A Amazônia internacional

Amazônia: como gerenciar 16% da água doce da Terra

21 de junho de 2004

Chegou a hora dos oito países que estão na bacia amazônica administrarem um potencial de 4 a 5 milhões de barris de petróleo equivalente/dia em geração hidráulica


Foto: Marcos Aurélio Freitas: quando falamos da bacia amazônica sabemos que lá tem muita água e pára por aí


FMA – Como a ANA está considerando a bacia amazônica, onde há bastante água e pouca gente?
Marcos Aurélio – Quando falamos de bacia amazônica, falamos de algo como 16% da água doce superficial do planeta. Quando pensamos na maior bacia hidrográfica do planeta, a maioria dos hidrólogos do país sabe que tem muita água, e pára aí. Na verdade, as preocupações sobre o tema água priorizam a falta d’água no Nordeste e a poluição no Sudeste. Isso faz com que o enorme potencial de água que tem a Amazônia enfrente uma enorme carência de informação e, conseqüentemente dificultando a tomada de decisões.


FMA – E já existem problemas na região?
Marcos – Existem sim. Há uma enorme concentração urbana, algumas similares às existentes em qualquer ponto do País. Manaus e Belém, principalmente, com cerca de dois milhões de habitantes cada uma, enfrentam problemas de abastecimento de água e poluição localizada em diversos igarapés.
Porém, essas questões podem ser tratadas de forma diferente de outras regiões, considerando-se, por exemplo, a capacidade de diluição dos rios da Amazônia, a forma horizontalizada do crescimento das cidades, o que faz com que haja uma densidade populacional bem menor numa cidade amazônica do que, por exemplo, nas cidades verticalizadas do Sudeste com população equivalente.
É claro, que estender a coleta de esgotos numa cidade horizontalizada é bem mais caro. No caso da Amazônia, é preciso fazer sistemas de tratamento de esgoto nos locais de poluição, descentralizados, sem exigência de transporte de longa distância. Boa parte das cidades amazônicas já estão usando água subterrânea. Um terço do abastecimento de água de Manaus é de água subterrânea. Porque, à medida em que a cidade se expande, não há como levar água potável. As pessoas, então, perfuram, fazem poços. Se o poço for mal localizado, poderá ficar perto da fossa.


FMA – Inclusive as indústrias da Zona Franca?
Marcos – Todas as indústrias de Manaus se abastecem de água subterrânea. Como não havia segurança na oferta de água potável e o consumidor resistia em pagar a conta da água, a saída mais cômoda era cavar um poço. Coleta-se de sete a oito metros cúbicos por segundo de água subterrânea em Manaus. O lençol freático pode não baixar, mas há um sério risco de poluição localizada. Há situações onde os poços são mais rasos, há rios cuja vulnerabilidade tem de ser estudada de uma ponta a outra. Mas o importante a considerar na Amazônia é que estamos falando de algo como seis milhões de quilômetros quadrados, quando se contabiliza toda a área de drenagem da bacia.


FMA – E deve ser considerado também que, na Amazônia, o Brasil é águas abaixo…
Marcos – É verdade, na Amazônia o Brasil é águas abaixo. Diferente do que é, por exemplo, em relação à bacia do Prata, onde somos águas acima. Portanto, no caso do Prata, a forma como gerimos os recursos hídricos no Brasil interfere diretamente em nossos vizinhos argentinos e uruguaios. Na Amazônia, não. A relação é inversa. A forma de gerir a água na Colômbia,  Peru, Bolívia, Equador, Venezuela e Guiana tem relação direta com o que ocorre no Brasil. Essa situação de gestão de águas transfronteiriças, seja para países de águas acima ou abaixo demanda uma integração continental. Já temos problemas de poluição na fronteira com a Colômbia. Enviamos recentemente a Tabatinga, no estado do Amazonas,  que faz fronteira com Letícia um especialista para verificar a possibilidade de instalar uma pequena rede de controle de qualidade de água. Letícia é uma cidade grande para os portes amazônicos, do lado colombiano, e já enfrenta problemas similares aos nossos. É claro que há situações mais específicas da região amazônica, como, por exemplo, o narcotráfico, que é outra situação que provoca poluição da água.


