Maior patrimônio arqueológico brasileiro corre perigo
23 de fevereiro de 2005Niéde Guidon: “O Brasil não tem direito de ignorar um patrimônio cultural da humanidade e fazer assentamentos no seu entorno”
A pesquisa, o trabalho científico e o esforço de alguns estudiosos sempre estão derrubando teorias. Por exemplo, a gente aprende que os primeiros homens chegaram às Américas pelo Estreito de Bhering, no Alasca, vindos da Sibéria. Pois pesquisadores descobriram que não é bem assim. E a contestação para essa teoria está em pleno sertão brasileiro. Sítios arqueológicos no Nordeste guardam indícios de que a ocupação humana se deu cerca de 50 mil anos antes dos homens vindos da Sibéria. Pinturas rupestres mostram como era a vida em um passado distante: caçadas, orgias, animais desconhecidos e baleias sugerem que a paisagem e os costumes eram bem diferentes do que conhecemos hoje. Todos estes estudos foram feitos a 530 quilômetros de Teresina, capital do Piauí, próximo às cidades de Coronel José Dias e São Raimundo Nonato. É ali que está um dos parques nacionais mais importantes do Brasil: o Parque Nacional da Serra da Capivara. Criado em junho de 1979, o Parque tem 129.140 hectares e seu perímetro é de 214 Km. A criação do Parque Nacional Serra da Capivara teve múltiplas motivações ligadas à preservação de um meio ambiente específico e de um dos mais importantes patrimônios culturais pré-históricos. Em 1991, a Unesco inscreveu o Parque Nacional da Capivara na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade. Em 2002 foi oficializado o pedido para que o mesmo seja declarado Patrimônio Natural da Humanidade. E quem está à frente destas pesquisas? Niéde Guidon, o anjo da guarda de tantos tesouros. É justamente com ela que vamos conversar.
Foto: O paredão rochoso lambido pelas chamas, as pinturas rupestres caindo com os pedaços da rocha que explodem com o calor…
FATO 1: a denúncia
Uma área essencial para o equilíbrio ecológico de dois Parques, da Serra da Capivara e da Serra das Confusões, está sofrendo dois graves problemas: assentamentos desordenados e invasões. Justamente uma região onde já foram investidos mais de 20 milhões de dólares para que fosse criado um centro internacional de turismo ecológico e cultural, com capacidade de atrair 3 milhões de turistas/ano. Todo o programa educacional que foi mantido até agora pode não ter servido para nada: os cursos que foram dados para formar guias, pessoal técnico para manutenção das pinturas, para os trabalhos de pesquisa em arqueologia, desde a escavação até a análise em laboratório e preparo de publicações, especialistas em informática, parece ter sido em vão.
FATO 2: sentimento
de culpa
A arqueóloga Niéde Guidon, diretora do Parque, está preocupadíssima. Veio a Brasília conversar com os ministros Walfrido dos Mares Guia, do Turismo, Gilberto Gil, da Cultura, e Miguel Rossetto, da Reforma Agrária, e com Marina Silva, do Meio Ambiente. Com todos ela deixou um recado: “Estou preocupada com o parque, com as queimadas e a destruição de sítios arqueológicos. Também com os nossos funcionários. Tenho, até, um sentimento de culpa muito grande, pois tive uma funcionária assassinada pelo irmão. Eu dizia sempre a ela para não deixar o irmão caçar no parque, senão ela perderia o emprego. Ela não deixou o irmão caçar e o irmão a matou”.
FATO 2: audiências
em Brasília
Dois ministros mostraram mais sensibilidade para o problema e tomaram atitudes imediatas: o do Turismo, Mares Guia, e o da Cultura, Gilberto Gil: O ministro Walfrido já visitou o parque e até deu o dinheiro para construção do aeroporto. Ele defendeu o fantástico valor do acervo cultural ali guardado. O ministro Walfrido ligou imediatamente para o governador Welington Dias, do Piauí, para o ministro Rosseto e se propôs a defender o Parque Nacional da Serra da Capivara, o Corredor Ecológico e o Parque da Serra das Confusões. O ministro Gilberto Gil é de parecer que a região não pode ser utilizada para assentamentos. De acordo com o presidente do IPHAN, decidiu que será preparado um pedido ao Presidente Lula para que se crie uma comissão técnica dos quatro ministérios envolvidos para buscar uma saída única e definitiva.
