Lagos e rios: a gestão especial

Características, exploração, economia, política e a gestão dos grandes corpos d’água

20 de março de 2006

BAIKAL, TITICACA e outros

Raymundo Garrido: cada rio e cada lago têm sua importância de acordo com a localização, com o tamanho, com a economia da região e até com a História.

 

 

Silvestre Gorgulho FMA  – Quais os rios e lagos mais importantes da Terra?
Raymundo Garrido – Todos os rios e lagos têm sua importância de acordo com o lugar, com o tamanho, com a localização, com a economia da região e até com a história. O rio Jordão, o lago Tiberíades, o mar Vermelho, o rio Sena, o rio São Francisco, o Mississipi, enfim, cada rio ou lago ou mar tem sua importância.
Por isso, para se ter uma resposta mais correta, mais específica, há que se ter um critério para definir a importância que se quer dar a cada um destes acidentes geográficos.
Por exemplo, se o critério para rios for o comprimento, o Amazonas e o Nilo e seriam os primeiros a fazer parte da lista. E, nesse caso, rios importantes sob o ponto de vista econômico como, por exemplo, o Tâmisa e o Tietê, teriam que ficar de fora.
O mesmo se aplica aos lagos. Como a comparação das características naturais dos rios e lagos com suas características antrópicas não é inteiramente possível, a definição dos rios e lagos mais importantes da Terra deve resultar tanto mais da notoriedade que um ou outro fator emprestou a cada um deles.

FMA – Neste caso, vamos adotar um critério geral que mescle as dimensões do corpo d'água com o seu volume acumulado ou fluxo de água, além de alguma outra característica de relevo.
Garrido – Vamos então escolher um ou dois corpos d'água por continente de acordo com o critério da notoriedade.
Digamos que no continente americano sejam relevantes os casos da região dos Grandes Lagos, a bacia Amazônica e o lago Titicaca; na Europa, a bacia do rio Danúbio e do rio Volga, além do lago Baikal; na África, a bacia do rio Nilo e o lago Vitória; e na Ásia o rio Yang-Tzé.
Por esse processo, ficariam de fora os continentes centroamericano e antártico, além da Austrália, justamente pela falta de casos notórios. Como não há espaço para se falar de todos esses casos notáveis, sugiro que escolhamos alguns.

GRANDES LAGOS: EUA

FMA – Iniciemos com a região dos Grandes Lagos, entre Estados Unidos e Canadá.
Garrido – A região dos Grandes Lagos é importante não somente pelas dimensões de seus corpos d'água como também pelo papel que desempenha no contexto da economia, que é uma das mais fortes do mundo.
Ali, cinco lagos de água doce formam o maior conjunto de lagos sobre a Terra, com 244.060 km2 de espelho d'água. São os lagos Superior, Huron, Michigan, Erie e Ontário que, além de constituírem manancial de abastecimento d'água para mais de 40 milhões de pessoas, servem ao transporte de minério de ferro, aço, petróleo, grãos, automóveis fabricados nos EUA e muito mais. A navegação se estende desde o estado do Minesota até o golfo de São Lourenço, perfazendo 3.766 km de um complexo sistema de vias navegáveis que inclui rios, lagos, canais e eclusas.
O turismo também muito depende desse conjunto hídrico, principalmente em função das quedas d'água de Niágara. Os lagos dispõem de um razoável estoque pesqueiro, formado por cerca de 350 espécies.
(Ver mapa na pag.19 que ilustra a localização desse conjunto de lagos).
 
FMA – Qual o volume total de água armazenada e que outros parâmetros caracterizam esses lagos?
Garrido – Em verdade, a água não está armazenada pois ela flui de um lago para outro até o lago Ontário. Daí segue para o rio São Lourenço sobre cujo leito escoa até o Golfo de São Lourenço, no Atlântico, entre Québec e New Brunswick.
Essa água tem, por assim dizer, um tempo de permanência – dito de residência –   longo em cada lago.
Mas, em um dado instante, o volume d'água que se encontra no total dos lagos é de 23.000 km3, ou seja, o suficiente para abastecer com água para uso doméstico uma cidade como São Paulo, durante 18 anos. De todos, o lago Superior é o mais profundo, com 440 metros no ponto de profundidade máxima. O Erie é o mais raso, sendo de 70 metros a sua maior profundidade.
(Ver tabela na pág. 19 com outras características de cada um dos cinco lagos).

