Malocas na Esplanada
19 de abril de 2005Mais de 800 índios vão acampar no Eixo Monumental de Brasília e participar da Semana dos Povos Indígenas 2005: Paz, Solidariedade e Reciprocidade nas relações entre pessoas, famílias e povos
Durante o primeiro acampamento pela Terra Livre houve debates e danças na Esplanada dos Ministérios
Todos os debates são permeados pela discussão da relação entre os povos indígenas e o Estado brasileiro. Além de criticar a ausência e a ineficiência de políticas públicas específicas para os índios, também deverão ser apresentadas propostas ao governo federal, em de audiências com ministros e outras autoridades. Entre as propostas, está a criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista com a participação de organizações indígenas e outras instituições da sociedade civil.
No início do mês, foi lançado um manifesto denunciando que o número de terras declaradas como de posse indígena é, no governo Lula, o pior desde o fim do regime militar. Foram declaradas 13 terras indígenas nos dois anos de gestão, enquanto o governo Fernando Henrique, também indiferente à matéria, declarou a média de 14 terras indígenas por ano de mandato.
“Terras Indígenas viraram moeda de troca na barganha política com governadores de alguns estados”, afirmam as entidades do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas que assinam o texto.
O acampamento será a última atividade do mês de abril, no qual os indígenas buscam aumentar o diálogo com toda a sociedade brasileira, com uma programação de debates, audiências e manifestações políticas e culturais em Salvador, Campo Grande, Manaus, Boa Vista, além de Brasília.
Até quando vão morrer os indiozinhos?
Em Dourados-MS, 21 já morreram e 55 crianças indígenas ainda encontram-se internadas com quadro de desnutrição
Os Guarani/Kaiowá, da terra em Nhande Ru Marangatu (MS), conseguiram a homologação de sua área em 29 de março último, evitando, assim, seu despejo. Hoje, podendo plantar e colher, há mais perspectiva de futuro. Na foto, a alegria das crianças de Nhande Ru Marangatu voltando da escola
Milano Lopes
Septcemia, pneumonia, insuficiência cardiorrespiratória, hemorragia gástrica, leishmaniose, desnutrição, água contaminada, fome… É provável que, ao fechar-mos esta edição, mais um índiozinho guarani-kaiowá tenha morrido de desnutrição e outras doenças associadas, em suas aldeias de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Este ano, 21 índios, de três meses a quatro anos já morreram, em suas aldeias e hospitais públicos, vitimados por diversas doenças, quase todas adquiridas em função da falta de alimentos e das precárias condições da área em que vivem.
Em 62% das aldeias Bororó e Jaguaripu, onde as crianças estão morrendo, não existe água potável. Para o médico Halim Girade, do Unicef, que recentemente visitou a região, “uma criança desidratada que recebe água contaminada não só não vai melhorar, como vai piorar muito.”
Só no Hospital Universitário de Dourados, outras 55 crianças indígenas encontram-se internadas com quadro de desnutrição.
A falta de florestas nas duas aldeias, onde vivem 11 mil índios, é outro complicador, pois nem lenha existe para fazer o fogo. A área foi desmatada antes da criação da reserva indígena.
Sucessão de erros
Para os indigenistas, a decisão de transferir da Funai para a Funasa – Fundação Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde – a tarefa de cuidar da saúde dos índios foi um equívoco, porque os técnicos daquela fundação demonstram desconhecer a real situação dos índios e como tratá-los.
A Funasa decidiu lançar uma campanha de vacinação dos índios contra difteria, tétano, coqueluche, poliomielite, sarampo, rubéola, varicela, pneumonia, hepatite B, gripe, tuberculoso e febre amarela, alcançando 14.200 índios em 12 estados. Trata-se de uma meta excessivamente modesta, se for considerada a população de 740 mil índios que vivem em aldeias em todo o País.
Apesar do grande número de crianças índias que já morreram de desnutrição e outras doenças associadas este ano, e das que se encontram internadas em estado crítico, o Ministro da Saúde, Humberto Costa, afirmou que as mortes de crianças índias “estavam dentro do normal.”
Depois, diante da repercussão negativa de sua declaração infeliz, o ministro desculpou-se e admitiu que “o quadro da saúde índigena no Brasil é escandaloso, terrivelmente preocupante”, mas ficou nisso. Não foram adotadas medidas eficazes para impedir a continuidade das mortes.
