Expedição ao rio das Velhas
19 de agosto de 2005fotos: Cuia Guimarães A expedição navegou o rio das minas (região das montanhas) ao gerais (chapadão do Cerrado). Partiram da Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, e chegaram à Barra do Guaicuí, no encontro com o São Francisco Organizar uma expedição pelos rios brasileiros continua a exigir um fôlego enorme. Do planejamento à execução do… Ver artigo
fotos: Cuia Guimarães
A expedição navegou o rio das minas (região das montanhas) ao gerais (chapadão do Cerrado). Partiram da Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, e chegaram à Barra do Guaicuí, no encontro com o São Francisco
Organizar uma expedição pelos rios brasileiros continua a exigir um fôlego enorme. Do planejamento à execução do projeto há um longo caminho a ser percorrido. As tarefas são múltiplas e envolvem aspectos de segurança, alimentação, hospedagem, equipamentos, transporte e custos. O coordenador do Projeto Manuelzão da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, Apolo Heringuer Lisboa, ao sugerir e realizar a expedição pelo rio das Velhas, cumpriu uma meta e marcou a viagem como um fato histórico. Navegar pelas águas do rio das Velhas, da nascente à foz, foi uma travessia física e metafísica que envolveu os participantes do projeto e a comunidade da bacia hidrográfica do Velhas. O Projeto Manuelzão descobriu uma Minas Gerais tão pertinho e até então escondida do campo de percepção. À medida que a travessia do rio avançava, o resgate da cultura revelava outra Minas. Nesse contexto, de tanta riqueza, a equipe encontrou as várias Minas de Carlos Drummond de Andrade.
Afluente do Rio das Velhas recoberto de água-pés, devido à poluição de dejetos humanos
Em setembro de 2003, canoístas do Projeto Manuelzão desceram o rio das Velhas. Remaram com paixão os 761 km que separam a nascente, em Ouro Preto, da foz, no rio São Francisco.
A expedição não olhou o rio da ponte, mas singrou suas águas. Vivenciou um rio agonizante poluído, com esgotos domésticos e dejetos humanos.
Apesar dos problemas ambientais, a mensagem é de esperança, pois os canoístas constatam que o rio ainda vive e consegue se recuperar. Os expedicionários conclamavam a população para reivindicar das autoridades a construção e operacionalização da estações de tratamento de esgoto.
Os canoístas navegaram o rio das minas (região das montanhas) ao gerais (chapadão do Cerrado). Partiram da Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, e chegaram à Barra do Guaicuí, onde o Velhas deságua no rio São Francisco.
A viagem revelou a presença constante do rio na vida das pessoas. Essa relação de intimidade manifesta-se em causos, histórias, festas, músicas e lendas. O rio, coluna vertebral do estado, sustenta a cultura popular.
A expedição representou uma dupla travessia: de gente e de rio. O rio tem vida e reflete, como um espelho, os impactos antrópicos de cada município pertencente à bacia do Velhas.
A leitura do rio, contextualizada no tempo e no espaço, aborda a questão ambiental de forma integrada e possibilita um aprendizado rico e significativo.
Com o objetivo de partilhar o aprendizado da proximidade, o coordenador da expedição pelo rio das Velhas, Eugênio Marcos Andrade Goulart, médico-pediatra, professor da Faculdade de Medicina da UFMG e integrante do Projeto Manuelzão, conta um pouco dessa travessia histórica pelo rio das Velhas.
Para Eugênio, o sucesso e impacto da expedição rio das Velhas deve-se ao Projeto Manuelzão que vem trabalhando, com a comunidade há mais de oito anos. A meta do Projeto Manuelzão para a região metropolitana de Belo Horizonte em 2010 é, em ordem de prioridade, pescar, nadar e navegar.
Na esfera política, o governo estadual abraçou a causa e é um aliado importante para atingir o objetivo do projeto.
BH e Contagem bosteiam o rio
A Expedição Manuelzão desceu o rio das Velhas e foi recebida entusiasticamente pelas populações ribeirinhas
O ribeirão Arrudas, que corta Belo Horizonte, é um depositório de lixo, de esgoto e de desesperança ambiental.
O planejamento da expedição levou seis meses. A característica determinante nessa fase foi a coleta diversificada de dados, como levantamento aéreo de toda a calha do rio, fotocópia de mapas, cálculo de distâncias, identificação de possíveis acidentes. Paralelamente, a equipe ia estipulando as horas de remada, horário de partida e chegada, locais de pouso e acampamentos.
Eugênio ressaltou que relatos de pesquisa de Langsdorf (1824), Richard Burton (1867) e de outras expedições mais recentes pelo rio das Velhas serviram de referência relevante para a organização e o sucesso da empreitada.
No princípio dez pessoas estavam envolvidas. Gradativamente, a equipe atingiu 30 integrantes. As pessoas perceberam a importância histórica da expedição e a vontade de participar cresceu e agregou novos personagens.
Diário
Registrar a expedição “tintim por tintim” foi uma tarefa permanente. Afinal, o diário de viagem forneceria dados para publicação de um livro. O caderno de capa dura, preta e branca, de 15x21cm, sem espiral e com 200 páginas, tornou-se um tesouro bem guardado. Sempre colado ao corpo, dentro da mochila pendurada nas costas. Mas havia outra razão para tanto cuidado: o medo de perdê-lo. “Imagine se molhasse, se o rio levasse, se o barco virasse”, confessou Eugênio. Prevenido, periodicamente xerocava as páginas escritas e deixava uma cópia em Belo Horizonte.
