O CURRAL DE MOZART

29 de setembro de 2005

As famílias de chapadeiros ainda se recuperam da criação do Parque Estadual do Rio Preto e do impacto.


A cachoeira do Sumidouro: beleza e imponência


Uma antiga trilha de tropeiros, que servia para escoar madeira e mantimentos produzidos nos povoados de Grota Grande (atual Felício dos Santos), Mercês de Diamantina (atual Senador Modestino Gonçalves) e  Rio Preto para o Arraial do Tijuco, ainda é utilizada no local. A antiga fundição localizada em Bonfim e visitada por Auguste Saint Hilaire, em 1818, também se servia da trilha, que atravessa um labirinto de pedras e árvores nas proximidades da Lapa da Santa. É de uma beleza cheia de mistérios.


Museu a céu aberto: fora dos limites do parque está
a casa da fazenda Santa Cruz do Gavião


Fora dos limites do Parque, trechos ainda calçados atravessam matas e, depois de passar pela Fazenda Santa Cruz do Gavião, linda e preservada, vai chegar a Diamantina pelo antigo Caminho dos Escravos. A trilha está sendo limpa e será aberta ao turismo.
Todas as nascentes da cabeceira do Rio Preto estão oficialmente preservadas dentro dos limites do Parque.


A antiga casa de Mozart permanece como testemunha da ocupação da chapada


A visível degradação causada pelo gado na nascente do Córrego Taiobal, as pinturas rupestres perdidas sob a fumaça dos fogões improvisados pelos chapadeiros e trilhas excessivamente erodidas pelo trânsito dos animais denunciam a fragilidade da área. Uma área que até hoje expõem cicatrizes deixadas pelo garimpo e pela exploração de madeira no período colonial.
As cerca de 80 famílias de chapadeiros que exploravam a região ainda se recuperam da criação do Parque e de seu impacto em suas vidas. Não têm condições de perceber que, com o extrativismo descontrolado, criam seus filhos à custa do patrimônio de seus netos.


O jatobá foi mutilado pelos chapadeiros para a reconstrução do curral


Durante a segunda metade do século passado, Mozart Xavier de Senna foi uma espécie de guardião da Chapada. Organizava as atividades dos garimpeiros e dos coletores de sempre-vivas e criava alguns animais. Era solitário e tinha um jeito enviesado de perceber a realidade. Sua missão, que foi respeitada pela administração do Parque, terminou com sua morte aos 80 anos, em 1999.
Numa tentativa de manter uma das poucas atividades econômicas que conhecem, os chapadeiros ocuparam e reconstruíram o antigo curral que existia na Fazenda de Mozart.


Uma centenária, bela e misteriosa trilha dos tropeiros, ainda em uso.
 
Ao lado, uma mapa da região:
BR-040 até Diamantina –  176km
Diamantina até Couto de Magalhães – 34km
Couto de Magalhães até o trevo de São Gonçalo – 9km
Trevo até São Gonçalo (terra) – 8km
São Gonçalo até o Parque – 15km


Eles questionam a demarcação oficial dos limites do Parque. Depois de uma intervenção rigorosa da qual participaram os funcionários do Parque, a Polícia Ambiental do destacamento de Diamantina e a Polícia Militar de São Gonçalo do Rio Preto, o curral foi desativado. A apreensão do material usado foi realizada em 16 de junho.


O Parque Estadual do Rio Preto


O Parque Estadual do Rio Preto, criado em 1994, é administrado pelo IEF-MG. Seus 11.000 hectares ocupam toda a porção sul do município de São Gonçalo do Rio Preto.
Localiza-se na região do Alto Jequitinhonha e limita-se ao sul com o município de Diamantina e a leste, com o de Felício dos Santos. Devido às suas belezas naturais, ótima infraestrutura e administração eficiente, já é o terceiro Parque Estadual em número de visitantes, em Minas.
Quando da aprovação de seu Plano de Manejo, em setembro de 2004, a Folha do Meio Ambiente publicou uma reportagem sobre o Parque, em sua edição 152, outubro de 2004.
O  Parque conta com inúmeros atrativos turísticos. Pode-se destacar as cachoeiras do Crioulo e da Sempre-Viva, as pinturas rupestres e os mirantes naturais.
O  rio Preto possui como cobertura vegetal nativa, os campos de altitude, os campos rupestres, os cerrados, os cerradões e as matas de altitude, tipologias vegetacionais, que cobrem mais de 99,5% da área.
Na área do Parque predominam espécies vegetais importantes do estrato arbóreo como o pau-d?óleo, a sucupira, o ipê, o cedro, o jatobá, o ingá, a candeia, esta última bastante freqüente em áreas de transição entre a mata e os campos de altitude.
A extraordinária beleza cênica do parque, com seus imensos afloramentos rochosos, inúmeras cachoeiras e piscinas naturais, conferem à área enorme potencial para visitação e turismo ecológico.


Material confiscado aguarda decisão judicial
A maior parte da Chapada de Mozart se
encontra desprotegida fora dos limites do
Parque do Rio Preto. Sua beleza natural e
importância na formação do rio
Jequitinhonha tornam imperativa a
preservação de toda a Chapada.


