Os planos do novo presidente da ANA
22 de março de 2005José Machado assume a ANA e já apresenta duas novidades: assinou a outorga provisória da transposição do S. Francisco e pode passar o programa da compra de esgoto [Prodes] para o Ministério das Cidade
José Machado: “Não creio que seja caso de alterar a agenda de
trabalho da ANA, que foi construída com muito esforço e com muita competência pela diretoria anterior e pelos técnicos da Agência”
FMA – Quais as prioridades de sua administração na ANA?
José Machado – É importante dizer que eu assumo a presidência da ANA num processo que vem desde a sua fundação. A ANA tem uma agenda de trabalho que foi construída ao longo dos últimos quatro anos e, portanto, a minha primeira preocupação é dar andamento aos programas e projetos que a instituição vem desenvolvendo nesse período.
Não creio que seja caso de alterar esse roteiro, que foi construído com muito trabalho e com muita competência pela diretoria anterior, pelos técnicos da agência, que são de excelente nível. É claro que procurarei imprimir meu estilo, minha marca, enfatizando algum ponto que eu considere mais relevante, pela minha experiência. O trabalho aqui é um colegiado e eu quero fortalecer esse critério. A Ana tem uma missão, que é implementar a política nacional de recursos hídricos. E dentro dessa missão estão sendo desenvolvidos vários programas. A preocupação mais importante dentro do panorama nacional é priorizar as situações que se apresentam como mais críticas, e que exigem uma ação mais forte da agência.
FMA – E quais são elas?
JM – A própria bacia do Piracicaba – Capivari – Jundiaí é uma bacia crítica onde o conflito em torno da água é bastante preocupante. A escassez de água, face às necessidades do desenvolvimento daquela região, que é uma das regiões de maior importância econômica e social do País, é objeto de permanente atenção da ANA. A bacia do Piracicaba está relacionada à duas grandes regiões metropolitanas: a de São Paulo e a de Campinas. Pelo sistema Cantareira, a bacia do Piracicaba também atende às necessidades de água da Região Metropolitana de São Paulo. Portanto, é uma região em que a disputa pela água é grande. Há que se implementar nessa bacia hidrográfica específica todos os instrumentos que a lei autoriza e define, tais como a cobrança pelo uso da água, o fortalecimento do Comitê de Bacia, a criação da Agência de Bacia, o fortalecimento do sistema de outorga e a criação dos marcos regulatórios nessa bacia.
FMA – O senhor mencionou a Agência de Bacia. Mas ela ainda não foi criada por lei. Existe um projeto sobre a matéria que vem sendo discutido há anos…
JM – De fato, há o projeto de lei 1616, que está há anos tramitando na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre a estrutura jurídica das Agências de Bacia. Mas a própria lei 9433 já estabelece alguns mecanismos que permitem implementar agências de bacia, independentemente de discutir o formato jurídico dessa agência, tal como propõe o projeto 1616. Por exemplo: a bacia do Paraíba do Sul, que é também uma bacia prioritária, pois tem a mesma configuração da bacia do Piracicaba, do ponto de vista do conflito pelo uso da água, já tem uma Agência de Bacia funcionando – Agência de Bacia do Vale do Paraíba (AGEVAP). Claro que é um funcionamento ainda experimental, que necessita de alguns ajustes. Trata-se de uma instituição chamada Cevap. Recentemente estive reunido com o representante dessa bacia, justamente para discutir a experiência do Paraíba do Sul, que é pioneira.
FMA – Não poderia a ANA propor ao CNRH a discussão desse projeto de lei?
JM – Na verdade, o CNRH está focado no projeto de lei 1616. O problema é que é uma matéria que depende da vontade do Congresso Nacional de votá-la. É claro que, se a matéria não foi votada até hoje é porque há divergências em torno do seu conteúdo. A ANA já tem se manifestado a respeito de como vê esse projeto. E o relator, que é o deputado Fernando Gabeira, interagiu fortemente com a ANA, com alguns Comitês de Bacia, com o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, houve várias audiências públicas. Portanto, aparentemente, a matéria reunia condições de ser colocada em votação.