FMA – E tem também a questão fronteiriça…
Garrido – Evidente! Desses lagos, somente o Michigan está inserido apenas em um dos dois países, no caso nos Estados Unidos. Todos os demais têm parte no Canadá e parte no território americano. Daí, entra em jogo a diplomacia, pois há que obedecer a política de gestão dos dois países.

 

A localização dos Grandes Lagos, o maior conjunto de água doce, entre os EUA e Canadá.

 

 

FMA – No que diz respeito à gestão, há diferenças de comportamento entre esses lagos?
Garrido – Há diferenças, sim. Por exemplo, o lago Ontário, devido a uma ligeira elevação em relação ao nível do mar, não congela no inverno como os demais. O lago Erie, por ser o de menor profundidade, rapidamente congela e também rapidamente tem suas águas aquecidas no verão e primavera.
Além disso, os usos impostos aos lagos não guardam as mesmas características entre si. Por exemplo, a bacia de contribuição do Huron é usada intensamente para a agricultura e é fortemente ocupada pelo ambiente urbano, o mesmo sucedendo com o lago Erie que tem as terras agricultáveis de melhor qualidade na região e tem sua bacia de drenagem também densamente ocupada pelo ambiente urbano. As bacias de contribuição dos outros lagos são menos densamente utilizadas.

 

Bacias hidrográficas na América do Sul e o destaque natural

do rio Amazonas e seus afluentes

 

 

 

 

 

 

FMA – E qual o principal problema de gestão do uso das águas dos lagos?
Garrido – Um dos principais problemas hoje enfrentados na gestão do uso dos lagos é relativo às águas de lastro que trouxeram algumas espécies invasivas para a região. Ainda não houve nenhuma iniciativa de peso para combater esse problema, exceto a edição de uma lei estadual, no Estado de Michigan (EUA) que prevê a imposição de pesadas multas pelo descarte de águas de lastro contaminadas.

NR: sobre águas de lastro, fizemos uma ampla entrevista com o professor Raymundo Garrido que está na edição 138, de  junho de 2003)

FMA – O fato de o rio São Lourenço fazer parte do sistema, tem alguma conseqüência a ser destacada?
Garrido – Sim, evidente que fazendo o rio São Lourenço parte do sistema – isso se pode ver bem no mapa – isso traz conseqüências. O conjunto dos lagos drena as águas a partir do Superior que as envia para o lago Huron por meio do rio St Marys, ao longo de 60 km. Daí, o Huron, que é hidrologicamente interligado ao Michigan, deixa as águas seguirem para o Erie, por meio de dois rios em seqüência, o St Clair e o Detroit.
Do Erie as águas se dirigem para o lago Ontário, fazendo uso do leito do rio Niágara e cumprindo um retorno em circuito fechado por meio de um canal artificial denominado Welland.
Finalmente, o lago Ontário despeja as águas no rio São Lourenço, de grande importância para a economia da província de Québec, que percorre 1.700 km até o Oceano Atlântico.

FMA – Mas não se pode sair do Estados Unidos sem falar no Mississipi-Missouri…
Garrido – É verdade. O Mississipi – Missouri é considerado o terceiro rio mais extenso do mundo, com 5.970km. Tem forte significado econômico dos Estados Unidos, devido a seu papel de escoador de produtos até o porto de Nova Orleans, no Golfo do México.

 

RIO AMAZONAS

FMA – Vamos falar agora sobre o rio Amazonas…
Garrido – O rio Amazonas é o de maior volume d'água. Depois de ser considerado o segundo mais extenso rio do mundo até bem poucos anos, o Amazonas ganhou dos cientistas o primeiro lugar. Várias expedições, uso de moderna tecnologia e fotos deram ao Amazonas 6.840km de extensão, da nascente em Carhuasanta, Nevado Mismi, Peru, até a foz no Atlântico. O Nilo continua com seus 6.690km e agora é o segundo mais extenso.
Para se ter uma idéia desse colosso que é o rio Amazonas, sua vazão na foz é de cerca de 175.000 m3/seg, o que corresponde a mais ou menos uns 60 rios iguais ao São Francisco em termos de água despejada no Oceano Atlântico.
Cerca de 60% da bacia se localizam no Brasil, ficando o Peru com 16%, a Bolívia com 10% e o restante dividido entre o Equador, a Colômbia, a Venezuela, Guiana e Suriname.
A região tem um clima  quente e úmido, apresentando variações diurnas de temperatura do ar maiores que as variações anuais. A temperatura média de 26°C durante a estação úmida sobe para 30°C durante a estação seca. Mas o que é altamente significativo é a precipitação média na bacia, de 2.200 mm/ano. Essa grande quantidade de águas pluviais contribui para a manutenção de uma densa rede de cursos d'água de pequeno porte e de igarapés.

