Água e pesca

Recursos hídricos e a aqüicultura

26 de agosto de 2004

O uso da água para a aqüicultura deve ter a mesma importância na agenda dos recursos hídricos que têm a irrigação, a energia e a indústria hídricos que têm a irrigação, a energia e a indústria


Folha do Meio – Por que, quando se fala em gerenciamento dos recursos hídricos, a pesca fica sempre em segundo plano? Ela não é importante?
Raymundo Garrido – Importantíssima! Mas veja que a tradição brasileira na gestão hídrica faz com que nós nos ocupemos apenas com as águas interiores. Daí, o tema da pesca no contexto dessa gestão inscreve-se apenas à pesca e à aqüicultura em águas doces. Mas é oportuno lembrar, de modo figurado, que gerir recursos hídricos significa cuidar do lar do peixe e de todas as comunidades aquáticas. Esse lar é um pouco diferente dos terrestres: em vez de ser construído com tijolos, argamassa e telhas, é constituído por uma valiosa substância que se move e se adapta a seu recipiente e que, pelo conjunto de suas demais características, também é utilizada para outros fins. É justamente a água e esses fins são os usos da água. Então, harmonizar todos esses usos é parte essencial da agenda do gerenciamento hídrico. Mas sem esquecer a pesca e a aqüicultura.
E tem um outro aspecto: pesca e aqüicultura são atividades econômicas com objetivos sociais bem definidos. Temos que lembrar a importância estratégica para o Brasil, pois somos os detentores a mais extensa e volumosa trama hídrica do planeta.


FMA – Vamos por partes: os peixes são os donos da casa ou apenas um produto de um dos usos da água?
Garrido – Olhe, são as duas coisas. Mais do que donos da casa, os peixes e os outros organismos vivos formam ricos ecossistemas, contracenando com a própria água, o ar dissolvido nesta e outros elementos que, em seu conjunto, constituem o objeto da gestão hídrica, mas que são, antes de tudo, essenciais para a produção alimentar e para o equilíbrio ambiental. Boa parte das comunidades aquáticas atua, portanto, como elos da cadeia trófica, ao mesmo tempo que integram o meio biótico, importante conjunto de um meio mais abrangente que é o todo do planeta: o meio ambiente.
Qualquer que seja o caminho que tomemos para essa leitura de ver os peixes como os “moradores” da água, vamos perceber que a importância do binômio recursos hídricos & pesca/aqüicultura é, em princípio, a mesma que é conferida aos outros usos da água em face de seu gerenciamento. Até mesmo por compor esse conjunto dos usos múltiplos, em cujo contexto a igualdade de oportunidade de uso da água constitui um dos princípios de gestão.


FMA – Qual o peso econômico da pesca interior no Brasil?
Garrido – Vamos pelos números da produção bruta. As estatísticas mostram que em 2000, a pesca extrativa continental alcançou duzentas mil toneladas, contra 467 mil toneladas da pesca extrativa marinha. E a aqüicultura de água doce chegou a cerca de 140 mil toneladas. É importante observar que o potencial brasileiro é ainda maior do que esses números. Somente em reservatórios de águas doces, o Brasil tem aproximadamente 5,5 milhões de hectares de espelhos d’água. Esse fator, associado ao clima favorável de nosso território pode levar a uma produção bem superior à que se realiza caso sejam intensificadas algumas medidas políticas de incentivo ao setor.
Para se ter uma idéia do potencial brasileiro, somente os espelhos d’água que acabamos de referir podem propiciar uma produção anual de cerca de dez milhões de toneladas entre pesca e piscicultura.


FMA – Pelo visto, o cultivo de organismos aquáticos tem um significado importante. Qual a trajetória desse setor no Brasil?
Garrido – A aqüicultura é algo recente no Brasil. Começou nos anos trinta e experimentou  um surto de crescimento durante os anos setenta e, efetivamente, se tendo firmado como atividade econômica no curso dos anos noventa. Foi nesse último período que a aqüicultura rompeu o patamar das cem mil toneladas anuais, sobretudo com a produção de tilápias, carpas e algumas espécies de tambaquis, pacus e surubins. Somente essas espécies alcançaram quase 110 mil do total referido de 140 mil toneladas no ano de 2000. O valor da produção em 2001 chegou a US$ 256,8 milhões.
Essa participação na economia brasileira ainda pode aumentar bem mais. Apesar do crescimento das diversas formas de cultivo, ainda há muito por fazer e por conhecer-se. Por exemplo, o conhecimento da diversidade malacológica continental dulcícola ainda é incipiente no Brasil, assim como incipiente também é o aproveitamento das águas interiores para a pesca comercial e mesmo para a pesca esportiva.
(Veja o Quadro abaixo)



Quadro1
Valor da produção
aqüícola brasileira em 2001
Atividade Valor(U$milhões)
Malacocultura     –     12,0
Piscicultura     –     80,0
Carcinocultura     –     160,0
Truticultura     –     4,8
Total     –     256,8
fonte: Ibama/2003.


