Colhendo Esperanças

O coletor de sementes

23 de fevereiro de 2005

Esta crônica é uma homenagem ao coletor de sementes Lucas Andrade e a todos anônimos coletores de sementes que plantam árvores e esperanças pelas cidades brasileiras.


No bolso nenhum tostão.
O que fazia volume e deformava o pequeno compartimento das calças eram sementes. E é até difícil imaginar que naquele bolso existe, em minúsculos grãos, um banco genético. Mas o espaço reduzido para guardar esse pequeno tesouro exige outros recipientes. Sacolas de plástico, daquelas de supermercado, vêm a calhar.
As pequenas sementes aladas de ipê-amarelo(01) caem às pencas dentro da boquiaberta-sacola. A operação se repete no ipê-roxo e no quase extinto ipê-branco.
Depois é a vez das sapucaias. As folhas rosas, novinhas, contrastam com as pequenas flores roxas. Os grandes frutos são cumbucas arredondadas, penduradas como brincos gigantes na copa alta das árvores.


01


Quando maduros abrem as tampas e libertam as amêndoas que dispersam no ar e ganham distância da árvore-mãe. O coletor de sementes recolhe algumas deixando uma porção para os macacos-pregos deliciarem-se com esses acepipes silvestres.
As cumbucas despencam vazias e, antes de transformarem-se em refeição para os cupins, o coletor recolhe algumas unidades. Os tamanhos e as formas são análogas. Pequenas, grandes, oblongas, ovaladas misturam-se na sacola que ameaça romper pelo peso.
Mais adiante, os pés de jatobás(02) denunciam a presença pelo cheiro característico.


02


O fruto de casca grossa, dura, marrom, brilhante, não se rompe. Lá dentro, envolvida pela polpa verde, a semente permanece adormecida e espera o tempo da germinação. O coletor de sementes pega o fruto de jatobá apalpa, alisa, cheira e deposita no saco.
Na seqüência, agora é a vez do pente-de-macaco(03). O fruto parece um estojo, marrom, helicoidal, áspero como uma lixa. Lembra uma língua de pirarucu pelo tamanho e textura. No interior, delicadas sementes aladas contêm a bagagem genética dessa espécie de cipó em minúsculo grão central em forma de coração. Ao romper o estojo, centenas de sementes planam, bailam e navegam pelo ar. Em acrobacias aéreas cumprem uma jornada de dispersão para a perpetuação da espécie.



04


O coletor continua sua tarefa, colhe uma a uma com extremo cuidado. Na concha das mãos observa a transparência das asas, como um pedacinho de pergaminho de cinco centímetros, não mais. Pára e “aprecia por prazer de enfeite” a beleza delas, tal como Riobaldo ao contemplar o vôo e desvôo do passarim mais bonito do rio abaixo, o Manoelzinho-da-croa.  O araxixá(04) forra o chão. Seus frutos avermelhados gradativamente mudam de cor até atingirem o tom amarronzado.
Época de sementes maduras. Prefácio para o tempo das águas. As sacolas estão abarrotadas. Enquanto espera as chuvas, o coletor de sementes transforma-se em artesão. Os frutos ganham novos significados em móbiles, porta-lápis, lustres, esculturas, castiçais e vasos. Renascem, com a mesma beleza, em novos objetos


03


Fotos das sementes
retiradas do “Livro Árvores Brasileiras” de Harri Lorenzi


(*) Mônica Meyer, Bióloga, professora
da Faculdade de Educação
da UFMG em Belo Horizonte







O ato de coletar sementes


Coletar sementes é uma atividade desconhecida para a maioria da população. Poucas instituições têm em seus quadros um técnico nessa área. Mônica Meyer aprendeu a observar e valorizar o trabalho de coletar sementes quando dirigiu o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. O museu, que teve grandes e importantes mudanças durante os quatro e meio anos de administração de Mônica, está localizado numa mata de 600mil m2 na região metropolitana de Belo Horizonte. O interessante é que, paralelo às coletas sistemáticas realizadas no Museu, um vizinho sobressaia-se nesse ofício: Lucas Andrade. Atento ao calendário natural, ele recebeu o carinhoso título de coletor de sementes.
Lucas Andrade cresceu junto com as árvores do museu e aprendeu com o pai, o agrônomo Roberto Andrade, a gostar e apreciar cada espécie. Suas visitas eram recheadas de sacolas cheias de sementes. Conta Mônica que, às vezes ele trazia um presente artesanal esculpido na própria semente ou fruto. “Certa vez, ele me trouxe um pudim de jatobá”, lembra a ex-diretora do Museu. “Ao abrir o pequeno pacote deparei com um docinho molengo, verde, exalando cheiro forte de chulé. Inevitável! Tive que provar, por delicadeza, o exótico pudim. Até como mais uma homenagem a Lucas Andrade, um coletor de sementes e esperanças”. (SG)