FMA – O regime de chuvas na bacia é homogênea?
Garrido – Como a bacia amazônica é maior do que muitos países do mundo, não se pode esperar que as chuvas tenham um comportamento uniforme em todo o seu território. A estação chuvosa começa pela parte oeste da bacia e vai se estendendo até a região da foz do rio, no Pará.
Há também uma defasagem norte-sul, o que faz com que a contribuição dos afluentes que procedem do sul seja mais intensa do que aquela dos afluentes da margem esquerda do rio, procedentes do norte.
A subida e descida anual das águas é uma resposta à distribuição das chuvas, que é bastante heterogênea na região Amazônica, apresentando uma estação seca e uma estação chuvosa bem definidas.
A estação chuvosa inicia-se na parte oeste da bacia Amazônica e se dirige progressivamente para leste. A região apresenta ainda uma defasagem de precipitação entre as partes sul e norte, fazendo com que os afluentes vindos do sul atinjam os picos de inundação alguns meses antes dos afluentes vindos do norte.

FMA – Quais os elementos que dão importância a essa bacia?
Garrido – Quando se fala em um rio amazônico, vem logo em mente a idéia de super-abundância de água. Os principais elementos que dão valor estratégico e econômico à bacia amazônica são a água e a floresta, com toda a biodiversidade a esta inerente.
 A bacia Amazônica tem, então, a um só tempo, importância estratégica, ambiental e importância econômica. Estratégica sob o ponto de vista do equilíbrio climático dos países que a compõem e para o resto do planeta. Econômica pela exuberância de seus recursos naturais, tanto da água em si como da floresta, pois os rios formam os grandes eixos de comunicação, de transporte e de abastecimento. Na Amazônia, tudo é superlativo, grandioso.

NR: sobre Recursos Hídricos e Floresta, fizemos uma ampla entrevista com o professor Garrido que está na edição 156, de abril de 2005)

FMA – Se a bacia Amazônica tem tanta riqueza, representa tanto para a economia, porque ela é zero em relação ao PIB?
Garrido – Essa é uma verdade. Se o valor da natureza cresce tanto, por que não se agrega nada dela ao PIB? É bom lembrar que o conceito do PIB foi criado pelo economista inglês John Maynard Keynes, na década de 20. E tem muita gente que acha o conceito ultrapassado. Aliás, muitas ONGs – inclusive o WWF – já defenderam a proposta do PIB Verde.
Alguns cientistas acham que a natureza só vai ter mesmo valor quando ela fizer parte do PIB e não de um cálculo paralelo. Vamos a um exemplo concreto e recente: o furacão Katryna que arrasou Nova Orleans, nos Estados Unidos. Os prejuízos foram de bilhões de dólares. Evidente que houve reflexo no PIB norte-americano. Houve diminuição da atividade econômica, depois entrou muito dinheiro de ajuda humanitária para compra de casas, alimentos, roupas equipamentos etc. Saber quanto vale a natureza, quanto vale a descoberta de uma planta que cure, por exemplo, o câncer.
Quanto vale a saliva de um sapo que pode levar à cura da Aids? Quanto vale o princípio ativo da seiva de uma árvore? Tudo isto tem valor para economistas, jornalistas, engenheiros e financistas… Mas aí tem o outro lado da medalha: há que se investir em pesquisa. Sem tecnologia, sem buscar o para que serve, onde vou usar, como vou usar, nada tem valor. O petróleo só teve valor quando foram descobertas suas propriedades para movimentar máquinas, para aquecer, produzir bens de consumo etc…

FMA – A Amazônia tem que trazer benefícios para seus habitantes…
Garrido – É evidente que sim, mas há que haver gestão sustentada dessa riqueza, sobretudo investimentos em pesquisa. Água e floresta são, nessa bacia, o habitat de uma miríade de espécies vivas de toda a natureza, caracterizando, em seu conjunto, a diversidade biológica da bacia, uma das maiores riquezas potenciais da América do Sul. Adicionalmente, a água é, em si, uma extraordinária riqueza pelos múltiplos usos a que se destina.
A floresta também constitui elemento central do processo de equilíbrio ecológico por sua capacidade em seqüestrar carbono. Em termos de PIB ambiental, a Amazônia sozinha coloca o Brasil como primeira potência mundial. Daí porque a vontade política em relação a tudo o quanto se refere ao uso sustentado da bacia Amazônica e sua floresta constitui acerto de primeira hora. Há muitas surpresas guardadas nesta imensa floresta. Pelos cálculos da Agência Nacional de Águas, a bacia Amazônica tem um potencial de 4 a 5 milhões de barris de petróleo equivalente em geração de energia hidráulica.