O crescimento da
pesca esportiva


FMA – E quais são os impactos que mais afetam a pesca nos cursos d’água?
Garrido – São vários, a maior parte exógena, ou seja, impactos não gerados pela atividade da pesca em si, mas por outras ações que vêm de fora do setor. Algumas naturais, outras antrópicas. Alinham-se entre estas últimas as barragens do passado, a degradação das matas ciliares, os herbicidas, pesticidas e outros produtos fitossanitários utilizados na agricultura e na agricultura irrigada, o garimpo, a poluição doméstica e industrial. Como fator antrópico e endógeno está a pesca predatória.
Com todos esses fatores, o gestor de recursos hídricos deve lidar, manter-se atento e buscar formas de desestímulo à prática de ações que produzam esses impactos. Tais formas podem ser constituídas de uma dosagem equilibrada de instrumentos econômicos com campanhas indutoras de uma atitude racional de parte do usuário dos recursos naturais, combinados com a prática permanente de ações de monitoramento e fiscalização.


FMA – Há muitas discussões sobre barragens. Qual a opção mais razoável entre construir barragens e cuidar melhor da pesca em rios e lagos?
Garrido – Como fiz questão de evidenciar, as barragens que não observam os requisitos da vida aquática são as do passado. Hoje constróem-se barragens ambientalmente sustentáveis sob praticamente todos os pontos de vista. A manutenção da biodiversidade, terrestre e aquática, assim como os estoques pesqueiros, estão entre estes pontos de vista.
Com efeito, as barragens construídas há algumas décadas, além de alterarem o regime hidrológico, criavam toda a sorte de dificuldades à piracema e inviabilizavam, em sua grande maioria, as lagoas marginais, berçários naturais da vida aquática. Mas tudo isto sucede em medida bem menor hoje, no Brasil.
Atualmente, há uma grande preocupação com a migração dos peixes, com as planícies ribeirinhas e matas ciliares do entorno do reservatório, além de inúmeros outros fatores não relacionados com a pesca, como a sedimentação, a emissão de gás metano pela putrefação de espécies vegetais submersas, com a hidrologia de jusante, com o reassentamento e tantas outras mais. Aqui mesmo na Folha do Meio Ambiente, por várias vezes, esse tema já foi abordado.


FMA – Alguma sugestão para nossos leitores?
Garrido – Ah, sim! Acho que vale a pena sugerir aos leitores para visitar ou pelo menos procurar conhecer o trabalho de Itaipu Binacional, para ver um exemplo ali implementado. Acho que pioneiro em termos de preservação ambiental. Estou falando do trabalho feito pelo ex-diretor de Itaipu, Gilberto Canali, que concebeu, pôs em prática e aperfeiçoou algumas iniciativas.
O Gilberto Canali se ocupa, atualmente, do Programa Delta América, na Secretaria de Recursos Hídricos do Meio Ambiente. Neste mesmo jornal, na edição 143 (dez/2003) tem uma matéria interessantíssima sobre o “Canal da Piracema – o elo da Vida” que explica o rio artificial de mais de sete quilômetros construído em corredeiras pela Itaipu para ajudar na migração dos peixes e favorecer no fenômeno da piracema.


FMA – E quanto aos demais impactos ambientais?
Garrido – A poluição doméstica e a industrial são conseqüências indesejáveis de dois outros usos da água e que, portanto, devem ser combatidos por meio de um gerenciamento eficiente dos recursos hídricos. Por igual, os aditivos químicos da agricultura devem ter seu uso inibido pela adoção de instrumentos de gestão do uso da água, neste caso atacando-se o problema em sua raiz, isto é, por meio de uma rigorosa fiscalização do receituário agrícola. No que se refere ao garimpo, a proteção do leito dos cursos d’água se impõe como a medida de maior relevância.
Quanto à degradação das matas ciliares, trata-se de um fator importante que cumpre, entre outras, a função de filtro para uma quantidade grande de sólidos que alcançaria o leito dos rios e reservatórios pela erosão. Além disso, contribuem para a formação e manutenção dos refúgios para a reprodução dulciaqüícola, nobre papel das matas ciliares.