A ANA trabalha sempre com essas duas vertentes: tem que garantir a
quantidade e a qualidade da água
Cobrança pela água não é imposto
José Machado: Uma de nossas preocupações é colaborar
com os estados nordestinos, no sentido de que a gestão
da água seja a melhor possível.
FMA – O projeto já passou por alguma comissão técnica da Câmara?
JM – Já passou pela Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, em que a relatoria desse PL coube ao Deputado Fernando Gabeira. Como foram apensados vários projetos de lei ao PL 1616, constituiu-se uma Comissão Especial para tratar dessa matéria e a sua relatoria ficou a cargo do Deputado José Jatene. Essa Comissão Especial está sem ação desde maio de 2004.
A lei 9433 estabelece os critérios para a cobrança pelo uso da água, para a aplicação dos recursos, para a criação das agências, dando inclusive a possibilidade dos consórcios intermunicipais funcionarem provisoriamente como Agências de Bacia.
Não há ainda nenhuma experiência de consórcio assumindo esse papel, mas existe essa possibilidade. Por exemplo, na bacia do Piracicaba, cogita-se do consórcio vir a ser, por um tempo determinado, a Agência de Bacia, como seu braço executivo.
Eu acredito que um dos problemas, que talvez seja hoje o mais candente, que esteja dificultando o avanço da 1616 na Câmara, seja aquele dispositivo da lei 9433 que diz que os recursos arrecadados na bacia sejam prioritariamente arrecadados na bacia. Quando deputado, lutamos muito para que essa palavra “prioritariamente” não prosperasse e fosse substituída pela palavra obrigatoriamente.
FMA – Algo mais forte.
JM – Mais forte. Deve se aplicar os recursos obrigatoriamente. Mas, apesar de muita discussão feita na época, a mudança não foi procedida. Entre os usuários da água sempre ficou aquela expectativa de que a União pudesse lançar mão de uma parte da receita da cobrança, numa visão totalmente equivocada.
Os recursos da cobrança não são recursos de grande expressão financeira. A cobrança não é um instrumento arrecadatório. Não é essa a natureza da cobrança pelo uso da água. Essa cobrança é um mecanismo regulatório. Não é um imposto. É uma taxa condominial.
FMA – Se o usuário perceber que o recurso não está sendo aplicado na bacia ele não vai deixar de pagar?
JM – Exatamente. Como, aliás, está acontecendo na bacia do Paraíba do Sul, onde a Companhia Siderúrgica Nacional está recolhendo a cobrança em juízo, embora já não subsistam mais razões para isso. Graças à ação da ANA, do Ministério do Meio Ambiente, com o apoio do Ministério do Planejamento, foi encontrado um arranjo institucional que garante, através da lei 10.881/2004, que estabeleceu os mecanismos do contrato de gestão, a aplicação integral dos recursos da cobrança na própria bacia. Esses recursos, inclusive, não podem ser contingenciados.
Portanto, hoje, os mecanismos criados, mesmo que não tenha sido revogado o artigo 22 da lei 9.433, que estabelece que os recursos sejam aplicados prioritariamente, asseguram a obrigatoriedade.
Tanto que, na bacia do Paraíba do Sul, que é a única onde se cobra, a ANA faz a cobrança, arrecada, essa arrecadação é consignada à conta única do Tesouro, indicando com toda a clareza o total arrecadado. Já faz quase dois anos que essa cobrança foi iniciada.
FMA – Teria como se conseguir o volume de recursos até agora arrecadado?
