Modernidade assassina

Paredes Espelhadas Que Matam

26 de agosto de 2004

As colisões de aves contra as fachadas espelhadas de prédios matam cada vez mais. E as linhas de cerol também


Em São Paulo, Rio e Brasília  foram construídos vários prédios com paredes espelhadas.
No novo prédio da Procuradoria Geral da República muitas aves encontram a morte em pleno vôo, pois as paredes refletem o céu e criam uma ilusão de profundidade


A modernidade pode ser  causa de muitas situações de degradação ambiental. Acrescente a ela o crescimento industrial, a expansão imobiliária, o adensamento urbano e certos casos do comportamento humano. Em Belo Horizonte, duas práticas têm sido responsáveis pela mortandade de aves na área urbana da capital mineira. As belas e modernas paredes espelhadas que passaram a compor fachadas inteiras de prédios nos últimos anos e a irresponsabilidade pelo uso de cerol em linhas que levantam papagaios ou pipas nesta época do ano de céu azul e limpo. Assim, sanhaços, bem-te-vis, pardais, pombas, sabiás, corujas, gaviões, urubus e até aves migratórias se tornam vítimas fáceis dessas armadilhas.


O tucano passa rente a um prédio espelhado, em Belo orizonte. Sua sombra pode até ser confundida com outra ave


A imagem engana
As colisões de aves contra as fachadas espelhadas de prédios matam a maioria dos animais, agravadas pelos efeitos das quedas nas calçadas. A explicação de biólogos é que essas paredes criam uma ilusão de profundidade e levam as aves à colisão em pleno vôo, na maioria dos casos em velocidades significativas para os pássaros. Outra causa pode ser o instinto de convivência em grupo dentro de uma mesma espécie, que os fazem entender como de outros pássaros as próprias imagens refletidas.
Vários prédios espelhados têm surgido no Brasil nos últimos anos. Em Brasília são vários, como a Procuradoria Geral da República e o Corporate Center. Em São Paulo e no Rio de Janeiro também são muitos. E outras capitais, como Belo Horizonte, seguem no mesmo ritmo de construção de prédios espelhados. Um deles, em Beagá construído há cinco anos na esquina das avenidas Bernardo Guimarães e Pasteur, no bairro Santa Efigênia, conseguiu causar a morte de várias aves de espécies diferentes.
?Eu já cheguei a catar onze passarinhos numa manhã só. Todo o dia ainda morre um. Já morreu até um sabiá cantador que vivia por aqui”, diz o lavador de carro Isaias Martins, 40 anos, 11 deles com trabalho em frente ao prédio, aonde no andar térreo funciona a farmácia Vida Natural. Ele destaca as marcas de sangue dos animais na fachada de vidro do edifício e diz que o espelho é uma armadilha para bem-te-vis, beija-flores, sanhaços e rolinhas. – Até mesmo um gato de uma moradora perto daqui chegou a comer alguns dos pássaros caídos, diz ele.
O engenheiro agrônomo Jayme Augusto Pacheco, 50 anos, morador da região, já procurou a Construtora Caparaó, responsável pelo projeto e obra do edifício, para propor uma solução para o problema, mas não passou da recepção. “Em junho do ano passado, comecei a observar sanhaços, sabiás e rolinhas mortos na calçada do prédio e procurei a construtora, mas não fui recebido”, diz ele.
Acredito que a solução ?politicamente correta? é substituir este tipo de vidro por outro sem reflexo. Os novos projetos deveriam aceitar esse material somente a partir das alturas das rotas de vôos dos pássaros ou das copas das árvores, na opinião do agrônomo.


Lavando as mãos
Num primeiro contato por telefone com a Folha do Meio Ambiente, a diretora de Projetos e Planejamento da Construtora Caparaó, Cristina Vale disse que o projeto foi aprovado sem restrições pela prefeitura de Belo Horizonte, mas quando soube da morte de aves, “entramos em contato com órgãos ambientais, que não deram nenhuma resposta”. – Não fizemos nada porque não tínhamos o que fazer, diz ela.
Já num segundo contato, Cristina Vale disse que diretores da construtora receberam a recomendação de técnicos de órgãos ambientais em Belo Horizonte para a colocação, na fachada do prédio, de adesivos com reproduções de animais predadores, como gaviões, para espantar as aves. “Repassamos esta recomendação para o condomínio do edifício, mas nenhuma providência foi tomada”, diz ela, sem saber dizer qual órgão ambiental foi contatado na época.