Reação – O Senado e a Câmara dos Deputados instituíram comissões de investigação para apurar as causas das mortes de crianças índias. Na Câmara, a comissão promoveu uma audiência pública com a presença de representantes do Governo, e segundo o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), “ nenhum dos convidados conseguiu explicar, até agora, por que as mortes ocorreram em aldeias de Dourados.
Para o deputado carioca, os representantes do governo “estão falando como se as mortes tivessem ocorrido no Afeganistão, e não no Brasil.” No decorrer dos debates, ficou claro que um dos motivos dos problemas enfrentados pelos índios de Mato Grosso do Sul é o pequeno espaço a eles reservado: 11,5 mil guaranis-kaiowás vivendo numa área de apenas 3.540 hectares virtualmente desmatados. Já os 4,5 mil índios da etnia caiapó ocupam uma área de 12 milhões de hectares.
Na mesma audiência pública, o coordenador da Comissão de Saúde Indígena da Funasa, Alexandre Padilha, alegou que é preciso investigar mais a fundo os motivos que levaram à desnutrição os índios guarani-kaiowá. Segundo Padilha, etnias como os retenas e os kadiwéus vivem na mesma região, têm o mesmo acesso a programas assistenciais públicos e não apresentam os indicadores de saúde dos Guarani.
Já o Secretário de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, José Giacomo Maccarin, afirmou que é preciso ampliar o acesso dos índios ao programa Bolsa Família. Ele informou que 312 famílias indígenas estão recebendo os benefícios e outras 510 serão contempladas a partir de abril corrente.
Contudo, na avaliação dos parlamentares que participaram da audiência pública, as medidas executadas ou anunciadas foram mero paliativo e não explicaram as causas reais do grande número de óbitos registrados entre os pequenos índios.
Assassinatos de índios
“O Governo Lula deixou finalmente o discurso enganoso de aliado da causa indígena para revelar sua verdadeira face de instrumento dos seus mais poderosos e letais inimigos.” O texto foi extraído de documento recentemente divulgado pelo Conselho Indigenista Misssionário – Cimi -, um órgão auxiliar da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
O CIMI informou que nos últimos dois anos, 63 índios foram assassinados, com uma média de 31,5 mortes por ano. Ou 52,9% maior do que a média anual dos assassinatos nos oito anos de gestão do ex-Presidente FHC.
A entidade reuniu-se recentemente na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, para aprovar o plano de ação deste ano. O documento do CIMI afirma que “setores influentes do governo federal – de olhos postos nas onipresentes e asfixiantes eleições de 2006 – , do Legislativo e do Judiciário agem nitidamente como agentes do poder financeiro, das grandes empresas, dos fazendeiros, do agronegócio, dos invasores e até mesmo de criminosos que se utilizam da violência na grilagem e usurpação dos territórios indígenas.”
Para dom Franco Masserdotti, bispo de Balsas-MA e presidente do CIMI, a entidade não vê “grupos políticos alternativos” que possam efetivamente representar os interesses dos índios no governo e no Congresso, não restando outra alternativa senão pressionar para restabelecer prioridades.
Os índios da Caatinga
Os índios “caatingueiros” representam 90% das etnias indígenas de Pernambuco, composta por dez povos e uma população de cerca de 35 mil pessoas.
Fotos: Índia Quitéria Pankararu em dia de ritual e abaixo Ailton Truká é um dos líderes da tribo, única a se localizar numa ilha fluvial do rio São Francisco, em Cabrobó-PE
Josélia Menezes, de Pernambuco (texto e fotos)
Os nomes são exóticos, sonoros e bonitos: Kambiwá; Kapinawá, Pankararú, Pankará, Truká, Tuxá, Atikm, Pipipâ, Funiô e Xucuru. Eles são os remanescentes dos primeiros habitantes da Caatinga pernambucana, antes da colonização da região há três séculos (com exceção dos Xucuru, que habitam o Agreste, faixa intermediária entre o Sertão e o litoral). Passados três séculos de resistência, eles ainda lutam para manter sua identidade cultural e vivem um processo de ressurgência. Os índios “caatingueiros” representam 90% das etnias indígenas de Pernambuco, composta por dez povos e uma população de cerca de 35 mil pessoas, o que coloca o estado na quarta posição no que se refere a quantitativo no País, sendo ultrapassado apenas pelos estados do Amazonas, Pará e Acre, segundo dados da Funai. Esse crescimento foi incrementado nos três últimos anos, quando dois novos grupos foram reconhecidos pela Funai, os Pipipã e os Pankará.