FMA – A pesca esportiva é uma atividade em franco crescimento. Como  ela fica nessa agenda?
Garrido – A pesca esportiva é importante como atividade que contribui para alavancar o turismo, pois ela movimenta uma série de outros segmentos da economia, aí incluídos os setores de hotelaria e agências de viagens, de fabricação de equipamentos e instrumentos para a atividade em si, o setor de serviços de recreação e lazer nas coleções d’água e inúmeros outros ramos industriais e comerciais. Este é o papel econômico da pesca esportiva e que estabelece uma relação importante com a gestão dos recursos hídricos.


FMA – O senhor é a favor de que tipo de pesca?
Garrido – Toda atividade humana deve primar pela racionalidade. E na pesca, por misturar necessidade de produção de alimento e lazer, essa racionalidade deve ser bem aprimorada.
Veja o caso do Pantanal, dos grandes rios pesqueiros de Goiás, Tocantins, Pará, Maranhão e de muitos lagos interiores. Evidente que não dá para fazer uma exploração a qualquer custo, em qualquer época e por qualquer meio. Tem-se que respeitar o calendário da piracema, a forma de pescar e o quanto se pode levar. Gosto muito da modalidade “pesque-e-solte”.
Cada pessoa deve levar para casa uma certa quantidade de peixes para saborear junto a família e amigos. Mas as quantidades para esse fim devem ser módicas, pois não se trata de uma atividade comercial, sendo antes voltada para o lazer.
Dessa forma, recomenda-se que os peixes não devolvidos sejam aqueles que ficaram mais feridos pelo equipamento de pesca, além daqueles com tamanho que observe o mínimo de captura estipulado pela legislação, e dos grandes.
As portarias do Ibama estabelecem o critério e os prazos de licenciamento para a pesca. Essas portarias são anuais e podem ser obtidas nas gerências regionais do Ibama, pela internet e nos centros de pesca.


Cuidados com a transposição de bacias
Obedecer o defeso e usar métodos corretos para pescar: eis o segredo da multiplicação dos peixes


FMA – As empresas que têm barragens para outras finalidades estão preocupadas com a pesca?
Garrido – Sim. Muitas delas destacam uma parte de seus orçamentos para desenvolver ações de proteção de espécies aquáticas com risco de desaparecimento. Esta preocupação é bem visível, por exemplo, entre as grandes geradoras de energia elétrica que, entre as medidas de preservação ambiental, cuidam do “repovoamento” de peixes.
Tomemos como exemplo o caso da bacia do rio Paraíba do Sul, que durante os anos cinquenta começou a ver a sua população de piabanha se reduzir rapidamente. As causas foram, além do desmatamento, da poluição e da própria construção de barragens, a introdução do dourado, peixe predador voraz, valente e saltador, que “colocou em seu cardápio” justamente a piabanha.
Destaque-se a ação da Companhia Energética de São Paulo – CESP, que desenvolve há mais de 20 anos a reprodução de espécies na Estação de Hidrobiologia e Aqüicultura, em Paraibuna somente para repovoar reservatórios de suas barragens.
Regularmente são feitas pescas experimentais nos reservatórios com o objetivo de pesquisar o estoque de peixes de determinada família. Quando se observa redução de sua população, programas de peixamento são colocados em prática.


FMA – De que modo o setor de gerenciamento dos recursos hídricos distingue a pesca e aqüicultura?
Garrido – Conforme eu pude comentar no início, a pesca e a aqüicultura não têm sido contempladas com o mesmo destaque com que se distinguem atividades como a geração hidroelétrica, saneamento e outras mais.
Quando se fala, por exemplo, em transposições de bacias e alguém comenta que, ao juntarem-se as águas, comunidades aquáticas que são apresentadas umas às outras podem ser incompatíveis, o comentário imediatamente seguinte é de que essa dificuldade de convivência de espécies aquáticas é, digamos, “o de menos”.
Convenhamos, é minimizar-se um problema que é real e que pode, quando nada, afetar a economia, pois às vezes algumas espécies que vão se juntar a outras podem ser exatamente predadoras e promoverem a extinção dessas outras.