JM – Tem. A ANA garantiu o repasse integral da cobrança para a bacia, do seu próprio orçamento. Mas, nesse processo, em 2004, foi feita uma ampla negociação envolvendo o governo como um todo, sobretudo os Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente, além da ANA, e se estabeleceu esse mecanismo de liberação. Ou seja, embora o recurso seja contabilizado na conta única do Tesouro, dado que foi assinado um contrato de gestão com a Agência de Bacia, esses recursos não são contingenciados, são passados integralmente pelo Tesouro, com a interveniência da ANA.
FMA – No fundo, a ANA antecipa?
JM – Não, ela antecipou lá atrás, em 2003. Agora, a própria Fazenda faz a transferência dos recursos, porque isso agora está regulamentado. Não há nenhum empecilho. Com a aprovação do Orçamento Geral da União para o corrente exercício, já ficou estabelecido no decreto que definiu a liberação dos recursos, que o sistema de transferência não sofrerá modificações. Portanto, esse recurso está, inclusive, fora de qualquer contingenciamento.
FMA – Eu gostaria de voltar à indagação inicial das prioridades. O senhor mencionou os consórcios. E o que mais é prioritário?
JM – As bacias são um foco da ANA. Trabalhar as situações críticas do país, que são muito grandes. E as coisas são distribuídas de maneira desigual. Se me perguntarem se a Amazônia é uma prioridade, eu diria que ela é importante, e sob vários aspectos requer nossa atenção. Mas eu diria que a Amazônia não representa, hoje, do ponto de vista de recursos hídricos, uma ameaça iminente, nem de escassez de água e nem de qualidade.
A ANA trabalha sempre com essas duas vertentes: tem que garantir a quantidade e a qualidade da água. Tem que cuidar dessa responsabilidade estratégica que é a água. Agora, se for considerado que algumas regiões de grande concentração urbana e industrial, de produção agrícola, principalmente agricultura intensiva com alto grau de tecnologia, consomem muita água, evidentemente elas estão no centro de nossas preocupações.
É claro, o semi-árido nordestino também nos preocupa. A preocupação da ANA é colaborar com os estados nordestinos, no sentido de que a gestão da água seja a melhor possível. A água é escassa, e portanto, precisa ser bem gerenciada. A ANA se preocupa, precipuamente, com a questão da gestão dos recursos naturais voltados para a água.
FMA – E com relação à seca no Sul?
JM – Estamos agora ajudando – embora esse seja um assunto de comando dos governos estaduais – mas a Ana, por determinação presidencial, está colaborando com um grupo de trabalho para acompanhar e intervir na seca que assola o Sul do País neste momento. Estamos deslocando um técnico nosso com o objetivo de colaborar com as autoridades estaduais e federais em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, face à estiagem que está criando um desconforto e uma situação complicada para o abastecimento de água dessas regiões.
A cobrança pelo uso da água é um mecanismo regulatório. Não é um imposto. É uma taxa condominial.
Na bacia do Paraíba do Sul, a CSN está recolhendo a cobrança em juízo, embora já não subsistam mais razões para isso.
Machado: há água, sim, para a transposição
José Machado: A ANA é responsável, em todo o País, pelo
sistema de medição de quantidade e qualidade da água.
FMA – Já existe racionamento?
JM – Sim, há racionamento. De uma maneira geral, o quadro nos dois estados é preocupante. Muitos municípios estão em situação de emergência.
FMA – O que a ANA pode fazer de concreto quando há escassez de água?
JM – Aperfeiçoar o gerenciamento. A Ana não pode fazer chover. Entretanto, ela pode apoiar as autoridades do estado no gerenciamento da situação, que certamente exige a tomada de decisões como racionamento, manejo de reservatórios e outras providências similares.
O que se tem que fazer, neste ano, é cumprir a lei, que é muito clara: quando nos defrontamos com um quadro de escassez de água, a prioridade é o abastecimento humano e animal. Só no caso de sobra é que se pode usá-la para outras finalidades.