 


O narcotráfico, a poluição das águas e a grandeza da bacia hidrográfica


FMA – Como o narcotráfico polui a água?
MF – Polui porque os narcotraficantes vão refinar a coca. Quando eles refinam a coca, utilizam produtos químicos em grandes quantidades e em condições totalmente marginais e descontroladas. Isso sem falar em outros problemas. Quem vai combater o narcotráfico utiliza técnicas que também podem ser muito prejudiciais (agentes desfolhantes, etc).
E há também a poluição provocada pelo garimpo, além de outras tantas situações de risco, que na Amazônia conhecemos pouco os efeitos e às quais é preciso estudar para saber o que fazer. Há enormes concentrações de mercúrio em várias regiões da Amazônia. Os peixes se alimentam nas águas contaminadas, os indivíduos comem os peixes e depois adoecem. Mas o mercúrio não existe nas águas dos rios da Amazônia apenas pela presença do garimpo. Foram detectadas altas concentrações de mercúrio em rios onde nunca se explorou o ouro. Ou seja, há mercúrio no solo que, com a subida e descida dos rios, o desbarrancamento, vai poluindo as águas.
FMA – Não lhe parece urgente, então, um projeto para gestão das águas da Amazônia?
Marcos – Sem dúvida. E terá de ser um projeto trans-fronteiriço, que possa integrar os países que compõem a bacia, – Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname. Como apresentamos um projeto, com apoio da OEA e PNUMA, para discussão e aprovação junto aos países que fazem parte da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), vimos que era a melhor oportunidade para discutir a bacia amazônica. A intenção é discutir o tema da água – a gestão dos recursos hídricos – com todos os países da região. Para tal, o objetivo é, em primeiro lugar, reunir recursos para implantar uma rede de monitoramento integrado. Ter informações sobre a quantidade e a qualidade da água, o que está ocorrendo na região como um todo.
Não só da água superficial, mas, se possível, de todo o ciclo hidrológico. Ter um pouco mais de integração da meteorologia, para detectar os efeitos do fenômenos como o El Niño e o La Niña na região. Sabemos, por exemplo, que nos anos de El Niño, em algumas regiões da Amazônia chove menos, ao contrário do que ocorre na Bacia do Prata, onde chove mais. Chovendo menos, há maior risco de incêndio e outros problemas, como redução da oferta de água nos reservatórios das hidrelétricas, por exemplo.



summary


The Amazon: how to manage
16% of the world’s fresh water


It’s time for the nine countries who share the Amazon basin to manage the hydro power generation capacity equal to four to five million barrels of oil per day power generation


When discussing Brazil, the Amazon is always a separate story.  There is no shortage of reasons:  the vastness of its  territory, mysteries, mineral resources, drug trafficking, forests, proposals for internationalization, agricultural encroachment, rivers and more rivers, fires, deforestation, tourist potential, lushness, Indians, biodiversity and the border that Brazil shares with eight other countries.  The Amazon is a giant by nature, in every respect:  its extractivist reserves, conservation units, genetic resources and above all fresh water. Yes, 16% of the planet’s water resources are in the Amazon and this is what we are going to discuss once again with Marcos Aurélio Freitas, director of the National Waters Agency, who will explain all the implications of this potential in relation to us as Brazilians and in relation to the entire basin, an area which we share with the seven other countries.


When we talk about the Amazon basin, we are discussing 16% of the planet’s  surface fresh water.  When we think of the largest water basin on the planet, the majority of the hydrologists of the country know that there is a lot of water there.   In fact, the concerns regarding the topic of water generally prioritize the water shortage in the Northeast and the pollution in the Southeast.  Thus, we have  little information regarding the enormous water potential that the Amazon has and therefore, it is difficult to make any decisions in this regard. 
In the cities of Belém and Manaus, there are large urban concentrations, similar to those in many other areas of the country.  There are two million inhabitants in each city, which face water supply and pollution problems in a number of igarapés (waterways).  However, these issues can be dealt with differently than in the other regions, if one takes into consideration for example, the dilution capacity of the Amazon rivers, the horizontal growth of the cities, which means that the population density is much smaller in a city in the Amazon than in the cities with vertical growth in the Southeast, having a similar population.  Not to mention of course, the sewage system in a horizontal city is much more expensive.  All of the industries in Manaus get their water supply from subterranean water supplies.


 


A OPEP da água em discussão


FMA – Nesse contexto, como se coloca a questão do petróleo amazônico?
Marcos – A Petrobras está produzindo óleo na região de Urucu. Tornou-se um dos principais navegadores dos rios daquela região, com barcos de grande calado. Boa parte dos monitoramentos feitos pela ANA nos rios da área, realizados, hoje, com alta tecnologia de medição do fluxo da água e dos perfis dos rios, como a de uso do efeito Doppler, batimetria etc. constituem dados indispensáveis para quem navega naquela região. Afora isto o conhecimento da Petrobrás no controle da poluição de óleo nas águas será de forte interesse a outros países petroleiros amazônicos, como o Equador e o Peru. 


