Recursos Hídricos

A água, a recreação, o lazer e o turismo

10 de dezembro de 2004

A indústria do turismo movimenta hoje nada menos do que 3,5 trilhões de dólares por ano. Em 1990, esta cifra era de 2,2 trilhões anuais, ou seja, cresceu 60% em uma só década


O prof. Raymundo Garrido: ?Entre os usos múltiplos da água está a recreação, o lazer e o turismo?


Folha do Meio – O turismo deve mesmo estar inserido na agenda da gestão dos recursos hídricos?
Raymundo Garrido – Evidente! Em primeiro lugar, pela importância do turismo como atividade econômica, geradora de emprego, renda e arrecadação.
A indústria do turismo movimenta, à escala mundial, nada menos do que 3,5 trilhões de dólares por ano e esta cifra era de apenas 2,2 trilhões anuais no início da década de 90. Ou seja, cresceu 60% em uma só década.
No Brasil, somente entre 1997 e 1998, o crescimento foi de 41%. Não pode ser desprezado. E a água desempenha um papel importantíssimo nesse contexto, porque o turismo, tanto quanto as atividades recreativas e o lazer estão, na maior parte das vezes, associados à água. E tanto faz no frio como no calor, se bem que no calor a demanda pela água seja muito maior. É que, nas férias, as populações logo procuram as praias, os lagos, as quedas d’água e as estâncias hidrominerais, como opções de primeira hora.
Daí porque é importante levar em conta não apenas o turismo, mas também a recreação e o lazer no planejamento e na gestão do uso dos corpos d’água.


FMA – E no Brasil, essas atividades estão consideradas na gestão dos recursos hídricos?
Garrido – Definitivamente, sim. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH tem, entre seus membros, o Ministério do Turismo. Portanto o turismo se faz presente nas definições da mais alta envergadura no seio da política hídrica brasileira.
Seria bom que também a Embratur tivesse uma cadeira nesse Conselho. Aliás, como sucede com outras áreas ministeriais que têm dois ou até mesmo três assentos.


FMA – No Brasil, os planejamentos e gestões de bacias hidrográficas conseguem incorporar diretrizes que levem em conta a recreação, o lazer e o turismo?
Garrido – Bem menos do que deveria, mas conseguem. Vários planos de recursos hídricos das diversas bacias trazem essas diretrizes. Veja, como exemplos desse tipo de preocupação, a gestão de lagos naturais ou de barragens para pedalinhos, velas, canoagem, remo, esqui, jet-esqui, pesca esportiva e campings marginais.
Vale lembrar que o ecoturismo começou a ser discutido no Brasil há quase vinte anos, durante o Governo Sarney, em 1985, quando foi criada a Comissão Técnica Nacional para essa finalidade, formada pelo Ibama e pela Embratur.


FMA – O caso do Lago Paranoá, em Brasília, é um bom exemplo…
Garrido – Claro! O Lago Paranoá tem mais de uma dezena de potencialidades para a recreação e lazer e sequer a metade está sendo explorada. Com poucos estímulos, esse bonito espelho d’água pode atender a muitas demandas da população, porque ainda é limitado o uso que se faz do Paranoá no que se refere a recreação e ao lazer.
Para começar, a existência de tantos clubes marginais ao lago é parte expressiva de um desses potenciais. Práticas desportivas associadas a práticas conservacionistas do uso da água e a difusão de esportes náuticos entre os associados é uma medida que já deveria estar colhendo frutos.
Além disso, o incentivo à pesca esportiva, tanto quanto a implantação de marinas públicas, a revitalização da ciclovia, a criação e construção de parques marginais e um consistente programa de popularização de esportes náuticos fazem parte de um conjunto de ações que poriam em relevo o sentido econômico do uso dessa graciosa curva do lago Paranoá.
O tema deveria estar, inclusive, no debate do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mediante a adoção do Lago Paranoá, que poderia constituir um exemplo de projeto demonstrativo para todo o Brasil: o Projeto Piloto Paranoá – PPP, que logo seria imitado em várias regiões do País e certamente iria vingar antes das PPP (Parcerias Público-Privadas) da economia.