FMA – A bacia Amazonas engloba oito países. Há  boa articulação política entre esses países?
Garrido – Essa é uma boa questão.Em 1978 foi assinado o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA)  pela Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com o objetivo de promover ações conjuntas para o desenvolvimento harmônico da bacia amazônica. Esses países assumiram o compromisso comum pela preservação do meio ambiente e pelo uso racional dos recursos naturais da região. Em 95, as oito nações decidiram criar a OTCA para fortalecer e implementar os objetivos do Tratado.
Em 2002, foi criada uma  Secretaria Permanente que se estabeleceu em Brasília e é comandada por uma educadora e política muito carismática e competente que é a Rosalía Arteaga, ex-presidente do Equador. Arteaga deu vida geopolítica à OTCA e está cumprindo um papel muito importante na defesa e na promoção dos interesses do desenvolvimento sustentado de toda bacia amazônica.

 

BACIA DO PRATA

FMA – E a bacia do Prata?
Garrido – Essa é outra bacia importantíssima na América do Sul, pois engloba nada menos de cinco países: Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina. Em relação ao Brasil, tem uma característica bem diferente da bacia Amazônica. Na Amazônica, o Brasil se encontra águas abaixo.
Na do Prata, nosso País está águas acima. Isto tem um significado importante. Na do Prata, a forma como o Brasil gerencia os recursos hídricos interfere diretamente nos países vizinhos. É só lembrar a polêmica que foi entre o Brasil e a Argentina para construção da hidroelétrica de Itaipu.
Já na Amazônica, o Brasil está águas abaixo. A forma de gerir a água nos outros países que estão acima tem relação direta com o que vai ocorrer no Brasil. Isso exige uma integração continental e uma ação presente da diplomacia.

FMA – Antes de entrar na Europa e Ásia, queria falar sobre o lago mais alto do mundo, o Titicaca ?
Garrido – De fato, o Titicaca está a 3.800 metros acima do nível do mar entre Peru e a Bolívia. Nenhum outro corpo d'água de dimensões avantajadas se situa em tão elevada cota. Seu espelho d'água tem 8.400 km2 e sua bacia tributária tem 143.900 km2 de área. É formado por dois corpos d'água: o lago maior, com profundidade máxima de 285 metros, que se une ao lago menor pelo estreito de Tiquina com 800m de largura; e o lago menor, cuja profundidade máxima é de 40m.
Trata-se de uma bacia quase-endorrêica e que libera águas pelo rio Desaguadero, apenas cerca de 5% das perdas totais. A evapotranspiração do lago é de 1.600 mm anuais e suas águas são ligeiramente salinas.

 
FMA – E quanto à biodiversidade do Titicaca?
Garrido – As águas do lago Titicaca abrigam uma fauna rica e variada: patos, peixes como o suche, o carachi e a truta ali são encontrados. Quanto à flora, se destaca a totora, que serve de alimento tanto para o homem quanto para o gado, além de ser empregada na construção de casas e embarcações típicas.
O Titicaca possui 41 ilhas, destacando-se Taquile e Amantan, habitadas por nativos.

FMA – Quando um corpo d'água banha mais de um país, a coisa complica…
RGarrido – É a gestão tem que obedecer um trabalho conjunto do setor de recursos hídricos de cada país com a sua área diplomática. Esta última desempenhando importante papel, pois constitui privilégio das vias diplomáticas a discussão de acordos e tratados entre países sobre o uso de área comum.
O Brasil tem feito esse tipo de exercício na grande bacia do Prata e do Amazonas. O Itamaraty é uma das melhores escolas do mundo também no tocante ao tema das negociações sobre recursos hídricos.
No caso do lago Titicaca, foi constituída em 1992, pelos governos do Peru e da Bolívia , a Autoridade Binacional Autônoma do Sistema Hídrico do lago Titicaca, rio Desaguadero, lago Poopó e Salar de Coipasa. O Plano Diretor que rege as ações da Autoridade Binacional dá maior ênfase ao combate a todas as formas de poluição das águas e à reversão das agressões já sofridas pelo lago.