FATO 4: processada
por caçadores
A questão está tão tensa e os valores tão invertidos, que Niéde Guidon, diretora e defensora do Parque Nacional da Serra da Capivara, está sendo processada até por caçadores da fauna das duas unidades de conservação. O nome deles: Aroldo de Andrade Silva, Ronaldo Adriano dos Santos Ramos, Fabrício Paes Landim e Junivaldo Pereira dos Santos.
“As últimas florestas de angico, aroeira, pau-d’arco, estão sendo destruídas pelo fogo e pela retirada de madeira para atender a
necessidade dos assentamentos
Niéde Guidon, uma sertaneja
Foto: Niéde Guidon é diretora da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano) que administra o Parque Nacional da Serra da Capivara em parceria com o Ibama
Silvestre Gorgulho
Niéde Guidon é paulista de Jaú, se formou em História Natural na USP e há 32 anos pesquisa um dos mais importantes sítios do mundo em arte rupestre. Ela é a verdadeira guardiã dos tesouros arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara. Reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho científico, Niéde Guidon é arqueóloga e doutora pela Sorbonne. Foi o seu trabalho, sua luta e sua dedicação que gerou a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Niéde tem 72 anos e luta pelo seu ideal de tornar a pobre região do Piauí em grande centro turístico. Ela quer mudar o perfil econômico da área com investimentos em turismo e dar ao Brasil um enorme patrimônio cultural. “É inútil falar em proteção ambiental em regiões como São Raimundo Nonato, onde as pessoas estão morrendo de fome, sem criar alternativas de trabalho. Se algo não for feito imediatamente, os sítios serão destruídos, a paisagem degradada e o ecossistema – único na região – será aniquilado”. É por esta luta para impedir a depredação e para criar condições de preservação do parque que Niéde e sua equipe vêm sofrendo até ameaças de morte. Mas ela não desiste. Niéde Guidon é guerreira e aprendeu a ser uma
legítima sertaneja honorária. É antes de tudo forte.
Foto: Ao lado, um corrupião. Abaixo, os desenhos dos primeiros
habitantes
do Brasil
Folha do Meio – Quando começou o seu trabalho na região?
Niéde Guidon – Foi em 1973. Dirigia uma equipe franco-brasileira do Piauí e iniciava as pesquisas em São Raimundo Nonato, pequena cidade perdida no sertão, numa das mais pobres regiões do Brasil. Hoje, 32 anos depois, podemos fazer um balanço de tudo o que foi feito e, principalmente, do que resta a fazer. Mas tem trabalho para mais uma geração!
FMA – E qual esse balanço?
Niéde – Foram 32 anos de muita dedicação. Neste tempo foram descobertos vestígios concretos da presença do primeiro homem americano na região, datados com até 57 mil anos. Quem visitou o parque sabe das milhares de pinturas rupestres, fogueiras, urnas funerárias e ossadas de animais pré-históricos, pois todo esse acervo está reunido no museu da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano). O resultado destes 32 anos de trabalho desvendou para o Brasil e o mundo um patrimônio cultural cuja importância é igual ao das cavernas de Lascaux, na França, ou as da Austrália. Ambas são visitadas anualmente por milhões de turistas.
FMA – Qual é a importância do Parque da Serra da Capivara para a ciência e para a cultura?
Niéde – Para a ciência a importância do Parque está no fato de que ele preserva áreas de Caatinga primária. Nessa área, há cerca de 9.000 anos, se encontravam dois biomas: a floresta amazônica e a mata atlântica. Até hoje temos espécies animais e vegetais de ambos biomas dentro do Parque. Nele se encontra a maior concentração de sítios rupestres do mundo. A pesquisa nesses sítios arqueológicos permitiu que demonstrássemos a antiguidade das culturas autóctones do Brasil. Sua capacidade tecnológica e sua arte, hoje declaradas Patrimônio Cultural da Humanidade. Este acervo é comparável a qualquer dos mais famosos sítios do velho mundo. É o estudo desses sítios que poderá dizer a verdadeira origem dos primeiros homens que povoaram a região.