A cada noite, Eugênio desenvolvia as anotações sumárias registradas durante o dia, no calor da hora. Quando a lembrança trazia mais dados, ele encaixava a informação no texto. Ao todo, o diário contou com mais de 100 páginas escritas a caneta. “Nunca imaginei que ia ter tantas histórias para contar”, diz Eugênio. E arremata: “Se eu não tivesse lá eu não criaria nada. É no campo que se consegue inspiração, imagens fantásticas, material para trabalhar”.
O rio surpreende
A viagem transcorreu numa sucessão de tensões, surpresas e esperanças. Os canoeiros navegaram pelo alto, médio e baixo rio das Velhas, em toda sua extensão. Eugênio surpreendeu-se com os acontecimentos. A expectativa inicial de uma certa monotonia passou ao largo. Sumariamente descreveu a travessia: “O Alto Velhas, é quase limpo. Corresponde a nascente do rio em Ouro Preto, é um trecho encachoeirado, com corredeiras. A ansiedade da partida e o risco de acidentes deram certa tensão no início. O rio começa a ser agredido… No Médio Velhas, região da Grande Belo Horizonte, a grande agressão é o lançamento do esgoto doméstico de 3 milhões de habitantes. Belo Horizonte e Contagem bosteiam o rio. Como é um trecho bastante poluído, o corpo de bombeiros desaconselhou a navegação. Mesmo assim a decisão de vivenciar o problema de perto prevaleceu. Esse trecho de águas pretas denuncia a prática irresponsável de lançamento de dejetos no rio e alto grau de poluição. Um rio sofrendo, gemendo, impregnado de espuma dos detergentes domésticos. Em seguida, vêm os agrotóxicos, as minerações e as indústrias. A vida urbana corre ligeira e nem nota o rio. O cheiro insuportável obrigou os canoeiros a usarem máscaras.
Finalmente, o último trecho, o Baixo Velhas, quando o rio deixa de ser agredido e volta a ficar gradativamente limpo. Demora centenas de quilômetros para ir recuperando-se. Próximo ao encontro com o São Francisco, o rio das Velhas consegue recuperar-se: as águas servem para irrigar os bananais e ele volta a ter peixe. É emocionante! Esta última etapa foi mais relaxante, para desaguar no final comemorado com muita festa e vitória”. Desta forma, os canoeiros paramentados cumpriram, com garra e remo, a etapa da travessia de um corpo a corpo com o Velhas.
Mineiridade
Durante a travessia, outro corpo a corpo tornou a expedição relevante: o contato com a população ribeirinha reacendeu a mineiridade. O grupo encontrou uma diversidade de pessoas apaixonadas e preocupadas com o rio, a cidade, o patrimônio histórico material e imaterial. As edificações contam histórias: o convento de Macaúbas (1714), a Fazenda das Minhocas em Jaboticatubas (1716), Fazenda da Jaguara, de 1750, guardiã do ciclo do ouro, a Mina do Sumidouro e o bandeirante Fernão Dias. Outros legados históricos têm marcas do rio, como a igreja inacabada em Barra do Guaicuí, a ponte da ferrovia em Santo Hipólito, com sua imponente estrutura metálica belga adormecida na Serra do Espinhaço.
O médio Velhas, na região da Grande BH, recebe uma agressão pelo lançamento do esgoto de 3 milhões de habitantes. BH e Contagem bosteiam o rio.
O rio das Velhas, coluna vertebral de MG, sustenta a cultura popular. A expedição fez uma dupla travessia: de gente e de rio. O rio tem vida e reflete os impactos antrópicos de cada município.
O rio também luta para viver
A Estação de Tratamento de Esgoto do córrego do Onça, que drena a região de BH e Contagem, completou uma década de construção e até hoje não funciona
Na cidade de Várzea da Palma, baixo Rio das Velhas, foi grande a receptividade da população que está preocupada com a poluição industrial
A concepção de rio como um paciente, um doente perpassa o depoimento. O rio está ferido mas não está morto, pode se recuperar. A metáfora rio/pessoa confere um caráter de sujeito ao Velhas. Assim o rio retribui a forma de tratamento.
O esgoto lançado no rio Arrudas e no Onça, por Belo Horizonte, vai para o Velhas, do rio das Velhas para o rio São Francisco e do São Francisco para o mar. A população precisa mobilizar e cobrar das autoridades uma ação enérgica para tratamento dos esgotos. A Estação de Tratamento de Esgoto do córrego do Onça, que drena a região de Belo Horizonte e Contagem, completou uma década de construção. Mas até hoje não está pronta e nem funcionando.
A equipe conseguiu perceber como a população das pequenas cidades trata o rio das Velhas. Reconhecem e valorizam como um patrimônio cultural. Uma relação de afetividade construída no convívio cotidiano com o rio, traduzida nos versos do poeta ribeirinho Tasso Alvarenga ou pontilhado na viola de Nelson Jacó. A morte dos peixes é muito forte, dramática, marcante. As pessoas que vivem o problema do Velhas com proximidade sentem-se indignadas. Elas gostam do rio e manifestam uma vontade de fazer alguma coisa. Desejam nadar e pescar novamente no rio das Velhas. O rio já foi limpo! Por que não tratar o esgoto? O Projeto Manuelzão semeia esperança.
O resultado
O resultado da expedição rio das Velhas está publicado em dois livros. O primeiro, um relatório da viagem que descreve e registra a aventura da equipe por terra e por água. O segundo livro, apresenta uma coletânea de textos técnicos-científicos em 32 artigos assinados por profissionais de diferentes áreas do saber. A publicação dos dois volumes é primorosa, com fotografias belíssimas, e custa 180 reais. Quem deseja pode adquirir também a fita de video VHS ou DVD da expedição por 20 reais.
Centenas de escolas da Bacia do rio das Velhas receberam, como doação, os livros e uma fita. Assim, o professor pode planejar atividades, permanentes e dinâmicas, em educação ambiental, tomando como referência o contexto da bacia do rio das Velhas.