JERSON KELMAN - Entrevista

Pacto federativo e o uso das águas

24 de maio de 2004

E quem vai administrar os conflitos entre estados, municípios e a União? Kelman responde


Folha do Meio – Como o senhor vê a contribuição do CNRH para a implementação da Política Nacional de Recursos hídricos?
Jerson Kelman – O CNRH tem conseguido importantes avanços para a implementação do sistema nacional de gerenciamento. Por exemplo, a edição da medida provisória que viabiliza as agências de bacia. Todavia, penso que o papel essencial do CNRH na atual conjuntura deveria ser de fortalecer o pacto federativo para gestão dos recursos hídricos na escala da bacia hidrográfica. E, nesse sentido, o CNRH poderia contribuir mais. Digo isso como autocrítica, já que também sou membro do CNRH. O que observo é que o CNRH atua de forma restrita e acanhada ao aprovar resoluções que valem exclusivamente para rios de domínio da União, como se fosse apenas um Conselho Federal de Recursos Hídricos. Na prática, o CNRH tem adotado uma postura patrimonialista que, simplificadamente poderia ser resumida na seguinte assertiva: “se o leito do rio estiver contido no território do estado A, o uso da água é de exclusiva competência do estado A”. Penso que esse conceito é equivocado quando a água que corre pelo leito no estado A for a mesma que, mais adiante, correrá pelo leito situado no estado B.


FMA –  Como deveria funcionar o pacto federativo para a gestão dos recursos hídricos?
Kelman – Como sabemos, numa bacia hidrográfica contida em mais de um estado da federação, os rios de domínio da União são administrados pela ANA e os de domínio estadual pelas correspondentes entidades estaduais. Se não tivermos competência, instalar-se-á uma Torre de Babel, com regras diferenciadas para outorga e cobrança pelo uso de recursos hídricos, bem como para a correspondente fiscalização. Imagine, por exemplo, duas empresas usuárias de recursos hídricos do mesmo ramo de atividade localizadas numa cidade paulista, uma na beira do rio Paraíba do Sul e outra na beira de um afluente do Paraíba do Sul. A primeira já está obrigada a pagar pelo uso do rio, por força de uma resolução do comitê da bacia, o Ceivap, e a segunda não.
FMA – Mas isso, de fato não faz sentido?
Kelman – Claro que não!
 
FMA – E o que o CNRH poderia fazer para resolver esta questão?
Kelman – O CNRH deveria estar fazendo gestões junto às assembléias legislativas dos estados para que as correspondentes leis não se choquem com a Lei Nacional, a 9433/97 e, em particular, respeitem o princípio da isonomia na escala da bacia hidrográfica. Isto quer dizer que as decisões tomadas por um comitê de bacia que sejam de sua competência legal, como por exemplo os valores de cobrança pelo uso dos recursos hídricos, devem valer para todos os rios da bacia, independentemente do domínio. E o que se vê? A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, por exemplo, está discutindo um projeto de lei que coloca tetos para a cobrança de alguns setores, contrariamente ao já decidido pelo Ceivap, sem que o CNRH se manifeste a respeito.


FMA – O CNRH está discutindo uma moção de crítica ao governo do Rio de Janeiro por ter aprovado exatamente uma lei sobre cobrança que conflita com a Lei 9433/97. Não se trata deste tipo de atuação que o senhor está cobrando?
Kelman – Não. Na realidade é difícil entender a motivação desta proposta de moção. Afinal, ao contrário do caso do projeto de lei sob exame na Assembléia Paulista, no caso do Rio de Janeiro a lei já foi aprovada, com valores unitários de cobrança rigorosamente idênticos aos aprovados pelo Ceivap, sem isenção, regalias ou tetos para setor algum, e com garantia de aplicação da arrecadação na bacia onde tiver ocorrido a cobrança, de acordo com as prioridades definidas pelo correspondente comitê de bacia, quando existir. Penso que a Lei fluminense é um avanço. Naturalmente, é de supor que o resultado seria ainda melhor se o correspondente projeto de lei, que foi quase unanimemente aprovada pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, tivesse passado pelo escrutínio de uma discussão prévia no Conselho Estadual de Recursos Hídricos. No entanto, não há razão alguma para chutar a bola para trás, com risco de fazer gol contra.


?Imagine duas empresas usuárias de água, com mesmo ramo de atividade, localizadas numa cidade paulista:uma à beira do rio Paraíba do Sul e outra à beira de um afluente.
A primeira já está obrigada a pagar
pelo uso do rio, por força de uma resolução
do comitê da bacia e a segunda não?