Parques não podem conviver
com assentamentos no seu entorno
FMA – Você e sua equipe têm apoio para esse trabalho?
Niéde – Vou falar a verdade. Infelizmente temos apoio de parte da população local que entendeu que com o Parque Nacional todos têm a ganhar. Tanto os intelectuais, como os comerciantes e empresários. Mas não temos o apoio daqueles que sempre viveram como parasitas do poder coronelista, daqueles que se sentem acima de todas as leis. Também não temos apoio de pessoas pobres de espírito, de ignorantes que pensam pequeno e, minados pelo vício do álcool profusamente difundido na região, ainda acreditam que para viver terão que ter sempre a esmola dos políticos, que explorar a caça e a venda ilegal da madeira.
Já o governo estadual e o federal nos dão apoio, mas nunca um apoio decisivo. Quer um exemplo? Até hoje não conseguimos ter um orçamento fixo que nos permita retomar os funcionários, com carteira assinada. Não sabemos até quando vamos poder mantê-los. Já tivemos que despedir todos, pagar indenizações, nos separar de pessoas que trabalhavam conosco há quase vinte anos. O que é incrível é que ninguém ainda viu como o turismo cultural pode levar um desenvolvimento sustentável para a região. Parece que o Brasil só acredita no turismo de praia e de Carnaval.
FMA – E essa história de se fazer assentamentos no entorno do Parque?
Niéde – Olha, você tocou num problema muito grave. Incrível como há total insensibilidade dos ministros da área social, do desenvolvimento agrário, do pessoal do Incra para o problema. Não sei como o governo não intervêem mais firme neste problema. Na verdade, apenas o ministro Walfrido, do Turismo, e Gilberto Gil, da Cultura, tomaram uma atitude firme em defesa do parque.
Estive com o presidente do Incra e ele foi capaz de dizer que não existe outra área para fazer assentamentos. O Brasil deste tamanho! Será que precisa fazer assentamentos no entorno de um parque nacional? Numa área de proteção ambiental? Numa área que é destinada a ser um Corredor Ecológico para a serra das Confusões? Isso por instruções da Unesco e de estudos técnicos. Não posso aceitar esse primarismo de se fazer de uma área nobre para pesquisa antropológica, cultural e do meio ambiente um assentamento qualquer. Um adensamento que vai dilapidar rapidamente um patrimônio mundial. As autoridades brasileiras estão sendo desleixadas com esse tesouro fantástico. Um tesouro único que, pelo turismo, pode dar emprego, renda e melhoria das condições de vida de todo um povo.
FMA – Há alguma denúncia concreta?
Niéde – Há sim. Além dos assentamentos impedirem o corredor ecológico para a Serra das Confusões, há ainda algo pior: na realidade essas terras todas são do governo do Piauí e deveriam ser anexadas ao Parque ou ser um corredor ecológico. Um Corredor Ecológico exige liberdade de passagem para os bichos e qualquer tipo de assentamento vai criar muros, cercas etc. E pior: vai aumentar o número de caçadores de animais silvestres. Desde que foi feita e asfaltada a estrada PI-140, em sua margem foram se instalando casas de fim de semana de pessoas ricas, em geral comerciantes e políticos de São Raimundo Nonato. Casas com churrasqueiras e piscinas.
FMA – A senhora é contra a reforma agrária?
Niede – De jeito nenhum! Sou a favor. Mas sou também a favor do bom senso. Não é possível fazer reforma agrária numa área de preservação ou próxima de um Parque Nacional. Em último caso, se não tiver jeito, o Incra deveria fazer exigências tão fortes que vão acabar inviabilizando os projetos. Por exemplo, o Incra deveria colocar no contrato que o assentado perderá os direitos que conseguir com o assentamento, se for pego caçando, se entrar no Parque Nacional, se for flagrado com armas ou armadilhas. E que essa perda é automática, não exigindo abertura de processo. Os assentados deverão assinar no contrato que manterão os animais domésticos dentro de seus terrenos, impedindo que vaguem por todo os lados e que entrem no Parque Nacional. Os animais deverão ser fechados durante a noite, para que não existam alegações de que onças estão matando e os conseqüentes pedidos de indenização. A verdade é que há outros lugares mais apropriados para se fazer assentamentos.