Para Roberto Saraiva, do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, entidade da Igreja Católica que apóia a causa indígena, o que tem havido é a ressurgência da identidade indígena não só no estado, como em todo o Nordeste. Isso vem se dando, segundo ele, desde o final da década de 70. “Nesse período os povos de Pernambuco saltaram de 5 para 10 etnias e Alagoas, de 4 para 10 também”, afirma Saraiva. Atualmente o Nordeste conta com 42 grupos, dos quais cerca de 60% têm suas reservas na Caatinga. Outro fato que tem influenciado o ressurgimento é a identificação e homologação das terras indígenas”. Cerca de 80% se deu nos últimos 15 anos”.
Não é à toa que a Caatinga virou o último refúgio para os índios do Nordeste. O isolamento e a inacessibilidade dos rincões foi fator preponderante para quem era perseguido, acossado e dizimado por grandes proprietários. As terras de baixa qualidade econômica, as serras e ilhas fluviais do rio São Francisco os redutos que lhes restaram.
O povo Truká, que vive na ilha de Assunção, no município de Cabrobó, é o único que se orgulha da abundância de água, tão cara aos sertanejos. Em áreas montanhosas ficam as reservas dos Atikum e Pankará (no município de Carnaubeira da Penha), Pankararu (Tacaratu) e Xucuru (Pesqueira). Em planícies arenosas, com gravíssimos problemas de água, estão os Pipipã (em Floresta), Kambiwá (Ibimirim), Tuxá (Inajá) , Kapinawá (Buíque) e Funiô (Águas Belas).
Insegurança alimentar
Todos eles não fogem a realidade dos sertanejos não-índios. Seu cotidiano é marcado pelas secas, dificuldades de sobrevivência e de assistência pública no que diz respeito a saúde, educação e desenvolvimento. Nos últimos anos, entretanto, se percebe uma maior presença do estado junto às reservas. As medidas ainda são consideradas insuficientes pelas lideranças indígenas, principalmente porque a economia das reservas se limita à agricultura de subsistência, uma pecuária incipiente e uma fruticultura restrita às reservas serranas ou à ilha de Assunção. “A insegurança alimentar e a fome marcam as reservas do Nordeste”, afirma o antropólogo Enyo Trindade, da UNB. A situação apontada por Trindade é confirmada pelas lideranças A falta de infra-estrutura nas áreas, como estradas, transporte e acesso à tecnologias também são apontados por eles como entraves ao bem-estar.
O artesanato, utilitário e decorativo, em palha e madeira, começa a ser timidamente estimulado, mas não há base sólida para a sua comercialização. Na região assolada pela seca, apenas o artesanato Kambiwá se destaca e pode eventualmente ser encontrado em feiras de artesanato. Já o turismo cultural nas reservas ainda não é explorado em função da total falta de estrutura.
Indios da Caatinga
A questão fundiária
Índios Pankararu (Tacaratu) vestidos a caráter para incorporar os “praiás”
que mantém contato com os encantados [espíritos ancestrais]
A questão fundiária ainda é, como no resto do País, a grande preocupação das etnias, segundo a própria Funai-Recife. Os Pankararu, com 5 mil índios, ainda não tiveram a totalidade de suas terras demarcadas e vivem em 8 mil hectares. Os Truká, com cerca de 2.500 índios, vivem em conflito com posseiros. Os Pankará, reconhecidos pela Funai há pouco mais de um ano, ainda não têm suas terras definidas. Os Xucuru também vivem conflitos fundiários com posseiros. São os que mais tem sofrido violência em Pernambuco, ao lado dos Truká.