O Lago Paranoá é um bom
exemplo, pois tem mais de uma
dezena de potencialidades para a recreação e lazer e sequer a metade está sendo explorada


Todo problema é gerado na falta de saneamento


FMA – Além da participação do Ministério do Turismo no CNRH e da inclusão do tema nos planos diretores, que outros elementos são indicativos da inclusão do lazer e turismo na agenda dos recursos hídricos?
Garrido – Um dado importante: o aspecto mais relevante a ser considerado no tema da água para recreação, lazer e turismo é o da qualidade da água. Água poluída, até mesmo mal-tratada só faz afugentar os usuários. Em vez de proporcionar vida e prazer só provoca doença e morte. Nesse contexto, é importante assinalar que desde 1986 a legislação se ocupou do tema, ao incluir em determinadas classes entre as que se definiram para a qualidade da água, a finalidade da recreação. Note que a Resolução Conama 20/86, que dispõe sobre o enquadramento dos corpos d’água, indica que as águas das classes 1 e 2 devem ser adequadas para a recreação de contato primário, ou seja, para natação, esqui aquático e mergulho. Essa determinação do Conselho Nacional de Meio Ambiente dá pistas importantes em termos de custo do gerenciamento de recursos hídricos, pois o curso d’água ou lago terá que alcançar uma das duas classes, 1 ou 2, para estar em condições de acolher atividades recreativas de contato primário com a água.


FMA – Vamos pensar na água como um bem econômico: para que os lagos, os rios ou as barragens se tornem mais adequados ao lazer e ao turismo é preciso fazer alguns investimentos. Assim essa água terá mais valor e seu uso será mais caro…
Garrido – Exatamente. Se determinado trecho de uma bacia hidrográfica reunir as principais condições para atividades recreativas de contato primário, por exemplo, exceto a condição da qualidade adequada para tais atividades, então os investimentos a serem feitos para que esse trecho de bacia evolua para a classe desejada deverão fazer parte do plano da bacia, e repercutirão, conseqüentemente, sobre a cobrança pelo uso da água, a ser paga pelos usuários-pagadores. Entretanto, se o acréscimo no preço que estiver sendo cobrado pelo uso da água for excessivo, o conjunto dos usuários-pagadores não poderá arcar isoladamente com esse programa de melhora de qualidade. Essa circunstância reflete um entre os vários casos em que o planejamento da bacia dá indicações para um ou mais campos das políticas públicas setoriais, convidando-o a avaliar a situação e contribuindo, se concordar e na medida do possível, com os recursos financeiros necessários à transformação da qualidade das águas da bacia para que estas alcancem a classe indicada como apta a receber atividades recreativas de contato primário.


FMA – Se a gestão de recursos hídricos é impotante para o turismo, podemos dizer também o contrário, ou seja, o turismo é importante para a gestão de recursos hídricos?
Garrido – É muito importante. Mas há algumas particularidades. O turismo preenche uma importante lacuna no contexto dos usos múltiplos, constituindo uma atividade sofisticada que entra na disputa pela água com outras atividades menos delicadas como a mineração e certos setores industriais. Adicionalmente, uma das particularidades do turismo é, por exemplo, a sazonalidade.
Vejamos um exemplo em que o turismo afeta a gestão dos recursos hídricos. No litoral paranaense há uma pequena localidade denominada Vila Encantada que é banhada por alguns córregos de pequeno calibre. O rio da Ponte é o mais notável desses pequenos cursos d’água. Durante o verão, a população da Vila Encantada mais do que triplica. Sem saneamento adequado, todo esgoto vai acabar nos corpos d?água. Assim,  amostras de água desse córrego acusam um crescimento da quantidade de DBO5, de cerca de 3,00 mg/litro para aproximadamente 16,00 mg/litro. Conseqüência: uma indesejável poluição nessa pequena bacia acaba por prejudicar o próprio turismo, uma atividade econômica que gera renda e emprego na região.