FMA – A senhora acha que o governo investe corretamente no Nordeste?
Niéde – Tenho lá minhas dúvidas. Vale lembrar que, em 2004, o Dnocs comemorou 95 anos de existência! Quantos anos têm a Sudene? E o Banco do Nordeste? Alguém já contabilizou as somas que os diferentes projetos, inclusive o Pró-Álcool, que ia acabar com a miséria, já levaram para o Nordeste? E qual foi o resultado de todo esse investimento? A resposta está na criação, hoje, de programas assistencialistas. O dinheiro dos grandes investimentos acabou, mesmo, nas mãos dos magnatas do Rio, São Paulo e do próprio Nordeste.
Veja aí a prova dos nove: a miséria continua tão persistente, tão aguda que o governo atual teve que criar o Fome Zero! Será que vamos continuar a utilizar os recursos públicos com programas mal elaborados? Financiar reforma agrária equivocada e distribuir terras degradadas e secas? Isso é eternizar o problema. Não é à toa que os jornais anunciam cá e lá a descobertas de fraudes nesses programas assistencialistas.
FMA – A senhora acha que o assistencialismo puro e simples pode prejudicar o progresso pessoal das pessoas?
Niéde – Só prejudica. É só ver como aumentam as filas das pessoas assistidas. Quem quiser fazer uma pesquisa, uma análise mais profunda é só ir lá se postar na frente de uma instituição pagadora. Não se forma um povo transformando-o em dependente, em mendigo.
summary
Capivara Mountain
National Park
Mankind’s Cultural Patrimony
On June 5, 1979, the Presidency of Republic established the Capivara Mountain National Park in Southeast Piaui. The establishment of this National Park had been requested by the French-Brazilian Mission members who conduct since 1970, a research program in that area and who created in 1986, the Foundation of the America Man Museum (Fumdham), a non-profit making civilian organization The interdisciplinary team is constituted by researchers from Brazilian institutions (University of São Paulo, Federal University of Pernambuco, Federal University of Piaui, University of Campinas, Oswaldo Cruz Institute) and French institutions (University Claude Bernard of Lyon, University Pierre et Marie Curie, French Institute of Scientific Research for Cooperation Development, Scientific Research National Center, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales).
The works initially devoted to prehistory, have been diversified from 1978 on. Presently, interdisciplinary research related to thematics defined for the program are being developed: Relationship Man / Environment in the Southeast Piaui-from prehistory to current days.
Fumdham with Ibama`s (Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural Resources) support is carrying out researches which aim at managing and developing the Park in order to protect archaeological sites and extensive zones of primary “caatingas” that are found in those areas.
The archaeological research revealed important data about America’s settlement. It concluded that on the contrary to what the classic theory states, man has arrived in the American continent quite before 50,000 years ago. Digging out the site “Toca do Boqueirão da Pedra Furada” has led to the discovery of vestiges that have been dated -throught carbon 14 process-to 48,000 years ago. Remains of pictures have been found in extremely old layers being, therefore, the first manifest signal of American prehistoric art. Boqueirao da Pedra Furada and today is the oldest and most important archaeological site in the Americas.
A vocação da região é o turismo cultural e ecológico
FMA – E as queimadas em volta do parque…
Niéde – Foi bom você tocar no caso das queimadas. Qual a origem delas? Os agricultores. O maior incêndio que tivemos em 2004 foi o que os assentados da Fazenda Lagoa atearam à floresta da reserva legal que deveria ser mantida intacta. O fogo somente parou nos paredões da serra, destruindo tudo. Os assentamentos só vão aumentar o risco de queimadas.
FMA – E o problema com os caçadores?
Niéde – Esse é outro gravíssimo problema. Quem insiste em dizimar a fauna do Parque são justamente as pessoas que caçam por encomenda. Muitos caçadores vêm de assentamentos e receberam recursos para construir sua casa e para comprar sementes e plantar. A maioria tem carro e armas. Muitos deles trabalham para pessoas ricas, acostumadas a comer caça. Os caçadores parecem ser miseráveis, mas não são. Em todos os acampamentos de caçadores que encontramos dentro do Parque e em sua vizinhança recolhemos pilhas de lanternas, garrafas vazias de pinga, de cervejas, refrigerantes, envelopes de temperos industrializados, maços vazios de cigarros e muitos plásticos de embalagens de produtos diversos.