O desmanche do curral do Mozart foi feito sob a supervisão da Polícia Militar de Minas Gerais


A densa população de marcela-do-campo (Achyrocline satureioides) faz o belo visual da Chapada


Sílvio Vilhena, Gerente Regional de Monitoramento e Controle do IEF para o Alto Jequitinhonha e Antônio Augusto “Tonhão” – ge-rente do Parque, coorde-naram a operação. O material confiscado (moirões, esticadores e arames) aguarda decisão judicial para ser reutilizado.
O Comandante Marcos Lara e a Tenente Flávia Munhoz, sob a coordenação do Tenente Adelson, se encarregaram de transportar os participantes a bordo do helicóptero Guará 01, do IEF, reduzindo uma caminhada de 3 horas para um vôo de poucos minutos.
 Os irmãos Deco e Zé Rubens, funcionários do Parque (cujos nomes verdadeiros  José Hermínio Inácio e João dos Anjos Inácio, apenas os parentes mais próximos sabem) carregaram todo o material usado em lombos de burro. Usando broacas e cangalhas, levaram  as ferramentas e os alimentos usados na operação. Deco e Zé Rubens trabalhavam na serraria que foi desativada para a criação do Parque do Rio Preto. Ambos têm, hoje, suas vidas ligadas à recuperação e preservação da mata nativa e manutenção do Parque, atividades que exercem com entusiasmo.
Cilico se encarregou da “bóia”. Aliás, Cilico é o apelido de Prezentino da Luz, um nome que sua filhinha Laíze diz ser “o mais feio do mundo”. Bóia é o termo usado pelos tropeiros para designar sua alimentação ou sua marmita de comida. A expressão tem sua justificativa: é em alusão aos torresmos e outras iguarias que boiavam no caldeirão de feijão.
Cilico e seu pai foram os últimos garimpeiros a procurar diamantes nas cabeceiras do Rio Preto. Quando o rio foi declarado de preservação permanente por uma lei municipal de 1991, abandonaram o garimpo. Cilico conta que seu pai só se referia a Antônio Augusto, ex-prefeito de São Gonçalo do Rio Preto e um dos batalhadores pela preservação do rio e criação do Parque, como “aquele fedabuta do Tonhão”.
Cilico, com a coragem de quem viveu em lapas solitárias, zela hoje pela região da Chapada, monitorando focos de incêndio, limpando as trilhas e observando possíveis alterações. Não teme nem as letras, com as quais está entrando em contato. Só teme, mesmo, o banho frio diário. Faiscador intuitivo de pedras e palavras, exercita: “Ô moço, a água fria dá uma esmorecência na gente!”. Um aquecedor solar está sendo providenciado para levar algum conforto à sua vigília. Arguto e muito disposto, podem ter certeza que com alguma ajuda dos amigos, logo ele próprio estará lendo esta reportagem.
Os vereadores de Felício dos Santos reclamam do rigor com que a opera-ção foi realizada. Questionam que o mesmo rigor, ou até maior, deve mesmo ser usado contra as dragas que ferem mortalmente o Rio Jequitinhonha. Esse é também o sonho de todos os que se preocupam com o meio ambiente. Como disse o poeta, “a resposta, meu amigo, está soprando no vento”.


 Felício dos Santos
A maior parte da Chapada de Mozart se encontra desprotegida e fora
dos limites do Parque do Rio Preto


O município de Felício dos Santos, antigo povoado de Grota Grande, foi desmembrado em 1962 de São Gonçalo do Rio Preto. Tem um patrimônio natural e histórico importante, com fontes de águas termais, a mata do Isidoro, matas nativas que protegem a cabeceira do Rio Araçuaí e a maravilhosa Cachoeira do Sumidouro, com seus 80 m de altura.
O artesanato do Vale do Araçuaí, onde o município está localizado, é conhecido e valorizado no Brasil e em várias partes do mundo. Um balneário de águas quentes, em fase final de construção, aponta novas opções para a economia com o início da exploração turística. A maior parte da Chapada de Mozart se encontra desprotegida fora dos limites do Parque. Sua beleza natural e importância na formação do rio Jequitinhonha tornam imperativa a preservação de toda a Chapada. Como sintetizou Heitor Bispo, funcionário da Prefeitura de Felício dos Santos: “estamos pisando em nossa caixa d’água”. A altitude, o frio e a vegetação tornam a área inadequada para a pecuária. Certamente a comunidade ganhará muito mais encontrando alternativas para a sobrevivência dos chapadeiros em atividades que respeitem este santuário.
 É possível, com criatividade, disposição e coragem, modificar também a história de vida dos chapadeiros. O rio Soberbo, também conhecido como Jequitinhonha Preto, é um dos braços formadores do Jequitinhonha. O rio Araçuaí, principal afluente do Jequitinhonha, é maior e mais famoso que o rio Preto, seu tributário. E a experiência acumulada na preservação do Rio Preto e criação do Parque em 1994 – desde então nenhum incêndio aconteceu dentro de seus limites – está à mão.