A ANA tem que garantir os princípios da lei 9433. Toda vez que ocorrem esses eventos, aciona-se a defesa civil, o Ministério da Integração, que entram em campo para dar suporte técnico-operacional para os estados que solicitarem. Até mesmo recursos podem ser disponibilizados, em casos como o de calamidade pública e quebra de safra, esta, de responsabilidade do Ministério da Agricultura.
FMA – E em relação ao Semi-árido?
JM – Estamos preocupados com a possibilidade do Nordeste ter uma nova seca. Muitos municípios da região já enfrentam sérios problemas de escassez de água. Cada vez mais temos que trabalhar com prevenção.
Temos uma superintendência na ANA, a Superintendência de Usos Múltiplos, que trabalha associada a outras, como a Superintendência de Informações Hidrológicas, cujo papel é prevenir eventos críticos. Com base em estudos meteorológicos, é possível antecipar eventos.
FMA – O senhor poderia eleger as três prioridades de sua gestão?
JM – O Semi-árido nordestino com certeza é uma prioridade. Lá desenvolvemos um programa chamado Proágua, que é pilotado pelo Ministério da Integração Nacional, que realiza as obras de infra-estrutura e a ANA cuida da gestão. De nada adianta implantar um programa de infra-estrutura hídrica se não forem organizados os usuários dessa água, se não capacitar os estados a gerir essa água.
Na questão da outorga, por exemplo, é preciso regularizar os usos, pois em muitos mananciais, ou a água é retirada sem autorização, ou além do volume autorizado. A outra prioridade são as bacias críticas. Atuar para implementar o sistema de gestão nessas bacias, como o Paraíba do Sul, o São Francisco, o rio Doce.
A terceira prioridade é a rede hidro-meteorológica, um dos instrumentos da lei 9433, fundamental para a formulação e a implantação do Sistema Nacional de Informações sobre recursos hídricos.
É preciso saber onde tem água, como os sistemas são alimentados, a regularidade das chuvas etc. A ANA é responsável, em todo o País, pelo sistema de medição de quantidade e qualidade da água. Essas são as prioridades macro. Mas elas se desdobram.
FMA – E em relação às superintendências?
JM – Temos dez superintendências, e cada uma delas tem uma responsabilidade institucional.
Temos, por exemplo, a Superintendência de Outorga e Cobrança, que define os critérios de cobrança, faz cadastramento e recadastramento dos usuários, e isso está sendo feito nessas bacias prioritárias.
Temos também a Superintendência de Planos e Projetos, que tem a função de elaborar estudos, planos e diagnósticos, sobretudo das bacias hidrográficas.
Outra Superintendência tem a responsabilidade de zelar pelos dados meteorológicos e hidrológicos de todo o País. Existe também a Superintendência de Usos Múltiplos que tem a tarefa de garantir os usos múltiplos da água como navegação, geração de energia, abastecimento humano e animal, agricultura irrigada.
Temos a Superintendência de Fiscalização. Uma vez estabelecido o marco regulatório numa bacia hidrográfica, é preciso fiscalizar. A ANA tem o poder de polícia. Quando um usuário descumpre o que foi estabelecido, está sujeito a punição de advertência, multa e até revogação da outorga. Todas essas atribuições têm os seus instrumentos, entre eles o plano de bacia.
Estamos colaborando no momento com a Secretaria Nacional de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, na elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos, que ainda não temos. Esse plano não é responsabilidade da ANA, mas do governo, através da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos.
Mas a agência atua fortemente para ajudar na elaboração do plano. A outorga, a cobrança e o Sistema Nacional de Informações são os outros instrumentos através dos quais a ANA executa as suas prioridades.
FMA – Qual tem sido o papel da ANA em relação ao projeto de transposição das águas do rio São Francisco?
JM – O papel da ANA se desdobra em duas partes. A fase que vencemos agora, foi de certificar que há disponibilidade hídrica para o projeto de integração de bacias, ou transposição de bacias.
A ANA elaborou um estudo procurando atestar se havia ou não disponibilidade hídrica para o projeto de transposição. E, mediante uma nota técnica, que foi examinada e votada no CNRH, a ANA atestou a disponibilidade hídrica para a transposição.