FMA – E qual sua proposta para resolver tantos problemas, inclusive dos assentamentos que lá existem?
Niéde – Olha, quem quiser fazer a coisa bem feita vai encontrar fórmulas e formas. O próprio Incra, a Embrapa e outros órgãos regionais se quiserem ajudar podem fazê-lo e muito bem. Vamos a alguns exemplos. No caso do turismo, estudos indicam que, com a realização de uma boa infra-estrutura, escolas e formação e guias, há potencial para receber 3 milhões de turistas. O Parque Nacional da Serra da Capivara pode ser uma atração internacional fortíssima. Tem a mesma importância das cavernas de Lascaux, na França, ou as da Austrália. São destinos que recebem turistas de primeira linha. Que gastam, que dão emprego, que melhoram a renda da população local. Essa é uma atividade que muda a realidade local. Quantos brasileiros já foram à Disney e nunca foram a um parque nacional no Brasil? Quantos brasileiros conhecem esse patrimônio chamado Parque Nacional da Serra da Capivara? A maioria nem sabe que existe. Mas como fomentar a ida de brasileiros para lá se não tem como chegar, não tem como se hospedar confortavelmente, não tem como fazer de uma viagem cultural uma viagem agradável? Sabe por que o governo não faz isso? Simples, porque não é um projeto político. Compare com a transposição do rio São Francisco, que é um projeto político, vai gastar muito mais e deve dar muito menos emprego.
FMA – E existem outras alternativas econômicas?
Niéde – Existem muitas. O próprio Incra, o Banco do Nordeste e a Embrapa poderiam estudar o incremento da apicultura, o fomento à produção de flores, plantas ornamentais, cactos etc. O mercado nacional e internacional é ávido e paga caro por esses produtos. Outro investimento de retorno certo é na educação, na profissionalização das pessoas dentro do que a região precisa. Não precisa nada sofisticado, tipo o lema que anda por aí “universidade para todos”. É o tipo da coisa idiota porque muitas pessoas são geniais fora da área acadêmica. Pode-se ser um grande técnico, um grande agricultor, um artesão, um empresário fantástico, um guia turístico, um artista, um empreendedor sem ter que fazer a universidade. Por que não criar muitas escolas técnicas de nível superior? E por que não oferecer a todos uma escola básica e secundária que garantam, para aqueles que assim o desejarem, a entrada na universidade pública? Quando eu entrei na USP, vinda de uma escola básica e secundária públicas, tinha colegas negros e colegas de classes pobres. Todos saídos da escola pública como eu e que tinham, como eu, passado no vestibular! Todos iguais pelo conhecimento e não por decreto!
FMA – Sua luta é forte. Será que a política não está minando seu trabalho científico?
Niéde – Olha, eu sou cientista. Nunca tive e não tenho nenhuma vocação política. Minha geração nasceu sob a ditadura Getúlio Vargas e, desde pequena via, como todos tinham medo do famoso Dops. Como estudante participei das manifestações contra Vargas e as de maio de 1968, em Paris. Como profissional sempre vi, com lucidez, os problemas do Brasil e sempre procurei trabalhar para dar minha contribuição visando saná-los. Deixei a USP em 64 e fui embora para a França porque detesto regimes absolutistas. Sejam eles de esquerda ou de direita. Refiz minha carreira lá e hoje sou aposentada pelo governo francês. Mas, mesmo ensinando em Paris, minha pesquisa foi sempre sobre o Brasil. No Piauí. Desde 1973, durante minhas férias, vinha ao Brasil, com meus alunos, em uma missão oficial francesa.
Em 1991, o governo brasileiro solicitou ao governo francês que eu fosse cedida para coordenar os trabalhos de manejo e proteção do Parque Nacional Serra da Capivara. Deixei Paris e me instalei em São Raimundo Nonato. Conheço, portanto, muito bem o sertão do Nordeste e seus problemas. Mas penso que certos aspectos devam ser lembrados para que a politicagem brasileira não cometa mais um erro.