FMA – O Brasil tem valorizado esse setor?
Garrido –  Veja bem, apesar desse tratamento que é dado à questão, podemos reconhecer  que o Brasil tem valorizado o setor de pesca e aqüicultura de águas interiores.
Como exemplos dessa valorização, alinham-se o Decreto 2869, de 9 de dezembro de 1998 e a Instrução Normativa Interministerial no 9, de 11 de abril de 2001, que apoia o setor, abrindo as possibilidades de uso das águas de domínio da União para essas finalidades.
Já a Portaria 30, do Ibama, de junho de 2003, dispõe sobre a pesca esportiva. Nada isto bastasse, a pesca e a aqüicultura têm dois assentos titulares e dois suplentes no Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH: um para a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, e o outro para os setores de pescadores e de usuários da água para as atividades de lazer e turismo.
Além disso, há programas bastante interessantes desenvolvidos por entidades estaduais de pesca como, por exemplo, a Bahia Pesca, pelo Instituto Natureza de Tocantins – Naturatins, pela Embrapa, pelo próprio Ibama.
O importante é promover o equilíbrio e definir práticas inteligentes que respeitem a vulnerabilidade do meio ambiente. Se o homem respeita o defeso para a reprodução das espécies e usa meios adequados para conseguir o pescado, com certeza teremos sempre a multiplicação dos peixes.


FMA – Como é que a pesca e a aqüicultura se integram com os demais usos da água e práticas da gestão de recursos hídricos?
Garrido – A pesca e a aqüicultura se integram a quase todos os usos da água. Na geração hidroelétrica de grande porte, o reservatório formado pode ser uma verdadeira “fábrica” de peixes.
Nos canais de irrigação, é possível promover uma criação intensiva de peixes no trajeto da água para os equipamentos. Ainda na irrigação, o re-uso da água enriquecida de nutrientes e de matéria orgânica advinda da produção biológica nos viveiros é capaz de promover significativa melhoria na eficiência das propriedades rurais. Na indústria pesqueira, o pescado constitui a matéria prima. No lazer e turismo de águas doces, o pescado é o alimento de custo mais baixo e mais sugestivo para os cardápios dos balneários. Em relação ao saneamento, a exigência de águas saudáveis que a pesca e a aqüicultura exercem termina por atuar como fator de barateamento da potabilização da água.
A verdade é que a pesca e a piscicultura são atividades econômicas de grande alcance econômico e social, ao mesmo tempo em que produzem baixo impacto ambiental.
São, também, setores produtivos altamente comprometidos com a qualidade das águas, contribuindo decisivamente para a definição de metas de enquadramento de corpos d’água em classes de usos preponderantes, importante instrumento de gestão dos recursos hídricos e gerando um interesse pelo conhecimento científico da limnologia.


Toda atividade humana deve primar pela racionalidade. E na pesca, por misturar necessidade de produção de alimento e lazer, essa racionalidade deve ser bem aprimorada.


GLOSSÁRIO


ARGAMASSA – Mistura de cimento, areia e água que serve para rejuntar tijolos e revestir superfícies de pisos, paredes e tetos em construções.


CADEIA TRÓFICA – É a cadeia alimentar das espécies vivas, indicando a seqüência de espécies que se alimentam de outras espécies.


CARCINOCULTURA – É o cultivo do camarão em cativeiro.


DEFESO – Período de exclusão de pesca, em observância ao movimento da piracema. Anualmente, o IBAMA edita portarias entre outubro e novembro, definindo o período de “defeso” da piracema.


DULCIAQÜÍCOLA – Relativo à água doce.


LÊNTICO – Regime de águas lentas ou quase paradas, como em lagos. Em oposição às águas lóticas, que são correntes d’água.


LIMNOLOGIA – Ciência da ecologia das águas de rios, lagos, lagoas e lagunas.


MALACOLÓGICO – Relativo a moluscos. A malacofauna é o conjunto de espécies de moluscos de um ecossistema ou região.


PIABANHA – O nome é de origem tupi e significa objeto ou corpo manchado. É um peixe característico do rio Paraíba do Sul e seus afluentes. Pode medir até cinquenta centímetros. Pertence à mesma família, com algumas diferenças, das piabanhas que habitam os rios da Amazônia e da bacia do rio Paraná.


PIRACEMA – É o tempo da reprodução. Processo em que os peixes se dirigem para as nascentes em cardumes para desova e procriação.