FMA – E a qualidade das águas do Titicaca?
RG – Não é boa. Mas ainda é tempo de reverter a situação em que se encontra. Felizmente, pelo menos quanto a esse aspecto, o lago Titicaca não está rodeado de uma grande população urbana e nem mesmo de atividades econômicas muito concentradas. Caso fossem mantidas as condições que lá se observam, o Titicaca seria um lago cloacal. Mas há muitos descartes sem tratamento em áreas da bacia de contribuição ao lago.

 

Rosalía Arteaga deu nova vida geopolítica à OTCA
e está cumprindo um papel muito importante na defesa e na promoção dos interesses do desenvolvimento sustentado de toda bacia amazônica.

 

Grandes rios e lagos da Europa, África e Ásia
Diferente das Américas, na Ásia, África e Europa há rios e lagos importantes não só pelo tamanho, pelo que estão inseridos na economia da região, mas também pela história e pela cultura. Neste grau de importância, há que se dar ao corpo d?água também um significado mais amplo, holístico, como fonte de vida.

Folha do Meio – Vamos passar agora aos rios e lagos europeus. Falemos sobre o Volga que é o mais longo de todos.

Garrido – De fato, o Volga percorre 3.700km até o Mar Cáspio. Nasce em uma pequena elevação, de 225 metros apenas, que é a colina de Valday a noroeste de Moscou. Sua bacia tem 1,35 milhão km2, o que corresponde a quase 40% da Rússia Européia, justamente a parte mais populosa do país.  Vivem na bacia cerca de 60 milhões de habitantes. A maior parte de seu curso congela durante três meses por ano. O seu delta tem 160km de comprimento e é constituído por mais ou menos 500 canais e pequenos rios.

 FMA – Que aproveitamento econômico tem a bacia do rio Volga?
Garrido – Bem, o Volga é utilizado principalmente para a navegação, geração de energia e, em menor escala, a pesca e a irrigação. No que se refere à navegação, o rio tem um expressivo número de ligações com outros rios e lagos, quase todas dotadas de eclusas.
Com um total de 3.200 km de vias navegáveis, o Volga responde por dois terços de todo o tráfego no país. São cerca de 900 portos situados às margens do rio. O leito navegável do Volga permite chegar-se ao mar Negro, ao rio Don, aos lagos do norte e a São Petersburgo. Quanto à geração hidrelétrica, a potência total instalada no sistema hídrico do Volga é de onze mil megawatts, ou seja, ligeiramente maior do que a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a CHESF. No que se refere à pesca, o rio dispõe de cerca de 70 espécies, 40 delas de valor comercial.
A irrigação, significativa na parte baixa do curso principal da bacia, não tem apresentado resultados apreciáveis, ao contrário, resultou em salinização rápida dos solos, além de ter reduzido a contribuição de vazão ao mar Cáspio.

FMA – E com tanta atividade econômica, como está a qualidade da água do Volga?
Garrido – A contaminação das águas do Volga constitui, hoje, uma das grandes preocupações do governo. Em 80% das amostras tomadas verificou-se que o estoque pesqueiro se reduziu em razão da poluição. A presença de agentes poluentes, inclusive metais pesados, decorre principalmente das atividades industrial e agrícola.
O desmatamento acelerado de várias partes da bacia tem causado a erosão e o assoreamento. A piracema foi afetada por falta de passagens para peixes na maior parte das plantas hidroelétricas. O pior é que o governo não atende às expectativas dos grupos ambientais, embora tenha iniciado nos anos 90 medidas de recuperação e melhoria da qualidade dos efluentes industriais descartados.

FMA – Como nas valsas, vamos do Volga ao rio Danúbio. Ele continua azul?
Garrido – Pois é, de mais romântico se tornou o mais poluído. O rio Danúbio, com 2.850 km de extensão, é o segundo mais longo da Europa, sendo superado apenas pelo Volga. Há uma diferença capital de gestão nos dois rios. Enquanto o rio Danúbio depende do interesse de onze países, o Volga é um curso d'água que pertence a um mesmo país.
O Danúbio é também um rio que flui do oeste para o leste europeu, distintamente da imensa maioria dos rios do continente. Ele nasce na Floresta Negra, na Alemanha, e se dirige para o mar Negro, na Romênia, onde forma um delta de grandes proporções.
Historicamente, foi usado para o transporte de tropas por cerca de 2.000 anos.
Vale lembrar que o Danúbio foi a borda norte do Império Romano. Foram vários os momentos importantes da história do Danúbio. Ele foi usado para acesso a Constantinopla; as Cruzadas também navegaram no Danúbio nas expedições à Terra Santa e, no fim da Idade Média, foram os turcos otomanos que avançaram para o ocidente pelo rio.