FMA – Ou seja, todo o problema tem uma causa: falta de saneamento. Falta de uma estação de tratamento…
Garrido – É lógico! Todo o problema está aí. A falta de uma planta depuradora de esgotos urbanos faz desse caso um exemplo muito comum no Brasil, ou seja, o setor saneamento gera dificuldades para outros setores da economia.
Se a empresa de saneamento do Paraná – Sanepar captasse água no rio da Ponte para abastecimento humano ou para a potabilização, os custos desse tratamento também seriam muito mais elevados na alta estação. Conclusão óbvia: o saneamento é uma vítima reflexiva de sua própria falta de ação.
FMA – São muitas as situações dessa natureza no Brasil?
Garrido – São muitas. Infelizmente, muito mais que se pensa. Basta lembrar que a cobertura dos serviços de tratamento de efluentes urbanos em zonas urbanas brasileiras não supera a 25%, ou seja três quartas partes das cidades estão sem esse tratamento. Portanto, descartam substâncias nocivas nos cursos d’água. Aí, quando uma cidade tem potencial turístico, o quadro se agrava.
Na verdade, isto ocorre por todo o Brasil, refletindo situações em que a falta de saneamento prejudica tanto o turismo como a gestão dos recursos hídricos. Cidades históricas, balneários como São Lourenço, no Sul de Minas, e até cidades pantaneiras como Bonito e Bodoquena, ambas no Mato Grosso do Sul, recebem um fluxo turístico significativo em determinado período do ano. São Lourenço que tem pouco mais de 35 mil habitantes, chega nas férias vai para mais de 90 mil habitantes. Bonito com cerca de 17 mil habitantes permanentes, tem sua população aumentada em quatro vezes durante a alta estação. Tudo isso significa um aumento indesejável poluição dos corpos d’água.
FMA – Que outras atividades turísticas e de recreação guardam relação direta com o gerenciamento hídrico?
Garrido – São várias. Onde não há água boa, não há turismo. O setor hoteleiro, os bares e restaurantes todos dependem muito dos recursos hídricos. Senão vejamos: a água de abastecimento deve ser obtida facilmente. Hotéis precisam fazer grandes reservas de água potável para as contingências como, por exemplo, um colapso de rede, ou a necessidade súbita de esvaziar e reencher piscinas. Os países mais desenvolvidos em turismo recebem mais do que sua população por ano em número de turistas. Isto ocorre com a França, com 70 milhões de turistas por ano, e a Espanha com pouco mais de 40 milhões.
A verdade é que o Brasil, ao contrário, não explora o seu riquíssimo potencial turístico. E olha que o turismo é uma tremenda rubrica de exportação. A chamada indústria sem chaminés. Na medida que turistas vão aumentando em número, o número de leitos precisa ser incrementado e a preocupação com o abastecimento d’água vem a reboque desse número.
A questão, neste caso, não é quantitativa, pois o Brasil é detentor da trama hídrica superficial mais potente do mundo, além de a natureza ter armazenado cerca de 112 km3 de águas subterrâneas em seu território. Só essa quantidade de água dos lençóis subterrâneos, se não houvesse qualquer renovação, abasteceria a população brasileira, de 184 milhões de pessoas, durante quase dez anos.
O problema é, antes, o de poder-se dispor de mananciais de boa qualidade em todo o território nacional, mas em particular onde o lazer e o turismo se apresentarem com vocação importante das bacias brasileiras.
Água para o abastecimento da rede hoteleira, para a recreação de contato primário, para a estética paisagística, enfim, água como instrumento de lazer e de atração do turista.


Um dado
importante: o aspecto mais
relevante a ser considerado no
tema da água para recreação, lazer e turismo é o da
qualidade da água.


A falta de uma planta depuradora de esgotos urbanos, no Brasil, faz com que o setor do saneamento gere
dificuldades para outros setores da economia.


O turismo e o lazer guardam estreita relação  com
os vários usos da água


foto: Rui Faquini


O Lago Paranoá, em Brasília, é um bom exemplo de boa gestão


FMA – Qual o papel das estâncias de águas minerais no contexto das atividades de lazer e turismo?
Garrido – As estâncias hidrominerais são municípios com características climáticas bem determinadas e dotadas de fontes naturais de águas minerais medicinais. Podem ter também águas termais, vapor ou lama. Todas essas alternativas são apoiadas por complexos hoteleiros e outros equipamentos turísticos. São águas especialíssimas usadas para tratamento terapêutico ou atividades físicas.
Entre as mais famosas do Brasil, são as estâncias hidrominerais de São Lourenço, Lambari, Caxambu e Cambuquira. A cura de certas enfermidades pela água mineral, dita crenoterapia, resulta da ocorrência de determinados elementos ou substâncias químicas nas águas minerais, as quais vão suprir deficiências do organismo. Por exemplo, as águas carbogasosas contêm, entre outros, ferro, magnésio e lítio, elementos que, ingeridos com a água, vão preencher a falta que fazem no organismo das pessoas, suprindo deficiências orgânicas e contribuindo para a cura de determinadas enfermidades.
A importância para a gestão dos recursos hídricos está em que os mananciais de águas minerais reclamam cuidados de preservação maiores, sobretudo nos dias de hoje, quando os tecidos urbanos se têm expandido de modo significativo e os equipamentos e obras de infraestrutura para o saneamento não acompanham esse crescimento demográfico, conforme já comentamos.