Ficou comprovado que, a jusante da barragem do reservatório de Sobradinho, há vazão suficiente de água para que o projeto seja viabilizado.
Evidentemente que a ANA de comum acordo com o Ministério da Integração formulou uma proposta de um regime de retirada de água. Não se retira qualquer quantidade de água a qualquer momento.
A ANA estabeleceu um determinado valor que pode ser retirado em qualquer momento, em qualquer dia do ano, em qualquer hora, que é 26 m3 por segundo, e estabeleceu que é possível retirar volume de água acima deste, em situações excepcionais.
FMA – Quando?
JM – Quando Sobradinho estiver vertendo. Quando Sobradinho tiver pelo menos 94% do volume de acumulação é possível retirar mais água para transpor. Para essa regra houve a anuência do Ministério da Integração, constou da Nota Técnica da ANA, e foi aprovada pelo CNRH dos Recursos Hídricos.
A ANA tem o poder de polícia. Quando um usuário descumpre o que foi estabelecido, está sujeito a punição de advertência, multa e até revogação da outorga.
Sobre a Transposição do S. Francisco, a ANA estabeleceu uma
determinada
quantidade de água que pode ser retirada em qualquer momento, que é 26 m3 por segundo.
Está dada a outorga preventiva para projeto da transposição
FMA – A ANA já deu a outorga?
JM – Não, a ANA deu apenas a outorga preventiva, que corresponde a uma espécie de atestado de reserva hídrica. É importante para o empreendedor que ele saiba que existe disponibilidade hídrica, antes de dar o passo inicial ao seu projeto de utilização de água. Neste caso, a ANA já disse que, atendidas aquelas condições, há água disponível. Isso permite ao empreendedor dar continuidade ao empreendimento, tomar todas as medidas para viabilizá-lo.
FMA – E quando será dada a outorga definitiva?
JM – A outorga só será dada quando o empreendedor entrar com o pedido junto à ANA. O empreendedor, no caso o Ministério da Integração, ainda não entrou com a solicitação. A outorga preventiva tem validade por três anos, podendo ser prorrogada, também a critério da ANA, por solicitação do empreendedor.
A ANA também tem a responsabilidade, atribuída por decreto presidencial, de certificar a sustentabilidade hídrica, operacional e financeira do empreendimento. No caso do projeto São Francisco, a ANA ainda não emitiu esse certificado. E esse é um pré-requisito para a outorga definitiva.
É preciso que o empreendedor demonstre que, uma vez implementada a obra, ele terá recursos para a sua manutenção, pois o projeto de transposição pretende levar água bruta para o Semi-árido.
FMA – Qual será o papel dos estados receptores da água?
JM – O papel dos estados é distribuir essa água bruta que alimentará os açudes existentes. Essa água tem um custo que terá que ser coberto. Os órgãos gestores dos estados distribuirão essa água aos usuários e cobrarão por ela…
FMA – Qual é o mais importante para o projeto: a outorga ou o licenciamento ambiental?
JM – As duas coisas. Como se trata de uma obra de grande impacto exige o EIA/RIMA e, portanto o licenciamento ambiental, que está a cargo do Ibama. À ANA compete a concessão da outorga. Só que para dar essa outorga há os pré-requisitos.
A ANA já deu a outorga preventiva, com validade por três anos. O empreendedor só pode começar a obra se tiver o licenciamento ambiental. E só poderá fazer a operação de captação da água quando tiver a outorga.
FMA – A ANA estabeleceu alguma prioridade para a utilização da água do São Francisco que vai perenizar alguns rios do Semi-árido?
JM – A ANA diz que essa água tem que ter usos múltiplos, e que a prioridade deve ser o abastecimento humano e animal. Essas são as prioridades que a lei define.