FMA – Como o Itamaraty avalia a questão da água na Amazônia em face das demandas internacionais sobre a região?
MF – O Itamaraty tem sido o fio condutor para discutir a questão da águas com os outros países desde 2001, no âmbito das discussões que resultaram na instituição do Organismo do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), que começou a funcionar no ano passado. Neste quadro, é importante ressaltar que em novembro de 2002, em Santa Cruz de la Sierra, na 11o. Reunião Regular do Conselho de Cooperação Amazônico e na 11º. Reunião dos Ministros de Relações Exteriores do TCA, a proposta do projeto das águas foi oficialmente apresentada pela delegação brasileira.  A Declaración de  Santa Cruz, firmada pelos ministros de relações exteriores dos países Amazônicos, além de dar boa acolhida ao projeto enfatiza “la importancia del manejo y conservación de los recursos hídricos en la Cuenca del Amazonas y la necesidad de integrar y armonizar las iniciativas y esfuerzos de cada país.” 


 FMA – Com tantos problemas de água no Nordeste e Sudeste, por que a ANA vai se preocupar com a Amazônia?
Marcos – Quando a ANA decidiu trabalhar na Amazônia, levou em conta isso que vocês estão falando, como é natural. Os imensos problemas de água que enfrentamos em outras regiões do País, não podem deixar que ignoremos a Amazônia. E que, se uma dor de dente nos leva a esquecer um eventual desconforto em outra parte do nosso corpo, mas isso não significa que temos de deixar de enfrentar esse desconforto com os remédios necessários.
Os investimentos na Amazônia deverão ocorrer em função de situações concretas, como os problemas de gestão das águas gerados pelas grandes cidades da região, mas, igualmente, e com igual ênfase, em cima das questões potenciais, do futuro. Estamos falando de algo que pode modificar completamente a ocupação de uma grande parte do continente. Nós podemos estar neste momento discutindo uma espécie de OPEP da água. Com os países amazônicos, estamos discutindo um potencial  de aproximadamente quatro a cinco milhões de barris de petróleo equivalente/dia em geração hidráulica. Isto deve ser conduzido corretamente, porque se não o for, estaremos negando às gerações futuras a possibilidade de um aproveitamento que é abundante e renovável.
Temos que buscar experiências bem sucedidas, hidrelétricas bem construídas, situações que não venham a afetar os outros usos, que venham a ressarcir corretamente as populações afetadas, que venham a protegê-las. Se agirmos assim, saberemos usar os recursos naturais.


summary


The Amazon needs a cross-border project


Downstream and upstream
The Amazon in Brazil is downstream, which is different for example, in relation to the Plate river basin, which is upstream.  In the case of the Plate, the way in which we manage water resources directly interferes with our neighbors in Argentina and Uruguay. In the case of the Amazon the relationship is the reverse.  The way in which water is managed in Colômbia, Peru, Bolívia, Ecuador, Venezuela and Guyana has a direct relationship to what is happening in Brazil.  This cross-border water management, regardless of whether in countries with downstream or upstream water requires continental integration.   We already have problems from pollution near the border with Colômbia.


Drug trafficking
Drug trafficking pollutes because the traffickers refine cocaine by using large quantities of chemical products, under totally illegal and uncontrolled conditions.  Those who combat the drug trade also use techniques which are highly damaging (defoliating agents, etc.)  Pollution is also caused by the mining there, as well as many other risky procedures used in the Amazon; we know little about the effects of these situations and need to study them to learn what needs to be done.
 
Cross-border Project
We need a cross-boarder project, which would enable integration of the countries which make up the basin – Brazil, Bolívia, Peru, Ecuador, Colômbia, Venezuela, Guyana and Suriname. Since we have introduced a project, with the support of the OEA and Pnuma, to discuss and gain the approval of the countries which belong to the OTCA, (the Amazon Cooperation Treaty Organization), we saw this was the best opportunity to discuss the Amazon basin.
The intention is to discuss the topic of water – the management of water resources with all of the countries in the region.  However, we need to raise funds to implement an integrated monitoring system, to gather information about the quantity and quality of the water, throughout the region as a whole.


No Capitals
Although the Amazon is immense and nearly all the countries possess  a large territory within the region, there are no capital cities of any country located in the Amazon, in other words, none of the countries  feels culturally Amazon.  The Amazon basin covers 35% of Brazilian territory.  In Peru, 70% of its territory is located in the Amazon basin, while in Bolivia it covers roughly 50%.  Since the capital cities are centered on other river basins such as the Plate, the Orinoco River or  located near the sea, etc., these countries are not yet concerned enough with the management of the waters in the Amazon, which is why there is so little understanding about the Amazon River basin.  The Amazon to these countries is a future issue.  


