Revitalização ou Transposição

Transposição: o debate fica mais quente

10 de dezembro de 2004

“Transposição de água para consumo econômico, não! A região de Pirapora-MG e parte do Jequitinhonha é semi-árida e sofre os mesmos graves problemas do Nordeste?.

O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentado de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, afirma não concordar que o projeto destine água para o consumo econômio, pois existe uma série de prioridades na bacia do São Francisco, desde o atendimento às populações rurais, abastecidas de água por carros pipas; o tratamento de esgoto, a disposição final do lixo e as obras paralisadas de irrigação, que somam 180 mil hectares de projetos inacabados. “A maior prioridade está na revitalização de toda a bacia do rio São Francisco e a transposição somente se justifica, caso comprovada a absoluta necessidade de transferência de água para o abastecimento humano no Nordeste do país”.
De acordo com Carvalho, o ponto chave da discussão sobre o projeto de transposição é saber se existe mesmo a necessidade de se fazer este grande investimento, sem se atender às necessidades da população de mais de 14 milhões de pessoas que moram e trabalham em 504 municípios da área da bacia hidrográfica do São Francisco.


Do fim para o começo
“A transposição é polêmica porque começa do fim para o princípio. Em todos os países que implantaram projetos semelhantes, os primeiros passos foram no sentido de voltar para a preparação das áreas doadoras e receptoras. Somente numa segunda fase, foram feitas as obras para a transferência de água. O projeto do governo Federal propõe o contrário”, diz José Carlos Carvalho.
Segundo o presidente do Comitê da Bacia, o Semi-árido nordestino possui diversos açudes e represas ativos, que poderão suprir as necessidades de água da região. “O que existe é subutilização destas fontes, porque não existe sistema de transporte de água dos locais de armazenamento”. 
Já o assessor Geraldo Santos diz que a precipitação média é de 700 mm/ano no Semi-árido nordestino, suficiente para atender à demanda da população e que o gargalo está na timidez da rede de distribuição. “As grandes cidades continuarão a ser abastecidas como hoje, mas os 47,6% da população total, que está na área rural “vão ficar na saudade”, porque não existe condição de se abrir tão extensa rede de canais até os pontos de consumo rural dos estados nordestinos. É simplesmente anti-econômico.
O ex-ministro José Carlos Carvalho ressalta ainda que a região abaixo de Pirapora, em Minas, é semi-árida e, por isto, sofre os mesmos graves problemas do Nordeste brasileiro. “Mas, pelo projeto, será somente área doadora e não receptora de água. Uma situação que só vai agravar ainda mais o quadro de acesso à água em pontos dentro da própria bacia, em Minas e na Bahia”.
Assim, explica Geraldo Santos “seria no mínimo razoável que iguais recursos da transposição fossem aplicados em benefício da população desta região que luta contra a seca na própria bacia do São Francisco e não investidos em grandes projetos econômicos”.


Encontros e rejeição
O Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco é formado por 60 representantes dos seis governos dos estados banhados pelo ‘Velho Chico’, mais o Distrito Federal, que compõe a bacia; de indústrias, empresas de mineração, irrigação, agropecuária, hidroviária, turismo e lazer, hidroeletricidade e organizações civis, como associações de classe, indígenas e dos governos federal, estaduais e municipais.
Para discutir o projeto de transposição, o comitê realizou, em outubro, cinco audiências públicas: duas em Minas e uma em cada um dos estados de Pernambuco, Bahia e Sergipe. Em apenas uma delas houve a ressalva para permitir o uso humano e animal da água transferida. Nas demais, o projeto foi radicalmente rejeitado, diante do entendimento de má administração da água no Nordeste. “A plenária do Comitê, realizada em Salvador, nos dias 26 e 27 de outubro, reiterou a decisão das consultas públicas de somente concordar com transposições, caso seja comprovada a necessidade de levar água da bacia do São Francisco apenas para abastecimento humano. No caso do projeto de transposição proposto pelo governo federal há uma distorção: o projeto está superdimensionado e, evidente, ele vai muito além do simples abastecimento humano e animal”, diz Geraldo Santos.
“Como previmos, na última reunião do Conselho Nacional de Recursos Hídricos o trem pegou fogo”, lembrou uma combativa ambientalista mineira.


Liminar cancela primeiras audiências
A discussão do RIMA deveria se dar em nove audiências públicas. A primeira em Salvador, dia 6 de dezembro, e no dia seguinte, a segunda, em Belo Horizonte. Ambas foram canceladas por decisão da Justiça de Salvador.  O juiz da 7a Vara Federal de Salvador, João Batista de Castro Júnior, em um despacho de nove páginas, tomou a decisão em caráter liminar de suspender o licenciamento ambiental e a contratação de obras do projeto da transposição.
O cancelamento das duas primeiras e decisivas audiências públicas significou uma segunda e forte derrota do governo federal. A primeira derrota foi no dia 30 de novembro quando a Justiça embargou, ao vivo, na sede do Ibama em Brasília, a reunião extraordinária do Conselho Nacional de Recursos Hídricos Hídricos que estava preparada para autorizar a transposição de bacias. (Ver página 11)
Hoje ninguém sabe se acontecerá a última audiência prevista, em Salgueiro, Pernambuco, dia 20 de dezembro.
Mais um alerta que faz o assessor do Comitê, Geraldo Santos para um jogo que pode ser de carta marcada: ?O problema é que o Ibama é órgão Federal; a empresa encarregada do RIMA foi contratada pelo governo federal, que é o autor do projeto de transposição?.
O Ministério Público, por meio da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio São Francisco, está prestes a concluir os estudos técnicos do RIMA. “Queremos tomar uma posição essencialmente técnica a respeito do projeto e evitar posições pessoais ou políticas”, diz o coordenador da promotoria em Minas Gerais, Luciano Badini Martins.
O promotor ressalta que, para conseguir uma análise e conclusões técnicas, o MP estruturou uma equipe multidisciplinar de profissionais de diversas áreas, como biólogos e engenheiros. ?É uma obra de grande porte. Temos que ter confiança nos estudos para concordar, apresentar sugestões ou até mesmo rejeitar  o projeto?.