FMA – E a História não marcou ponto na gestão das águas do Danúbio?
Garrido – Se marcou! A diplomacia foi muito importante nesse contexto, pois a primeira intervenção vem com o Tratado de Paris, em 1856, que estabeleceu uma Comissão Européia para controlar o seu delta. Em 1890, a Áustria promoveu melhoramentos nessa área do baixo Danúbio, e o Tratado de Versalhes, já em 1919, confirmou as decisões do Tratado de Paris.

 

CONFLITOS NAS FRONTEIRAS

FMA – Um rio que banha onze países deve ser palco de muitos conflitos…
Garrido – É verdade. Olha, podemos destacar apenas um desses conflitos, entre os mais recentes. Em 1990, a Eslováquia fez uma derivação no rio em direção ao norte para alimentar uma planta hidroelétrica, a da barragem de Gabcikova. Na verdade, o projeto teve início com a participação da antiga Tchecoeslováquia, Áustria e Hungria. Mais tarde, Hungria e Áustria retiraram-se do projeto por pressões de grupos ambientalistas e a Tchecoeslováquia se dividiu em Eslováquia e República Tcheca.
Desse processo surgiu um conflito entre Hungria e Eslováquia que vem sendo administrado por ações combinadas de diplomacia, mais uma vez, e de gestão de usos múltiplos da água. Rio banhando um só país já tem conflito, veja o exemplo do rio São Franciso. Imagina banhando onze países.


FMA – E a importância econômica do Danúbio?
Garrido – O Danúbio é um grande eixo da economia européia, desempenhando importante papel nos setores de transporte, de cargas principalmente, geração de energia, abastecimento d'água, urbano e industrial, irrigação, pesca, turismo e por aí vai.
Quanto à navegação, importantes portos estão à beira do Danúbio como Viena, Belgrado, Budapeste e Bratislava. Após a 2a Grande Guerra, foram executados importantes trabalhos de dragagem e de construção de canais para viabilizar a navegabilidade de embarcações de porte maior. Isso aumentou em muito o tráfego de cargas.

 
FMA – Fizeram até canal para ligar o Danúbio ao Reno...
Garrido – Foram executados dois canais de ligação: o do mar Negro, na Romênia, e o Canal Principal, que conecta o Danúbio com o Reno e daí ao Mar do Norte. No que se refere à geração de energia, o destaque é a barragem de Djerdap, na Sérvia- Montenegro. Além de gerar energia, melhorou sensivelmente a navegação de alguns trechos do rio.
A irrigação, por sua vez, é mais expressiva na Eslováquia, Hungria, Sérvia- Montenegro e Bulgária. Mas o rio vem sofrendo um forte impacto desta irrigação.

FMA –  A conseqüência é a poluição…
Garrido – É como eu disse, do mais romântico, o Danúbio passou a ser o mais poluído. Há poluição de toda a sorte, causada por distintas atividades econômicas. Cada um dos onze países quer tirar o máximo. Os países que mais são afetados são os de jusante, caso da Romênia, onde se localiza o delta. Muita poluição vem dos afluentes do Danúbio.
O rio Tisza, na Hungria, foi contaminado com cianido, daí resultando um morticínio de cardumes sem precedentes. A Romênia sofreu tanto que colocou em prática um Plano de Recuperação da Vida Aquática, que não poderia prosperar sem a ação conjunta de todos os países de que a bacia faz parte.
O Plano se estendeu e hoje constitui o Programa Danúbio Verde que tem se beneficiado da ação do Pnuma e do WWF.

FMA – Como foi esse  plano?
Garrido – Pelo plano, encontram-se em implementação medidas de limpeza geral e monitoramento da qualidade das águas do rio, restauração e conservação de áreas e aprovação de um plano diretor de toda a bacia. Tudo isso é importante para salvar o Danúbio, rio que tem uma flora e fauna ainda consideráveis, o maior pântano da Europa.
Tem vários trechos de florestas que abrigam uma razoável diversidade biológica, com algumas espécies raras de répteis, cerca de 300 espécies de pássaros e muito mais em termos de riquezas naturais.

 

O Danúbio, de mais romântico se tornou
o mais poluído. Enquanto o rio Volga passa apenas por um país, o Danúbio corta onze países. E cada um deles quer tirar o máximo do rio.