O Projeto São Francisco terá de garantir que o uso da água atenderá a essas duas prioridades. Porém a agência já sabe, pois o empreendedor informou, que essa água não será exclusivamente para o abastecimento público e a dessedentação animal. Ela também será destinada a outros usos econômicos, como a irrigação. Isso já é um pré-requisito para a ANA examinar.
Então ela já sabe que o projeto assegura o uso múltiplo. Então a ANA, baseada nisto, estabelece o seu estudo, apenas para dizer: o empreendedor está se propondo a fazer uma obra de infra-estrutura hídrica, com determinadas características e está pedindo uma outorga preventiva, para saber se vai ter água dentro das características apresentadas pelo empreendedor. Vale lembrar que o empreendedor dimensionou a obra para um volume de água bem maior do que o mínimo que a ANA está assegurando, ou seja, 26 m3 por segundo.
FMA – Mesmo nos períodos de baixa vazão do São Francisco?
JM – É porque a ANA já fez todos os estudos e concluiu que esse volume mínimo poderá ser assegurado. A vazão firme de Sobradinho é de 1825 m3 por segundo. Vale salientar que o São Francisco está regularizado pelos diversos aproveitamentos hidrelétricos ao longo do seu curso.
Na Nota Técnica elaborada pela ANA, há todo um histórico de vazão a partir de 1930, mostrando que o mínimo de vazão registrado assegura tranqüilamente a disponibilidade para a transposição.
Antes dos reservatórios, a vazão do São Francisco oscilava muito. Com a regularização, a oscilação é menor.
FMA – Essa posição dos estados de Minas, Bahia, Sergipe e Alagoas, os estados fornecedores da água, é mais política ou mais técnica?
JM – São vários os aspectos a considerar. Em primeiro lugar ainda persistem certas divergências de caráter técnico. Os estados fornecedores de água também elaboram seus estudos, tem visões diferentes. A ANA, no entanto, está segura de que seu estudo tem total respaldo técnico, não foi contestado no CNRH, de maneira a inviabilizar o estudo. Houve alguns questionamentos, mas prevaleceu a visão técnica da ANA.
Portanto, não posso aventar a hipótese de má fé. Acredito e aceito que os técnicos que se pronunciam sobre essa questão têm que ser respeitados nos seus pronunciamentos. No entanto, a ANA está segura de que seu estudo é consistente e até agora não foi contestado. Do ponto de vista técnico, acredito que estamos resolvendo essa questão.
Por exemplo: a questão de ter ou não água disponível. Acho que hoje isso está mais do que resolvido. Contudo, eu não sou um especialista em São Francisco, não vivo a realidade do rio. Acredito que muito da resistência está associada ao histórico do São Francisco, que foi afetado por muitas obras ao longo desses anos todos, especialmente as intervenções para gerar energia, que modificaram o regime do rio.
O ambientalista mais ortodoxo, naturalmente tem uma visão de que o rio deve ser mantido sem nenhum tipo de intervenção. Como já houve várias intervenções, sempre prevalece a idéia de que ninguém deve mais mexer no São Francisco.
Há uma resistência de caráter político e cultural muito forte, além da disputa em si pelo uso da água.
FMA – O que acha do argumento de que a revitalização deve vir antes da transposição?
JM – A ANA tem evitado emitir comentários sobre a oportunidade da obra de transposição do São Francisco. Como ela não é a empreendedora, mas uma agência reguladora, se coloca como um órgão de estado, não de governo. Cabe ao governo decidir sobre a oportunidade do investimento.
A agência não pretende entrar na discussão sobre se é melhor gastar os R$ 4,5 bilhões na transposição ou gastar uma parte desse dinheiro na revitalização do São Francisco. Posso dar uma opinião de caráter pessoal, dizendo que as duas coisas são válidas.