FMA – Existe caso em que o setor lazer e turismo levou a melhor em relação a algum outro uso da água?
Garrido – Afortunadamente, o lazer e turismo guarda relação de complementaridade com vários usos da água. A geração hidroelétrica de porte forma espelhos d’água que são verdadeiras estações balneárias, clubes sociais e esportivos, atividades inerentes ao lazer e turismo. Mas há regiões do Brasil onde cada real empregado em turismo é capaz de promover um retorno maior do que em outras atividades usuárias da água.
A Chapada Diamantina, na Bahia, com densidade populacional pouco significativa, muito proveito pode extrair das águas do Alto-Paraguaçu em favor do turismo, apesar de contar com solos de boa aptidão para o cultivo, e de dispor de quedas d’água propícias à produção energética. A barragem do Apertado, nessa região, construída pelo governo baiano na segunda metade dos anos 90, foi concebida para a irrigação no entorno do município de Mucugê, mas não deixou de aumentar o potencial para o turismo da Chapada baseado em águas doces. Do mesmo modo que nessa região da Bahia, muitos outros sítios dotados de potencial para o lazer e turismo existem no imenso território brasileiro.


FMA – O Brasil tem um vasto litoral. Mas tem também um fantástico potencial de águas interiores de rios e lagos. Não é incrível que as praias litorâneas, ou seja, as águas salgadas sejam muito mais utilizadas para recreação, lazer e turismo?
Garrido  – De fato é incrível! Tudo isso é uma decorrência da forma como a população brasileira se concentrou mais no litoral e menos nas zonas interiores. O turismo brasileiro sempre pareceu um caranguejo grudado no litoral. E aqui temos que mais uma vez render homenagens a Juscelino Kubitschek que, ao construir Brasília, há 43 anos, interiorizou o desenvolvimento. Ocupou o Cerrado, expandiu a fronteira agrícola, fez aeroportos e possibilitou a criação de infraestrutura de energia e estradas no Brasil Central.
Mas é importante observar que o território brasileiro tem uma dimensão de profundidade bastante significativa quando comparada com o comprimento de seu litoral, diferentemente do que se passa, por exemplo, com o território chileno, que tem uma longa costa e uma pequena dimensão de profundidade.
No caso brasileiro, essa relação mostra que há uma malha hidrográfica muito extensa, do que decorre um potencial imenso de ofertas de oportunidades para recreação, lazer e turismo em águas doces.


FMA – Quanto o Brasil tem de vias navegáveis?
Garrido – Só de vias navegáveis, o Brasil tem mais ou menos 43 mil quilômetros, enquanto que o seu litoral tem uma extensão de cerca de 12 mil quilômetros, aí consideradas as reentrâncias e saliências.
Isto significa que se a população brasileira estivesse uniformemente distribuída no espaço físico, o que vem ocorrendo por meio da interiorização do desenvolvimento a partir da década de 60, certamente as ofertas de oportunidades de lazer e turismo em águas doces seriam imensamente superiores em número àquelas do litoral.
Mas o que é verdadeiramente importante considerar é que a trama fluvial brasileira está muito pouco explorada por essas atividades, daí porque se deve considerar que o lazer e turismo ainda espera muito do gerenciamento hídrico brasileiro.


A trama fluvial brasileira está
muito pouco
explorada, daí porque se deve considerar que o setor lazer e turismo ainda espera muito da gestão hídrica.


GLOSSÁRIO


DBO5  – DEMANDA BIOQUÍMICA DE OXIGÊNIO – Indicador da quantidade de oxigênio dissolvida na água e utilizada pelos
microorganismos na oxidação bioquímica da matéria orgânica. É o parâmetro mais empregado para medir a poluição de
efluentes, normalmente feita depois de cinco dias de produzidos, daí porque a indicação DBO5.