Deixei a USP em 64 e fui embora para a França porque detesto regimes absolutistas, sejam eles
de esquerda ou
de direita.
Não precisa nada
sofisticado, tipo o lema que anda por aí “universidade para todos”. É o tipo da coisa idiota, porque muitas pessoas são geniais fora da área acadêmica.
Por que temos que aceitar que o Brasil somente pode ser
agrícola no interior, industrial somente nas cidades do sul e do litoral, e turístico somente nas praias?
Niéde: a politicagem mina o trabalho cinetífico
FMA – O que fazer, por exemplo?
Niéde – Para começar, exigir que a escola pública tenha a mais alta qualidade, desde o ensino básico, que é fundamental. Criar escolas técnicas de nível superior em todos os estados. Analisar as diferentes regiões, determinar quais as potencialidades que oferece cada uma para financiar somente atividades que sejam realmente adaptadas a cada região e que tenham um real potencial econômico. Que sejam auto-sustentáveis.
Permitir que cada jovem possa trabalhar, viver dignamente em sua terra natal, sem ter que migrar para poder sobreviver nos grandes centros urbanos. O sonho dos jovens da região do Parque Nacional da Serra da Capivara é ter um trabalho lá, perto de sua família, de seus amigos. E o turismo pode fazer esse milagre!
E também é hora do Brasil fazer uma reforma política. Ninguém mais agüenta a história de se arrumar recursos para um programa, para um projeto e esse dinheiro seguir a velha trajetória de passar por tantos políticos como deputado, governador, prefeito, vereador e quando chega no programa ele desaparece nas mãos dos mesmo empreiteiros que bancaram as campanhas políticas. O Brasil tem que mudar é aí.
FMA – A vocação ali é o ecoturismo…
Niéde – Evidente! Por que temos que aceitar que o Brasil somente pode ser agrícola no interior, industrial somente nas cidades do sul e do litoral, e turístico somente nas praias e no Carnaval? Vamos nos mirar, no exemplo, da participação da receita turística no PIB da França, da Itália, da Espanha, da África do Sul, do México, da Jamaica, da Costa Rica? E qual é essa participação no Brasil? Em 2003, o número total de turistas de todo o Brasil foi de pouco mais de 4 milhões. Atrás até da Costa Rica, que é menor do que o Piauí.
Olha, apesar de aposentada, continuo trabalhando duro. O que já foi feito na Serra da Capivara é colossal. É preciso que os tomadores de decisão, que todo brasileiro, saibam que ali temos um dos maiores patrimônios arqueológico, artístico e cultural do mundo! Me revolta ver como essas obras de arte não são aproveitadas para atrair milhões de turistas/ano de alto poder aquisitivo. Como? Apenas criando ali um pólo turístico, com infra-estrutura. Um pólo que vai trazer o desenvolvimento, renda e o fim da miséria. Me revolta ver todo esse acervo fantástico ser abandonado, negligenciado e até destruído pela imbecilidade humana.
Com esses assentamentos querem transformar todo o entorno do Parque em um imenso favelão rural. Como desenvolver um centro turístico nessas condições? Um dos maiores atrativos do Parque era a maravilhosa paisagem que se via lá de cima. Quem virá para ver favelas? As favelas vão acabar com o Parque, como estão acabando com o Rio de Janeiro. Até quando vão continuar utilizando os nossos impostos para financiar esse tipo de desenvolvimento às avessas? Até quando nossas lideranças vão ter apenas essa visão política, eleitoreira e assistencialista? Até quando nossos governantes vão pensar pequeno?
FMA – Mas não há esperança?
Niéde – Evidente que tem que haver esperança. Só ela move nossos sonhos. Mas, confesso que estou cansada. Me desculpe se fui muito cáustica nesta entrevista. Mas tenho um peso muito grande dentro de mim e, hoje, não sei se vale a pena continuar nessa luta ou é melhor me declarar vencida e, mais uma vez, deixar meu país natal.