Acho que precisamos revitalizar o São Francisco e há recursos orçamentários para isso tanto no Ministério do Meio Ambiente quanto no Ministério das Cidades. Para nós, da ANA, o que importa é que a bacia do São Francisco é uma prioridade nossa, o fortalecimento do comitê, a implementação do plano de bacia, cuja elaboração a ANA financiou, a criação da Agência de Bacia e a implantação da cobrança.
Neste momento estamos iniciando a campanha de recadastramento dos usuários e a regularização de uso dos recursos do rio, um projeto que vai levar dois anos, pois vamos rever outorga por outorga, projeto por projeto.
Estamos fazendo uma chamada de todos os usuários da bacia, inclusive dos que não têm outorga, para efeito de regularização da situação de cada um. Não vamos primeiro cadastrar, para depois revisar a outorga. Se a situação for regular, confirmamos a outorga.
A ANA já deu a outorga preventiva, com validade por três anos. O empreendedor só pode começar a obra da transposição se tiver o licenciamento ambiental.
A ANA não pretende entrar na discussão
sobre se é melhor gastar os R$ 4,5 bilhões na transposição
ou gastar uma parte desse dinheiro na revitalização.
Presidente da ANA: sou a favor
da transposição do rio São Francisco
O Prodes – Programa de Compra de Esgoto – está em compasso de espera e deve ser comandado pelo Ministério das Cidades
FMA – Tecnicamente, a revitalização independe da transposição e vice-versa?
JM – Independe. As duas coisas podem correr juntas ou separadas, sem que uma seja condicionada à outra.
FMA – O senhor é a favor da transposição?
JM – Tenho elementos de convicção pessoal que me tornam favorável ao projeto, por entender que o Semi-árido precisa de água e o São Francisco tem disponibilidade de água. Então, não faz sentido, uma região importante como o Nordeste, precisando de água, tendo água, e você não poder ter essa água à disposição da população.
FMA – O senhor acha que o gerenciamento de água no Nordeste já chegou ao limite?
JM – Não. O gerenciamento de água no Nordeste está em processo de avanço significativo, mas ainda há lacunas e essa tem sido uma insistência da ANA.
Irei ao Nordeste para visitar os secretários estaduais de recursos hídricos , para exortá-los a continuar insistindo na gestão.
FMA – Como está o programa de compra de esgotos tratados, o Prodes?
JM – Os contratos que foram assinados no passado estão em pleno vigor. Hoje mesmo assinei contrato para a cidade paulista de Pindamonhagaba, com a interveniência da Sabesp, autorizando a liberação de recursos. Mas apesar disso, o Prodes ainda está em compasso de espera. Primeiro, porque acho que esse programa deve ser, doravante, comandado pelo Ministério das Cidades. Segundo, porque aquele ministério terá de viabilizar recursos.
A ANA dispunha de recursos significativos no passado, mas hoje eles não existem mais. O Prodes foi um sistema desenvolvido pela ANA em caráter experimental, exitoso, que o governo tem todo interesse em evocar para si, em sua implementação.
FMA – A ANA está acompanhando a eleição próxima para renovação dos poderes dirigentes da Bacia do Piracicaba-Capiravi? Tem alguma preferência de candidato?
JM – Não tenho e nem posso ter. Independentemente de eu ser uma pessoa com responsabilidade pública oriunda daquela região, eu não pretendo interferir no processo de definição dos dirigentes, tanto do consórcio quanto do comitê. À ANA interessa que esse processo seja harmonioso, democrático, pactuado, para que o avanço naquela bacia possa continuar.
Estaremos presentes, como estaremos também no São Francisco, que igualmente passa por processo de renovação do comitê de bacia. Estaremos acompanhando todos os processos de renovação dos dirigentes das bacias e consórcios, com vivo interesse, mas sem nenhuma interferência indevida, para não desvirtuar o processo democrático de renovação.
FMA – A cobrança pelo uso da água na bacia Piracicaba-Capivari vai começar este ano?