 

 

LAGO BAIKAL

O lago que vai virar mar

 FMA – E quais os problemas do delta do Danúbio?
Garrido – Além de estar poluído, o delta do Danúbio está sofrendo um processo de afundamento, o que certamente dará origem a vários pequenos lagos no futuro.
A cada ano, as planícies do delta são inundadas em mais de 90%.  O delta, que abriga 45 espécies de peixes e constitui ponto de arribação de pelicanos, está se transformando rapidamente. Muita pesquisa vem se desenvolvendo sobre esse fenômeno.

FMA – Voltemos aos lagos. O Lago Baikal é tudo isto mesmo que falam?
Garrido – Olha, é tudo isto e muito mais. Esse lago faz parte de muitos roteiros turísticos e é conhecido como a Pérola da Sibéria. Segundo os geólogos, o lago foi formado depois de uma colisão de duas placas tectônicas. É quase um mar. Os antigos o chamavam de Mar Sagrado. Hoje foi declarado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.

FMA – Por que Mar Sagrado?
Garrido – Em primeiro lugar porque suas dimensões levam a que, ainda hoje em algumas regiões da Sibéria, ele seja referido como um mar e não como um lago. Em segundo lugar, mas igualmente importante, porque muitas tribos do passado acreditavam no poder de suas águas.
O Lago Baikal foi considerado um lugar sagrado para a Ásia por muito tempo, desde quando era habitado pelos esquimós, hoje vivendo no Alaska.
Em verdade, a palavra Baikal vem do turco (Bai=Saudável+Kal=Lago). Saudável, talvez, porque suas águas são extremamente límpidas, claras. Isso tem explicação científica. Os zooplânctons Epishura presentes na água consomem ervas aquáticas, bactérias e outros materiais, tornando a água transparente.
Além disso, como a região do lago é ativa sob o ponto de vista sísmico, com um terremoto a cada dois anos, a água se torna trêmula o que faz com que o oxigênio penetre em profundidades bem maiores do que as que se verificam em outros lagos. Jorros de água quente se distribuem ao longo das margens do lago e alguns são utilizados como tratamento medicinal.


FMA – Quais os elementos que indicam as grandiosas dimensões do Lago Baikal?
Garrido – Em primeiro lugar, o seu volume de água, da ordem de 23.000 km3, quantidade suficiente para abastecer a população atual de toda a Terra por aproximadamente 50 anos. A sua bacia de drenagem é também de grandes proporções, alcançando 540 mil km2. Quase o tamanho da Bahia. Sua profundidade máxima alcança os 1.637 metros. É a maior do mundo, cerca de quatro vezes maior do que a correspondente profundidade do Lago Superior.
E ainda tem algo mais impressionante. A tendência geológica dos lagos é, em milhões de anos, se extinguirem. O Baikal, não. Ele aumenta entre 1 e 2 cm/ano. Chegará um momento que esse lago será transformado em um oceano sobre a Ásia.


FMA – O lago pode se transformar em oceano?
Garrido – Ora, como o lago está crescendo à razão de 1 a 2 cm/ano, prevê-se, de fato, que em alguns milhões de anos o Baikal terá inundado tanta terra que passará a ser a ponta de um novo oceano. Tem lógica: note-se que o Baikal recebe a contribuição de 336 rios e alimenta apenas um. Isso siginifica a possibilidade de uma dinâmica crescente em termos de balanço hídrico.
As precipitações na bacia de drenagem do lago oscilam entre 187 e 1.324 mm /ano. A evaporação não é proporcionalmente tão significativa, daí resultando um balanço hídrico positivo. Assim o lago cresce.
O oposto do que ocorre com os outros lagos da Terra depois que alcançam sua configuração madura. Aí começam a definhar até o completo desaparecimento. O Baikal é uma exceção.

FMA – E qual o papel socioeconômico do Lago Baikal dos nossos dias?
Garrido – Temos que começar falando da flora e da fauna do lago que são riquíssimas. São 1.200 tipos diferentes de plantas e 1.400 espécies animais, sendo que cerca de 70% dessas espécies são endêmicas. Na região do lago Baikal vamos encontrar focas, centenas de espécies de peixes comestíveis como o salmão, o esturjão e o omul, o mais comum de todos.
Na taiga circundante ao lago Baikal, que se senta a cerca de 454 metros acima do nível do mar, encontram-se o urso marrom, o esquilo da Sibéria, a águia de cauda branca, gaivotas e várias outras famílias de pássaros.
O lago Baikal, de formato longilíneo (636km por 70km) tem um imenso potencial para compor a intermodalidade de transportes com a linha de ferro Baikal-Amur Magistral (BAM), que se estende no sentido leste-oeste. Isto tudo sem falar numa atividade que cresce cada vez mais na região do Baikal, o turismo, e na riqueza mineral que possui.