A identidade cultural é marcada pelo toré, dança e canto ritual, presente em todas as tribos. A jurema, bebida sagrada utilizada também nos rituais, está presente em quase todos os grupos. A festa do ouricuri aparece nas reservas Kambiwá, Pipipã e Funiô. Já os Pankararu têm um número significativo de festas exclusivas da etnia, como o Cansanção, o Menino do Rancho e a Festa do Imbu. Seus rituais têm a presença dos “praiás”, com suas longas vestimentas de fibra de caroá e identidade secreta, exclusivamente masculina de quem as veste. Eles representam a ligação entre os índios e os espíritos, chamados de “encantados”. De todos os grupos, apenas os Funiô ainda mantém a língua nativa, o Yathê, ensinado às novas gerações. As demais, apenas guardam vestígios, presentes nos cantos do toré.
Questão ambiental
A questão ambiental é complexa nas reservas. A seca, a sobrevivência e a superpopulação agravam o desmatamento, a extinção de espécies da fauna e a desproteção do solo. O assunto é pouco debatido e não há nenhum projeto ambiental específico em andamento nas áreas.
A educação tem sido a trincheira mais recente deles na luta pela dignidade. A articulação envolve todas as etnias e está direcionada para a elaboração de uma política de educação indígena no estado, com a participação efetiva dos índios. As exigências incluem um modelo de gestão específico para a realidade, a valorização dos educadores propostas pedagógicas de valorização étnica, financiamento e estrutura física necessária.
As reservas dispõem de escolas nas aldeias, mas muitos jovens ainda precisam se deslocar até a cidade mais próxima, geralmente em caminhões com desconfortáveis bancos de madeira. Esse é o caso dos Pankará, cujas crianças viajam seis horas, de ida e volta, para chegar às escolas de Floresta, e muitas vezes, sem merenda nas escolas, ficam até 10 horas sem se alimentar.
“Estamos acostumados historicamente a resistir. Estamos certos de que a educação é a nossa redenção, por isso estamos ampliando a presença nas universidades”, explica Eliza Pankararu que acaba de fazer especialização e, como tema da monografia, aborda justamente a educação na reserva.
Não há dados estatísticos, mas os Pankararu se orgulham de terem acentuado número de jovens universitários na reserva, número que vem crescendo ano a ano.
“Estamos acostumados historicamente a resistir. Estamos certos de que a educação é a nossa redenção.”
Paraná quer formar professores indígenas
O governo do Paraná tem um desafio pela frente: formar professores indígenas para trabalhar nas escolas de educação básica nas aldeias Kaingang, Guarani M’Byá e Guarani Nandeva. Depois de um encontro entre técnicos do Ministério da Educação, da Funai, lideranças indígenas e da Secretaria Estadual de Educação do Paraná, foi feito um diagnóstico da realidade da educação escolar indígena no estado. Sobre formação de professores, os participantes do encontro tomaram quatro decisões: caberá ao MEC coordenar a proposta de implantação de um curso de formação para professores Kaingang no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; os professores do povo Guarani, que não têm formação completa em nível médio, vão se integrar ao curso de formação guarani desenvolvido por Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Espírito Santo; a Secretaria de Educação do Paraná deve implantar, com apoio do MEC, nova política de formação de recursos humanos para a educação escolar indígena; e o MEC vai apoiar a edição de materiais didáticos específicos de autoria indígena para uso nas escolas do estado.
O coordenador de Educação Escolar Indígena do MEC, Kleber Gesteira, explica que ficou acertado que o MEC e a Funai vão desenvolver oficinas de formação em políticas públicas para os professores indígenas e que a Secretaria de Educação vai criar o Conselho de Educação Escolar Indígena. O objetivo é qualificar professores indígenas para assumirem as escolas. No Paraná, dos 136 professores das 27 escolas das aldeias, 67 são indígenas.
Quando o professor não é indígena, a escola usa monitores bilíngües para traduzir os conteúdos das disciplinas. Até a 4ª série do ensino fundamental é obrigatória a educação em língua materna. O uso de tradutores é criticado pelas lideranças indígenas, que querem seus professores no centro da sala. No Paraná, das 27 escolas indígenas duas pertencem à rede estadual, o que está em desacordo com o Plano Nacional de Educação e a Resolução nº 3/99, do Conselho Nacional de Educação, que determinam que as escolas indígenas devem ser mantidas pela Secretaria de Educação.
A estadualização da rede será tema de audiências públicas nos territórios indígenas do estado. O objetivo é fazer os povos participarem das decisões sobre o destino que será dado às escolas. Cerca de 12 mil indígenas (3.362 estudantes) vivem em 21 aldeias no estado.