JM – A dificuldade está no fato de não estar ainda aprovada a lei paulista que autoriza a cobrança nos rios de domínio do estado. Cobrar no rio Piracicaba, que é de domínio da União, e não permitir a cobrança nos rios estaduais, cria uma assimetria entre os usuários de água: alguns pagam e outros não, o que cria uma assimetria e isso não é justo em termos econômicos.
FMA – A ANA está trabalhando para evitar essa assimetria?
JM – Sim. Estamos nos empenhando. E há ainda também um forte e decisivo empenho do Comitê de Bacia e do Consórcio Intermunicipal, que são favoráveis à aplicação universal da cobrança.
FMA – Gostaria de ouví-lo sobre a experiência que está se realizando na cidade de São Lourenço, MG, onde a comunidade, de forma voluntária, conseguiu a aprovação de uma lei municipal, criando, junto com a tarifa de água e esgoto, é uma taxa cuja receita compõe um fundo público para financiar a construção de uma usina de tratamento de esgoto. Como a ANA pode apoiar um movimento de cidadania tão importante como esse?
JM – Nesse caso de São Lourenço houve uma iniciativa da própria sociedade, em pressionar o poder público a fazer esse movimento.
No caso de Piracicaba, quando prefeito, eu fiz aprovar, na Câmara Municipal, um projeto de lei que me permitiu elevar a tarifa de água e esgoto em 12%, com o apoio da sociedade civil organizada. Criou-se, também, uma regra: o recurso obtido por esse aumento também foi diferenciado na contabilidade da companhia de água, na forma de um fundo informal.
A companhia de água ficou obrigada a segregar um valor financeiro mensal de arrecadação, que é aplicado no plano direto de esgotos do município. O objetivo é, até 2008, tratar todo o esgoto da cidade de Piracicaba. A Câmara de Vereadores acompanha, e a sociedade tem representantes em um pequeno comitê que fiscaliza a aplicação dos recursos.
É um pouco diferente de São Lourenço, cuja iniciativa partiu diretamente da comunidade. Em Piracicaba, a iniciativa partiu do prefeito, mas com o aval da Câmara Municipal e da comunidade. A sociedade concordou com o aumento da tarifa. Um dos grandes problemas que temos é aumentar a tarifa, especialmente em comunidades muito pobres.
Por isso, muitos prefeitos não gostam de mexer na tarifa de água e esgoto, por achar que isso cria desgaste em sua imagem. E isso acaba determinando que os municípios nunca conseguem ter recursos para tratar seus esgotos.
É por essa razão que isso nunca vira prioridade. Iniciativas como as de São Lourenço e Piracicaba podem criar uma nova cultura, uma nova mentalidade e precisam ser apoiadas.
FMA – Agora, a comunidade de São Lourenço criou o Comitê de Bacia do Rio Verde, que é uma espécie de esgoto a céu aberto de todas as cidades da região. Como a ANA pode dar suporte a iniciativas como essa e a outras em muitos municípios que vivem o mesmo problema?
JM – A ANA já faz isso. Mas como não tem pernas e braços para abarcar o País inteiro, começou a fazer nas bacias prioritárias. Nas bacias que não são prioritárias, mas que são importantes, o impacto de algumas situações ainda não chegou ao paroxismo, a um conflito incontornável.
Em alguns lugares, o conflito se tornou gravíssimo e inadiável seu enfrentamento. Daí a prioridade. Mas onde quer que haja um pleito, a ANA tem dado algum tipo de ajuda, no sentido de favorecer o surgimento de comitês de bacia e consórcios.
Mas, ainda assim, de uma maneira bastante cautelosa, pois a criação indiscriminada dessas entidades não daria à ANA condições de acompanhamento. Como a ANA é ainda uma instituição pequena, é inevitável ter de priorizar as bacias críticas, que são aquelas que mencionei no início. Nesse caso do Rio Verde, o melhor a ser feito é inicialmente trabalhar na idéia do consórcio intermunicipal.
Revitalização e transposição podem correr juntas ou separadas, sem
que uma seja condicionada à outra