“A maior prioridade está na revitalização de toda a bacia do São Francisco. A transposição somente se justifica, caso comprovada a absoluta necessidade de água para o abastecimento humano”.
José Carlos Carvalho, Secretário do Meio Ambiente de MG e
presidente do Comitê da Bacia do rio São Francisco


Justiça põe água na transposição
Para integrantes do Ministério Público Federal que entraram com mandado de segurança contra a
votação do projeto de transposição, o assunto ainda precisa ser mais debatido


Fotos: Pela primeira vez na história recente do Brasil, um Conselho Nacional (CNRH) teve uma participação popular tão forte. ?É a cidadania que renasce?, dizia um dirigente do Projeto Manuelzão, ao colocar suas
faixas na entrada do auditório do Ibama, em Brasília.


A aprovação pelo CNRH seria o primeiro passo concreto para iniciar as obras da transposição. O governo federal reservou R$ 1,07 bilhão no orçamento de 2005 para o projeto.  A reunião do CNRH estava marcada para as 9h do dia 30 de novembro. Assim que a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, chegou ao auditório do Ibama, foi informada por oficiais de Justiça da decisão da juíza substituta da 16ª Vara Federal de Brasília, Iolete Maria Fialho de Oliveira. A ministra e uma equipe de advogados do governo ficaram reunidos por mais de duas horas para decidir os procedimentos a serem adotados diante da liminar. Foi feito um comunicado lido pelo secretário de Recursos Hídricos do MMA, João Bosco Senra. Como a reunião estava muito concorrida, com ambientalistas e caravanas de cidades ribeirinhas do São Francisco, o ambiente acabou por proporcionar várias manifestações contra o projeto de transposição.


CNBB e a transposição


 O padre Janison de Sá leu a mensagem da Regional 3 da CNBB na qual os Bispos da região dizem esperar que “a sociedade civil possa ter todas as informações
relativas ao assunto,
discutí-lo amplamente e livremente emitir o seu parecer. E que as
autoridades constituídas, respeitando este parecer, procurem o que
realmente possa servir àqueles que sofrem
desde há muito.”


Ponto de Vista


Transposição de interesses


Ao colocar na pauta do CNRH, em regime de urgência, a aprovação do Projeto de Transposição do rio São Francisco, o governo, pelo Ministério de Integração Nacional, deu oportunidade de promover a mobilização da sociedade civil para uma discussão sobre o fortalecimento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Nesse sentido, não se discute a competência do CNRH para avaliar o projeto da transposição. O que se discute é a forma como uma questão tão relevante vem sendo encaminhada. Qualquer Resolução do CNRH, em tramitação normal, ao contrário da tramitação em regime de urgência, é antes submetida à análise das Câmaras Técnicas especializadas. Por quê? Simples. Primeiro porque essas Câmaras são formadas por especialistas. Todos representam o poder público e a sociedade civil organizada voltados para o gerenciamento dos recursos hídricos e usuários da água. Segundo, porque as Câmaras apreciam a matéria tecnicamente e elaboram informes ao CNRH, capacitando-o, por sua vez, para uma decisão justa e adequada. Terceiro, porque  esse procedimento objetiva ampliar o debate e dar segurança a cada conselheiro em sua decisão.
Nos mais de três anos que participo do CNRH, antes como consultora, agora como conselheira, jamais testemunhei o encaminhamento, em regime de urgência, de matéria tão séria e tão complexa. O regime de urgência, apresentado em 29/outubro, foi acatado por mais de 20 conselheiros representantes da União. Esses conselheiros optaram também pela não necessidade de ouvir nem o Comitê de Bacia e nem as Câmaras Técnicas. Ou seja, o atual governo agiu sem nenhuma originalidade e na contramão dos seus princípios ideológicos, ao perpetrar, com essa prática, um golpe contra a sociedade civil, impedindo-a de participar do debate.
Em outubro, por decisão do CNRH, o pedido para análise do pleito do Ministério da Integração Nacional foi transferido para uma reunião extraordinária marcada para 30/novembro, que, como todos sabem, foi cancelada por uma liminar.
Sem entrar no mérito da liminar, é preciso entender que os representantes da sociedade civil organizada e dos usuários têm convicção de que o Projeto de Transposição (assim como quaisquer outras matérias) deve ser devidamente apreciado pelas Câmaras Técnicas competentes antes de ser encaminhado ao CNRH. Da mesma forma, esses conselheiros acreditam na necessidade de se ouvir o Comitê.
Por isso, ao contrário do que diz o comunicado da Secretaria Executiva do CNRH sobre a liminar, os conselheiros representantes da sociedade civil organizada e dos usuários não entendem estar ameaçado o direito do exercício de suas competências para deliberar sobre a matéria. Ameaçados se sentiram em 29 de outubro quando se tentou atropelar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, utilizando-se de interpretação errada do Regimento Interno do CNRH.
Regimento esse que reflete sempre, em todos os seus artigos, o fortalecimento do fundamento básico da Política Nacional de Recursos Hídricos: gestão descentralizada e participativa.
(*) Patrícia Helena Gambogi Boson
é Conselheira do CNRH