Cobrança condominial
deve retornar 100%


FMA – O retorno da arrecadação para a bacia hidrográfica é sem dúvida um tema importante. Como tem sido tratado no CNRH?
JK – Vamos começar pelo que é unanimidade: todos concordam que o que for arrecadado pela cobrança decidida por comitê de bacia, a chamada “cobrança condominial”, deve voltar integralmente para a bacia, para ser utilizado de acordo com as decisões do comitê. Não basta retornar 99%. É preciso que seja 100%. Ao longo dos últimos meses, a ação conjunta do MMA e do CNRH resultou em significativos avanços nessa direção. Convencemos os setores do governo federal responsáveis pelo resultado de superávit fiscal que não adianta contingenciar recursos provenientes da cobrança condominial porque o respectivo comitê de bacia tem o poder de reduzir os valores unitários a praticamente zero. Por decorrência desse esforço de convencimento, não há a menor possibilidade de contingenciamento de recursos arrecadados com a cobrança condominial em 2004. Todos nós, membros do CNRH, defendemos também o não contingenciamento da receita resultante do pagamento feito pelas das usinas hidroelétricos pelo uso dos recursos hídricos, que deveria estar sendo aplicada na implementação do Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Entretanto, há que se reconhecer que esse pleito tem muito menos chance de ser acatado pelas autoridades econômicas, pela simples razão de que, se houver o contingenciamento, não há nada que os comitês de bacia possam fazer a respeito.


FMA – Há unanimidade quanto ao que fazer com a arrecadação proveniente do setor elétrico?
Kelman – Não há. Deixa eu explicar melhor essa questão. Até o ano de 2000, todos os consumidores de energia elétrica, espalhados pelo Brasil inteiro, pagavam 6% do valor da energia elétrica produzida em usinas hidroelétricas como “compensação financeira” pelo uso de recurso hídrico. Na realidade, esta compensação era e é repassada quase inteiramente para os estados e municípios proporcionalmente às áreas que poderiam ser produtivas, mas que, devido à construção das barragens, encontram-se sob água. A partir de 2001, todos os consumidores de energia elétrica passaram a pagar 6,75%. A diferença de 0,75% tem sido utilizada para implementar o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, sob responsabilidade da ANA. Isto significa manter e ampliar a rede hidrometeorológica nacional, com cerca de 5,6 mil pontos de monitoramento, implantar o sistema de outorgas e de fiscalização, dar transparência através de um eficaz sistema de informações, dar apoio aos comitês, elaborar planos e diagnósticos, promover o uso eficiente da água e solo, mitigar conflitos entre setores usuários, incentivar a despoluição dos rios e apoiar os estados na organização de seus sistemas de gestão.
FMA – Há membros do CNRH que defendem a aplicação da parcela de 0,75% exclusivamente na bacia hidrográfica onde ocorre a geração energética…
Kelman – Penso que há sérios equívocos nessa proposição. Primeiro, porque, conforme já expliquei, a cobrança recai sobre todos os consumidores de energia elétrica, espalhados pelo Brasil inteiro, diferentemente da cobrança condominial, que recai sobre as empresas usuárias de uma particular bacia hidrográfica. Segundo, porque não me parece correto deixar sem amparo as regiões onde não ocorre geração significativa de energia elétrica, como é o caso do Nordeste Setentrional e grande parte da região Norte. Por último, porque não me parece sensato deslocar recursos atualmente sendo utilizados em escala nacional para implementação da Lei 9433/97 sem que se tenha equacionado de onde virão os recursos para que a concretização desta missão não seja interrompida.            


Convencemos os setores do governo federal responsáveis pelo
resultado de superávit fiscal que não adianta contingenciar recursos provenientes da cobrança condominial porque o respectivo comitê de bacia tem o poder de reduzir os valores unitários a zero


Gestão participativa da bacia do rio Paraíba do Sul corre o risco de  paralisação
Emendas do Senado ao projeto de lei que dispõe sobre os contratos de gestão entre a ANA e as agências de bacia podem inviabilizar a continuidade do trabalho dos comitês


O bem sucedido sistema de gestão implantado na bacia, pelo Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul – Ceivap, pode sofrer um golpe fatal, se aprovadas as emendas apresentadas pelo Senado ao projeto de lei de conversão da Medida Provisória nº 165, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em fevereiro deste ano.
Com a MP 165, a Associação pró-Gestão da Bacia do Paraíba do Sul – figura jurídica e braço executivo do Ceivap – estava autorizada a exercer as funções de Agência de Água da Bacia, podendo firmar contrato de gestão com a Agência Nacional de Águas, para repasse dos recursos da cobrança pelo uso da água e de outras verbas públicas, destinadas à recuperação ambiental da bacia. Com as emendas apresentadas pelo Senado ao projeto de lei de conversão, não será mais possível implementar  esse contrato de gestão.


Diretoria do Ceivap se reúne com o deputado relator


O referido projeto de lei, alterado pelas emendas do Senado, voltou à Câmara dos Deputados, para apreciação. Como ainda está em tramitação, a diretoria do Ceivap se reuniu com seu relator, o deputado Mário Assad Júnior, dia 18 de maio, em Brasília, com um pedido formal: fazer apelo à Câmara dos Deputados no sentido de que se mantenha o texto original do projeto de lei, para evitar a falência do modelo de gestão pioneiro e exemplar implantado na bacia do Paraíba do Sul.
Lideranças ambientais argumentam que a única forma de ter a presença da sociedade no gerenciamento das águas dos rios brasileiros é promovendo uma gestão participativa. “Em relação ao meio ambiente governo sozinho faz pouco, organizações não governamentais sozinhas também não fazem muito e até a comunidade – que tem uma força especial – mas também se for agir sozinha pode pouco.
A força para vender os problemas ambientais está justamente na união firme e inteligente do governo, da sociedade civil e das pessoas”, lembra o deputado federal Sarney Filho, líder do PV, e ex-ministro do Meio Ambiente.