Sovereignty
Brazilian diplomatic relations could benefit from this management in a number of ways.  At international forums, when first world countries learn that we are working toward a broad integration process, to enable the implementation of sustainable water management in the Amazon, they will know that we, all of the Amazon countries, have taken an important stance, but not only from an environmental point of view.  They will see that we have also joined economic forces and have taken, most importantly, a sovereign attitude.  It is possible to have an excellent water monitoring program, provided that it is well structured, using state of the art long distance monitoring which encompasses the entire region.  One of the biggest problems in water monitoring technology development projects, which some countries already have, is the cost of transmitting information.  If we implement the system it will be necessary to spend in the neighborhood of US$ 100.00 per month to maintain each point and we would need hundreds of points installed in the forest.  These  points  would send information to the US or European satellites.  If we use Brazilian satellites (SCD1, SCD2 and CIBERS) and we have already discussed this with the Ministry of Science and technology, and the people at the INPE, the transmission costs could be considerably lower and the Brazilian government could consider this as an opportunity to extend their use to other Amazon countries.  


Sivam/Sipam
It would be an enormous accomplishment for Brazil, to visibly be involved in working with the Amazon countries in a position of leadership, from an integration policy point of view.   Sivam/Sipam, for example, would be an excellent partner to achieve this.  This entity is currently conducting a complete mapping of the area, which could be made available to the Amazon nations.


Global Environmental Facility
By taking on this new posture, it would be possible to receive more international aid.  We have already secured a donation from the  GEF – Global Environmental Facility – associated with the United Nations Environmental Program in the amount of  US$ 10.7 million.  GEF which has already invested in Brazil and other countries in South America in the Pantanal, São Francisco and Plate basins and  in the Guarani waterways, has agreed to donate this money, which is expected to be released in installments at least by the end of the year.  The purpose of this project is to organize Amazon countries and begin discussions regarding the cross-border management of the waters and the climatic vulnerability of the region as well as planning concerning the importance of management and creation of the new multilateral regional organ.


O Brasil deve ser apenas um parceiro privilegiado


FMA – Como podem ser avaliadas as hidrelétricas?
Marcos – A necessidade energética fez com que o Brasil construísse várias hidrelétricas. Algumas na Amazônia. A hidrelétrica de Balbina formou um lago enorme para uma capacidade instalada de 250 MW. Já Tucuruí é bem melhor do ponto de vista energético. Estamos falando de um lago de cerca de 3 mil km2, com uma potência de oito mil MW.
É evidente que Tucuruí teve outros problemas, associados à não retirada da madeira submersa – problema que também existiu em Balbina – assim como à necessidade de deslocar populações e fazer ressarcimentos.
É importante destacar que no caso de Balbina, por exemplo, encontrou-se uma solução para a questão indígena, com o pagamento de uma compensação financeira aos Waimiris-Atroaris.  É preciso ver como fazer uma melhor regulação para a terra indígena, tendo em vista, principalmente, os próximos aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia.


FMA –    O  atraso de 20 anos na construção de Belo Monte pode possibilitar a utilização de novas tecnologias que reduzam os impactos ambientais?
Marcos – Não tenho dúvida. Se você pegar os projetos das UHE de Kararaô e Babaquara, que antecederam o projeto de Belo Monte, vai verificar que houve uma enorme evolução em termos de projeto. O anterior era ruim e certamente não ia ter financiamento externo. 
Belo Monte, com 10 mil MW de capacidade, é outra história: discute-se um lago de 400km2, quando Balbina tem algo da ordem de 4 mil km2 de área inundada. Mas a definição de Belo Monte depende ainda de regularizar a situação das nações indígenas que habitam a região.


FMA – Com essa nova postura, dá para ter mais ajuda internacional?
Marcos – Sem dúvida. Já temos assegurada uma doação do GEF – Global Environnmental Facility – ligado ao Pnuma – no valor de US$ 10,7 milhões. O GEF que já investe no Brasil e em outros países da América do Sul, nas bacias do Pantanal, São Francisco e Prata e no aqüífero Guarani, concordou com essa doação.
A liberação em parcelas deverá ser iniciada até o fim do ano. É um projeto destinado a organizar os países amazônicos e iniciar a discussão sobre a gestão transfronteiriça das águas e da vulnerabilidade climática da região, com a importância de ser discutido e gerenciado no âmbito de um novo organismo multilateral regional criado.
Bem, não é o suficiente para trabalhar uma região tão grande, mas há possibilidade de se obter outros financiamentos. Eu costumo chamar esse projeto inicial de US$ 10,7 milhões de um glacê de bolo. E pode ser feito um bolo ótimo, desde que seja um projeto de Estado, onde os países se engajem e se comprometam. Esse é o caminho para evitar que o Brasil seja visto como uma potência hegemônica na Amazônia. O Brasil tem que ser visto como um parceiro privilegiado no desenvolvimento de um processo integrado de gestão das águas no continente sul-americano.