre os estados com o maior número de pobres: são dez milhões de indivíduos, ou 80% da população baiana. De acordo com o estudo, 7,2 milhões não conseguem rendimentos suficientes para atender sequer às necessidades alimentares.
Já o Estado de São Paulo, o mais desenvolvido do país, é também o que tem o menor índice de pobres: apenas 24,5% de sua população. Apesar do percentual ser baixo, em relação aos demais Estados, o número é relevante: oito milhões de pessoas.
Depois de S. Paulo vem o Distrito Federal, onde 31,1% dos habitantes têm uma renda mensal inferior a R$ 149, o que corresponde a 576 mil pessoas.
A concentração de renda é um dos fatores de agravamento da pobreza. Segundo o Ipea, em 1990, os 50% mais pobres detinham 12,7% da renda nacional. Esse percentual baixou para 11,2% em 98. Houve, portanto, um aumento da desigualdade de renda.
No início da década, os 20% mais ricos controlavam 62,8% da renda nacional. Em 98 os ricos já detinham 63,8%.