Cerol, uma navalha na carne
Linhas de cerol atingem crianças, motoqueiros e até inocentes aves no céu


Durante as férias aumentam os casos de acidentes provocados por linhas com cerol que atingem ciclistas e
motoqueiros e, também aves em pleno vôo. Essa manifestação aconteceu em Belo Horizonte


O poder de corte das linhas com cerol é grande e negligenciado pelas autoridades e pelos pais. Em Brasília, no Hospital Sarah Kubitschek, existem crianças tetraplégicas que foram vítimas de linha com cerol. Os motoqueiros são os mais atingidos. No reino animal, as vítimas são as aves. “Em todo o ano de 2003, recebemos 26 aves com os mais diversos tipos de lesões provocadas por cerol. De janeiro a julho de 2004, foram casos isolados, mas dez outros se concentraram no curto período entre o final de junho e o início de julho”, diz o chefe do Núcleo de Fauna do Ibama, em Minas Gerais, o médico veterinário, Daniel Vilela.
Dentre as aves entregues ao Ibama, neste período de férias de 2004, está uma coruja orelhuda, comum em áreas da Mata Atlântica, e ferida com um corte na articulação de uma das asas, o que a impedirá de voar novamente. Gaviões carcará e urubus são outras vítimas, mas muitos casos não chegam ao conhecimento do Ibama, por ocorrerem, em locais ermos, aonde atracam linhas de cerol rompidas das pipas e carregadas pelo vento.
Já os registros do Ibama-MG desde o início do ano, incluem casos de aves feridas em rotas migratórias, na área formada por Belo Horizonte e municípios da Região Metropolitana, como Contagem, Betim e Lagoa Santa. Alguns se ferem por colisão em antenas de televisão e prédios, como foi o caso de uma águia chilena, uma das maiores aves de rapina, com envergadura de 2 metros e altura de 66 centímetros, que vive na região andina do Chile até a Colômbia. Outro, foi a águia pescadora, um animal raro com 57 centímetros de altura e envergadura de 1,5 metro, que chegou ao Ibama “quase morto”, mas, tratado, se recuperou.
A incidência destes acidentes aumenta consideravelmente no período de férias escolares, mas este ano o número chamou a atenção dos técnicos do Ibama. Segundo Vilela, mesmo em agosto, após a volta as aulas, ainda ocorrerão novos registros, devido à grande quantidade de linhas com cerol enroladas na rede elétrica ou em ambientes naturais dos animais.
Os pássaros feridos chegam até o Ibama pelas mãos de policiais florestais ou são recolhidos por técnicos do órgão, a partir de informações da população. Depois de tratados, são reintroduzidos em seus ambientes naturais, de áreas de preservação públicas ou particulares, a cargo de ONGs ou de criadores. (RA)


