Às margens do Velho Chico cerrado vira carvão ou pastagem
20 de outubro de 2004Foto: Já sem mata ciliar, a PMFlor-MG flagra construção de dique paralelo ao rio para secar lagoa Nem o tempo e nem o rio podem parar… Nossa expedição “a la Fitzcarraldo” continua em meio às dificuldades de toda ordem para colocar e retirar o pesado barco do rio. Já navegamos 370km. Depois da partida em… Ver artigo
Foto: Já sem mata ciliar, a PMFlor-MG flagra construção de dique paralelo ao rio para secar lagoa
Nem o tempo e nem o rio podem parar… Nossa expedição “a la Fitzcarraldo” continua em meio às dificuldades de toda ordem para colocar e retirar o pesado barco do rio. Já navegamos 370km. Depois da partida em Iguatama-MG e das audiências públicas nas cidades acima de Três Marias, a expedição seguiu para Pirapora, onde começa o médio São Francisco. Ficaram para trás a paisagem palmeriana¹ das cabeceiras e serranias. Enquanto a barca era trasladada por terra e a equipe completa seguia em ônibus, Enio e Geraldo desceram o rio de Três Marias a Pirapora em voadeira com operador do Ibama. Assim, nenhum trecho dos 2.863km do rio ficou sem cobertura, o “Caminho do São Francisco”, quiçá uma futura hidrovia ecoturística.
Em Pirapora, ficamos dois dias sob chuva. Uma jornalista do jornal “A Semana” disse que “essa foi a expedição mais ruidosa jamais passada por ali”. Visitamos a típica “gaiola” Benjamin Guimarães, o projeto de irrigação da Codevasf hoje privatizado e Pacopaco/MST. Todos sentimos a grande revolta dos ambientalistas em várias reuniões técnicas. Em Três Marias, chamam o Cerrado de “mãe das águas”. Até mesmo o oásis das veredas com seus imponentes buritis, o mais elegante ecossistema brasileiro, vem sendo destruído irremediavelmente. As carvoarias prosperam, com o franco mercado aberto pelas siderúrgicas. E nossos olhos vão assistindo a uma transformação doentia no curso médio do rio São Francisco, margens esquerda e direita, até Barreiras, na Bahia: o Cerrado ou vai virando carvão, ou pastagem, ou soja, ou reflorestamento de eucalipto… Uma tristeza! A agricultura irrigada racional seria a melhor solução, dada a sua elevada produtividade e valor agregado em grãos e frutas em áreas concentradas com 2-3 safras anuais.
Foto:Expedicionários: geólogo Sérgio Rocha/Ibama, engenheiro agrônomo Geraldo Gentil/Codevasf, deputado federal João Leão e a advodada e coordenadora Niude Espírito Santo, a bordo do PIPES, entre Barra e Xique-Xique.
Saímos bastante cedo com destino a Januária. Mais 250km. Agora estamos no mundo rosiano² do Cerrado. Já, na Bahia, ganharemos a paisagem euclidiana³ da Caatinga típica. Ao amigo leitor que vem acompanhando esta expedição, podemos confessar sem medo de errar: ela parece mais uma peregrinação. Desde as nascentes, vamos debatendo, escrevendo e vivendo essa saga de questionamento ambiental, de potencialidades ecoturísticas e, que pena, de destruição sem dó nem piedade dos fantásticos recursos naturais que outrora marcaram as duas margens do Velho Chico. Calderón diz ao passar por Barra do Rio das Velhas que as garrafas PET são “os olhos raivosos do rio poluído que nos observam”. Niude Espírito Santo, da PIPES, é a incansável “expedicionária”, competente advogada e… cozinheira de bordo, junto com o agrônomo Sérgio Ferreira.
