A insustentável cultura da caça
28 de setembro de 2005O advogado Antônio Silveira entra na polêmica e explica que existe alternativa para a caça esportiva
Fotos: Ari Quadros
Na região do Alegrete, ambientalistas da Fundação Ibirapuitã estão sempre promovendo manifestações contra a caça esportiva
Antônio Silveira – ENTREVISTA
Folha do Meio – Como o senhor vê a questão da caça, sob o enfoque do meio ambiente, do turismo e do lazer?
Antônio Silveira – Vejo como um dos mais controvertidos e interessantes temas da atualidade. Um tema que tem que ser discutido sob a ótima ambiental, econômica e até filosófica. A caça, como esporte e lazer, é praticada ainda hoje em muitos países como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Itália e até o Brasil, no caso do Rio Grande do Sul. Mas também começa a existir, por parte de ecologistas e entidades protetoras de animais, uma crescente resistência. Sempre existe o debate, com argumentos a favor e contra.
FMA – Quais são os principais argumentos contra e a favor?
AS – Normalmente, os principais argumentos favoráveis à caça esportiva são econômicos, lazer e até, por incrível que pareça, ecológicos. Como argumento econômico, é fácil justificar, pois a pesca e a caça nos EUA geram mais de 100 bilhões de dólares. Imagine que na França há 1,6 milhão de caçadores licenciados, na Itália 1,5 milhão, na Espanha 1 milhão e na Grã-Bretanha 600 mil. Dizem ainda que esta atividade é o sustentáculo de uma enorme indústria internacional de turismo, armamentos, munições, automóveis, roupas e equipamentos especializados, editorias e tecnologia em geral.
Como lazer, evidente que os adeptos da caça esportiva dizem que é um momento para relaxar. E, sob o ponto de vista ecológico, dizem que caçadores e pescadores são grandes zeladores da natureza, pois dependem dela. Dizem também que podem exercer um equilíbrio, quando algumas das espécies tendem a ter grande aumento de indivíduos, sem predadores naturais.
FMA – E os argumentos contrários?
AS – Olha, podemos elencar, em primeiro lugar, um argumento turístico-econômico, ou seja, a crescente conscientização ambiental e a crescente atividade do turismo de observação. Tudo isso leva à conseqüente preservação de áreas naturais. A observação de animais selvagens vivos na natureza tem crescido muito. O turismo de observação é o segmento do ecoturismo onde o ecoturista passa a observar a beleza da natureza. Vai contemplar aves, animais, pegadas e até baleias. O turista tem o gosto e o prazer de admirar os animais, sobretudo aves, em seus habitats . Quer fotografar, gravar seus cantos e eternizar na própria retina aquele momento e aquelas imagens.
Os americanos gastam 29 milhões de dólares/ano em atividades relacionadas à observação da vida selvagem. O que mostra a importância turístico-econômico da fauna preservada, naturalmente, com a proibição da caça.
A força do turismo
de observação
Antônio Silveira: “Com a proibição da caça em qualquer das modalidades, agregada ao desenvolvimento do turismo de observação, teríamos uma excelente “sala de aula natural. Toda a natureza pode ajudar na formação e conscientização do cidadão moderno ”.
FMA – Quais as principais formas de turismo de observação?
AS – As principais formas do turismo de observação são as de aves (birdwatching ou birding) e a observação de baleias e golfinhos (whale watching). É bom salientar que hoje no mundo tem cerca de 100 milhões de praticantes. São mais de 80 milhões só para aves. Veja o seu potencial econômico. O turismo de observação propicia, entre outras coisas, renda para regiões naturais que têm pouca possibilidade de desenvolver as atividades econômicas tradicionais; emprega a massa rural dando oportunidade de desenvolvimento pessoal, criando ainda novas oportunidades para atividades profissionais para biólogos e guias especializados etc. Segundo a “BirdLife” os americanos gastam por ano 29 milhões de dólares em atividades relacionadas a observação da vida selvagem. O que mostra a importância turístico-econômico da fauna preservada, naturalmente, com a proibição da caça.
FMA – E a possibilidade de se criar animais em grandes fazendas para servirem “ao instinto selvagem” dos praticantes da caça esportiva?