Alternativas das construtoras para evitar mais mortes


Cristina Vale afirma que outros projetos da Caparaó poderão receber este tipo de material nas fachadas, mas cabe aos órgãos ambientais municipais orientarem as construtoras a adotarem procedimentos técnicos para evitar problemas com as aves.
Em outro prédio do bairro Funcionários, empregados de lojas do andar térreo também já constataram a morte de vários pássaros: “Um dia pela manhã, vi um filhote colorido sangrar na calçada”, disse uma funcionária da AGF Seguros, na avenida Brasil. Já a gerente da Moviflex, Luciana Ribaldo, disse ter visto mortos na calçada, no primeiro semestre deste ano, exemplares de maritacas, pardais, rolinhas e sanhaços.
Um filhote de ‘tucano toco’ morreu ao colidir com a parede espelhada dos fundos do Palácio das Artes, situada dentro do Parque Municipal de Belo Horizonte. “Os ovos foram chocados no teto do próprio Palácio das Artes, mas o filhote não sobreviveu aos primeiros vôos”, diz a bióloga do parque, Andréa Aparecida Paiva de Oliveira.
? Desde dezembro do ano passado, quando iniciei meu trabalho no parque, já observei, além do filhote de tucanos, a morte de vários pássaros, como pombas, periquitos de encontro amarelo e outros, diz ela.
Uma medida já adotada pelos administradores do parque foi o plantio de palmeiras imperiais, espécie com crescimento relativamente rápido, para comporem barreira diante da parede de vidro dos fundos do Palácio das Artes e evitarem a passagem de aves em direção à parede de vidros. Outra iniciativa é a decisão de se buscar outras soluções de curto prazo junto com os diretores da mais tradicional casa de espetáculos de Belo Horizonte.
Segundo a bióloga, a fixação de adesivos com reproduções de aves predadoras pode amenizar, mas não extingue a colisão de aves. “Funciona como um espantalho”. Andréa Oliveira ressalta que esse tipo de problema sempre existiu, pois pássaros podem colidir com paredes totalmente pintadas com tintas de cores claras e com poder de reflexo. Os casos, no entanto, têm aumentado diante da expansão urbana.


Brasília tem lei contra o cerol
Lei do deputado distrital Chico Floresta (PT-DF), que proíbe uso de cerol em pipas (papagaios), é defendida pelo Corpo de Bombeiros.


Silvestre Gorgulho, de Brasília
Em Brasília, o Corpo de Bombeiros desenvolveu, durante todo o mês de julho, atividades para alertar a população sobre os perigos do uso de cerol nas pipas.  Na verdade, explica o deputado Chico Floresta (PT-DF) “o ato de soltar pipa é saudável, mas quando incrementado com cerol na linha, a ação se torna perigosa e até mortal”.  Para fazer o cerol as crianças misturam cola de madeira com vidro ou mármore moído. O produto é passado na linha da pipa para reforçá-la, tornando-a cortante. É uma verdadeira navalha. E justamente aí que está o perigo, pois feito para cortar a linha de outros soltadores de pipa, acaba por atingir motoqueiros e quem anda em carrocerias de carro. Muitos acidentes são fatais por atingirem o pescoço.
Na tentativa de evitar mais mortes, o deputado distrital Chico Floresta apresentou projeto de lei que proíbe soltar pipas usando linha com cerol. A Câmara aprovou-o, transformando em Lei.


foto: Deputado Chico Floresta: cerol na linha da pipa é uma brincadeira perigosa que pode ser mortal


Acidentes
Um dos incidentes mais graves registrados pela Polícia Militar do DF  teve como causa uma linha com cerol. Três oficiais da corporação morreram durante um vôo de treinamento sobre a Candangolândia, no dia 21 de fevereiro de 1997. De acordo com o laudo do Instituto de Criminalística, da Polícia Civil, a corda presa no helicóptero que sustentava os policiais, foi cortada por uma linha com cerol. Ficou comprovado que o impacto com a linha resultou no corte da corda.
 No dia 24 de janeiro de 2002, no Gama, cidade satélite do DF, um menino de quatro anos morreu depois de ter a garganta cortada por uma linha de pipa reforçada com a mistura. O menino estava sentado em sua bicicleta, parado e com as mãos sobre o guidom, o fio passou como uma navalha pelo lado esquerdo de seu pescoço e cortou a pele e rompeu a veia jugular, principal vaso que conduz o sangue da cabeça para o coração. Uma hemorragia na jugular, dependendo da profundidade do corte e da quantidade de sangue perdido, pode causar a morte de uma pessoa em  poucos minutos.
A incidência é tão grande, que, neste mesmo dia, poucas horas depois, em Samambaia-DF, um garoto de seis anos ficou gravemente ferido, após levar um choque de 3.800 volts quando tentava retirar a pipa de um poste. O menino acabou caindo de um prédio em construção.