Desde a largada nas cabeceiras estamos georreferenciando as degradações: fim das matas ciliares, das lagoas marginais, barrancos desnudos, pontes do bagaço, desvio do rio, ilhas, bancos de areia, esgotos, lixões nas margens, queimadas e desmatamentos que bordejam as águas, redes e espinhéis. Apenas o que nossa vista alcança. Se entrarmos um pouquinho mais sertão adentro, a destruição é maior…
Atracamos em São Francisco, mas a equipe técnica seguiu de carro na noite fechada para a audiência pública em Januária, no hotel-escola do Sesc, coordenada pelo padre Neri. Lá recebemos a dura “Carta de Januária”. Pena que as belas praias brancas já estavam encobertas pela cheia. Chovia sem parar…
Em Itacarambi, a festa foi da juventude: a comunidade plantou junto ao cais dezenas de mudas de árvores ornamentais, apresentando ainda danças com temas ambientais. Visitamos o PN Cavernas do Peruaçu (próximo à RI Xacriabá) e o Projeto Jaíba na margem oposta. O Ibama está fazendo o plano de manejo do belíssimo parque, que visitamos com licença especial. Avistamos a seicentista igreja de Matias Cardoso e Manga.
Mais abaixo pernoitamos em Carinhanha. Sorria: Bahia à vista! Na audiência pública ficou caracterizada a gravidade do desmatamento e carvoejamento na região, sem nenhuma fiscalização e a ausência do poder dos órgãos ambientais. Apenas Barreiras cobre todo o Além São Francisco.
Chegamos enfim a uma das capitais do turismo religioso: Bom Jesus da Lapa, onde ocorreu uma grande audiência com autoridades e populares no auditório da 2ªSR/Codevasf. Ficou caracterizada a necessidade urgente da revitalização com ações diretas em prol da bacia. No dia seguinte, em Barra dos Barões, outra audiência pública de peso. Pernoitamos em Ibotirama a meio caminho e… para surpresa geral, uma árvore inteira caiu len-ta-men-te nas águas, como que a denunciar aos olhos dos expedicionários os 500 anos de exploração pela exploração.
Visitamos oficinas de artesanato em argila (os designers e artesãos Luiz Pinto e Rita Venturin acompanham a expedição), os Brejos (veredas) e as Dunas Continentais onde foi rodado o filme “Abril Despedaçado”.
As audiências públicas
Foto: Em todas as cidades ribeirinhas a população recebia até com euforia a expedição Américo Vespúcio. Como em Xique-Xique-BA
Grandes audiências públicas ocorreram em Xique-Xique, já no remanso de Sobradinho, assim como em Juazeiro, Petrolina, Propriá e Penedo, com maciça presença de autoridades e populares. São unânimes as reivindicações a favor da revitalização urgente da bacia, a salvaguarda dos índios, dos pescadores tradicionais e dos peixes autóctones, a melhoria da operação das barragens de Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó. Querem prioridade para aumentar a área irrigada e para assentamentos do MST. Também criação de unidades de conservação e muita educação ambiental.
Visitamos ainda sítios interessantes: a igreja de Santana do Miradouro, a grande lagoa de Itaparica e Vila Santo Inácio, em Gentio do Ouro, já na Chapada Diamantina, com a passagem emocionante na eclusa de Sobradinho. Mais abaixo, visitamos projetos de uva em Petrolina e Juazeiro, cujo circuito começa em Pirapora. Inesquecíveis foram Helen e seu grupo de dança, em Paulo Afonso, os passeios no lago de Xingó, a cavalhada em Canindé e Piranhas. Até Penedo, Piaçabuçu e farol do Cabeço no Atlântico foram mais dois dias de emoções. Chegamos ao mar. Rendemos nossos tributos à empresa PIPES de Navegação, de Carolina-MA, na pessoa do senhor Pedro Iran Pereira Espírito Santo e da doutora Niude, extensivos aos tripulantes João Murilo, Aldenor e Marcelo da Scania. Expedicionários e participantes das audiências públicas participaram de uma história de vida e de construção de um Brasil melhor, socialmente justo e ecologicamente correto. Que haja progresso, mas sem tanta agressão socioambiental!
¹Referente a Mário Palmério (1916-1996), educador, político e romancista nascido em Monte Carmelo (MG); escreveu Vila dos confins, Chapadão do bugre, O morro das sete voltas (inédito).
²Referente a João Guimarães Rosa (1908-1967), médico, diplomata e escritor natural de Cordisburgo (MG), autor de Sagarana, Corpo de baile, Grande Sertão Veredas, dentre outros.
³Referente a Euclides da Cunha (1886-1909), engenheiro, escritor e ensaísta, nascido em Cantagalo (RJ), autor de Os Sertões, sua obra prima.
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