Me desculpe se fui muito cáustica nesta
entrevista. Mas tenho um peso muito grande dentro de mim e, hoje, não sei se vale a pena continuar nessa luta ou é melhor me declarar vencida e, mais uma vez, deixar meu país natal.
summary
The largest brazilian archiological heritage is endangered
Niéde Guidon: “Brazil does not have the right to ignore a cultural heritage to humanity and
establish settlements in its surroundings”
Who is Niéde Guidon – born in the state of São Paulo, in Jaú, Niéde Guidon graduated in Natural History from USP, São Paulo State University and has conducted research for 32 years in one of the most important sites in the world in rupestral or cave art. She is the true caretaker of the archeological treasures of the Parque Nacional da Serra da Capivara (Serra da Capivara National Park). Internationally renown for her scientific work, Niéde Guidon is an archeologist and received her doctorate from the Sorbonne. It was her work, her battle and dedication that resulted in the creation of the Parque Nacional da Serra da Capivara. Niéde is 72 years old and continues to fight for her ideal of turning the impoverished region of Piauí into a large tourist center. She would like to change the economic profile of the area by investing in tourism and give Brazil an enormous cultural heritage. “It is useless to discuss environmental protection in regions such as São Raimundo Nonato, where people are dying of hunger, without creating job opportunities. If something is not done immediately, the farms will be destroyed, the landscape ruined and the ecosystem, the only one in the region, will be annihilated.”
Accusation – essential for the ecological balance of two Parks, Serra da Capivara and Serra das Confusões, the area is suffering from two serious problems: disorganized settlements and land invasions and this is taking place exactly where over US$ 20 million have been invested to create an international ecological and cultural center, capable of attracting three million tourists per year. The entire educational program which has been sustained to date may have all been to no avail: the courses that have been given to train guides, technical personnel to maintain the paintings and conduct archeological research and jobs ranging from digs to laboratory analyses and preparation of publications, specialists in information technology, appear to have been wasted.
32 YEARS OF WORK – “Thirty two years of dedication have been put into this effort. During this time real vestiges of the first American man in the region, dating back 57 thousand years. Anyone who has visited the park is aware of the thousands of cave paintings, bonfires, funeral urns and pre-historic animal bones, because this collection is gathered in the Museu do Homem Americano (American Man Foundation Museum). Thirty two years of work revealing to Brazil and the world a cultural heritage the importance of which is equal to the caves in Lascaux, France or those found in Australia, both of which are visited annually by millions of tourists.
IMPORTANCE – The importance of the Park to science lies in the fact that it has preserved the primary Caatinga ( stunted spare forest area). Nearly 9,000 years ago, this area was the home of two biomes: the Amazon forest and the Atlantic rain forest. Even today, there are animal and plant species of both biomes within the Park. This is also where the largest concentration of rupestre sites in the world can be found. Research at these archeological sites has enabled us to demonstrate the ancient indigenous cultures of Brazil. Their technological capacity and their art have been declared to be the Cultural Heritage of Humanity. This collection is comparable to the most famous sites of the old world. Moreover, the study of these sites could tell truth of the first men to inhabit the region.
LAND CLEARING FIRES – “The origin of these fires are the settlements. The largest fire we had in 2004 was set by the settlers of the Fazenda Lagoa to the legal reserve forest, which should have been maintained intact. The fire only stopped at the slopes of the mountain range destroying everything else. The settlements will only increase the risk of fires. The last of the angico (mimosa trees), aroeira (pepper trees) and the pau d’arco (trumpet bush) are being destroyed; the rocky slopes are being licked by the flames, the cave paintings are falling with the fragments of rock which explode from the heat… the fires are one of the main activities of the settlers. The other is hunting.”
“These settlements will transform the surroundings of the Park into an immense rural favela (shantytown). How can a tourist center be developed under these conditions? One of the greatest attractions of the Park was the wonderful panorama that could be seen from up above. Who wants to look at the favelas? The favelas will put an end to the Park, just as they are doing in Rio de Janeiro.
IS THERE ANY HOPE? “Obviously, there must be hope. That is the only thing driving our dreams. However, I must confess that I have grown tired. Please excuse me if I have been too caustic in this interview, but I have a great weight inside me and today, I am not sure it is worth continuing this struggle, or rather it would be better to declare that I have been beaten and once again leave my native land.”