AS – Essa é uma boa questão. Aí tem dois aspectos. O científico e o ecológico. Em termos científicos, a manutenção e os estudos de animais em estado selvagem permitem melhores resultados técnicos, diferentemente em se utilizando animais criados em cativeiro ou em reservas altamente controladas. Nestas reservas eles apresentam, normalmente, comportamento alterado devido ao estresse. No campo ecológico devemos observar que não se pode comparar a masto-fauna africana, americana e asiática, com a das florestas tropicais como as da América do Sul. Lá, os animais de porte como os gnus, antílopes, alces, búfalos, entre outros, vivem normalmente em grandes bandos. Já, aqui, nas florestas tropicais, os animais de porte maior como as antas, onças, capivara e os veados, ou são solitários ou andam em pequenos grupos. Isso impede que possam ser utilizados como potencial de caça amadora, pois não haveria tanta caça para tantos “caçadores”. Em se liberando a caça aos nossos raros, solitários e furtivos animais, em pouquíssimo tempo não restaria mais nenhum.
FMA – E a criação de animais selvagens em fazendas de caça?
AS – Nem é muito fácil e muito menos econômico, justamente porque nossos animais andam em pequenos grupos e são extremamente territoriais. Sem contar um outro grave problema: a introdução em áreas naturais de cães de caça e de animais de outras regiões, para a prática da famigerada caça, podem introduzir doenças exóticas. Existe, sim, a possibilidade da disseminação de doenças como febre aftosa.
FMA – Sob o ponto de vista jurídico, como o Brasil convive com a questão da caça esportiva?
AS – Olha, sob o ponto de vista jurídico, no Brasil a caça era regida pela Lei 5.197/67 que era o Código de Caça. Agora, a caça está proibida pelo artigo 225,§1º, VII, da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de “proteger a fauna e flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. O art.29, da Lei 9.605/98 [Crimes Ambientais] também proíbe expressamente a caça, permitindo apenas o abate de controle (art.37, II e IV).
Além disso, deve-se observar que há uma evolução no sentido de compreender que a fauna é um bem difuso, ou seja, de todos nós, e que deve ser preservada por todos. Sempre é bom lembrar que nos termos do art.225, de Constituição Federal, o meio ambiente equilibrado e sadio é um direito de todos.
FMA – A gente vê também que muitos ambientalistas são contra a caça esportiva por motivos filosóficos. Pela defesa da vida, num mundo já tão violento…
AS – É verdade e isso é muito importante. Filosoficamente, temos que observar que esta é uma colocação humanista e que deve ser valorizada. Aliás, tem sido valorizada pelas pessoas mais conscientes e integradas nos novos conceitos mundiais de preservação do ambiente global. E tem ainda a questão ética. Temos que nos conscientizar que o respeito entre os seres humanos e as demais formas de vida está crescendo cada vez mais, fruto da conscientização ambiental. Neste sentido, não há mais espaço para a caça pelo mero prazer de caçar, de lazer, de relaxar.
FMA – Dá para concluir que a caça esportiva é uma atividade ecologicamente incorreta e economicamente inviável?
AS – Dá sim. E mais: além de proibida pela legislação, sua prática não trás nenhuma vantagem à sociedade, ao contrário, propicia uma perda em termos socio-econômico-ecológico. Isso sem contar que estaremos mostrando que somos muito insensíveis com os demais seres viventes. Pior: a caça esportiva está na contramão da história ética da humanidade.
FMA – E existe ainda o aspecto educativo?
AS – Isso mesmo! Não dá para terminar sem falar do aspecto educativo. Com a proibição da caça em qualquer das modalidades, agregada ao desenvolvimento do turismo de observação, teríamos uma excelente “sala de aula natural”. Os campos, as florestas, toda a natureza pode ajudar na formação e conscientização do cidadão moderno.
A natureza virgem, cheia de vida, é um lugar perfeito para as pessoas terem aulas de meio ambiente. Todos elementos estão ali à disposição. Não para serem caçados, mas para serem estudados, pesquisados, observados e contemplados. Nada como uma aula de educação ambiental a céu aberto. Não se pode esquecer que educação ambiental é hoje uma disciplina indispensável e obrigatória pela Lei 9.795, de 27/4/1999.
A natureza virgem, cheia de vida, é um lugar perfeito para as pessoas terem aulas de meio ambiente. Todos elementos estão ali à disposição. Não para serem caçados, mas para serem estudados e contemplados.