FMA – Há problemas ambientais no Baikal?
Garrido – Claro que há. Como se veio a confirmar depois de Gorbatchev, os países socialistas eram os maiores poluidores do planeta. O que é grave considerando que sequer tinham PIBs elevados. E a economia da região de influência do lago tem uma dinâmica que resulta da produção agrícola [trigo e outras cultivares] e da produção industrial [têxteis, maquinaria, celulose e pasta] que vinha, e ainda vem, gerando episódios de contaminação. Felizmente, a região do lago Baikal foi uma das primeiras a se beneficiar da reversão da postura anti-ambiental que caracterizava a política de desenvolvimento econômico da extinta União Soviética.
Desde 1992, o lago Baikal e seu entorno se tornaram um parque nacional, o que vem fazendo da região um verdadeiro paraíso e importante destino turístico.
Em 1993 foi criada a Comissão para Proteção do Lago e, mais recentemente, em 1999, foi editada uma lei federal estabelecendo critérios gerais de segurança da qualidade dos recursos naturais do lago Baikal.

O fantástico Nilo e o lago Vitória

FMA – Bem, vamos para a África e navegar pelo rio Nilo cheio de histórias…
Garrido – É, o rio Nilo tem história. Depois de ser considerado o mais extenso rio do mundo até bem poucos anos, com 6.690km, perdeu esta posição para o rio Amazonas.
Novas medições com moderna tecnologia de GPS, fotos e expedições, os cientistas deram esta glória ao Amazonas com seus 6.840km. O Nilo é rico em todas as dimensões. Sua bacia tem 3,3 milhões de km2 e seu comprimento é de 6.671 km, abrigando 81.500 km2 de lagos e 70.000 km2 de pântanos. Veja a complexidade de sua bacia que abriga nada menos do que dez países: Congo, Burundi, Egito, Eritrea, Etiópia, Quênia, Ruanda, Sudan, Tanzânia e Uganda.
O Nilo tem uma importância muito grande para a irrigação, principalmente no Egito e Sudão. A bacia como um todo já alcança uma área irrigada de 5,5 milhões de hectares. Isso é o dobro da área irrigada no Brasil.
Os planos prevêem a duplicação dessa superfície irrigada, pois a atual população da bacia, de 280 milhões de pessoas parece marchar para alcançar os 590 milhões à volta do ano 2025. As áreas potenciais para essa ampliação dos campos irrigados encontram-se na Tanzânia, Uganda, Quênia e Etiópia.

FMA – De onde vem a água que flui pelo Nilo?
Garrido – O rio Nilo nasce em Uganda, a partir do lago Victoria e desemboca no mar Mediterrâneo. A formação da vazão do Nilo depende principalmente das chuvas da Etiópia e demais áreas da parte alta da bacia, além das contribuições dos lagos equatoriais. No norte, ou seja, na parte baixa da bacia, não chove no verão. No sul, isto é, na parte alta da bacia, observam-se chuvas de verão significativas. Entre outubro e maio não chove nem no norte nem no sul. Devido à ação dos ventos alísios do Nordeste.

FMA – E quais os principais problemas na gestão do Nilo?
Garrido – A questão central resulta do fato de que o Nilo está destinado à segurança alimentar da região, pois à exceção do Egito e Uganda, os demais países apresentam baixa produção per capita de alimento. Desde 1980, registrou-se uma queda de 17% na produção agrícola do Sudão, Ruanda, Etiópia e Tanzânia.
A disponibilidade per capita de água também está decaindo. E para complicar ainda mais o quadro, o ciclo das secas e a intensificação da pobreza estão causando pânico nas populações da bacia, provocando massas migratórias para os centros urbanos ao mesmo tempo em que os recursos naturais da bacia estão sendo destruídos. É necessário um esforço conjunto dos países com o apoio de entidades de crédito, além de doações internacionais para reverter essa tendência.

REPRESA DE ASSUAN

FMA – Não se pode falar do Nilo sem que se faça uma referência à represa de Assuan…
Garrido – A barragem original de Assuan data de 1902, foi construída pelos ingleses, e é bem menor do que a nova represa de Assuan. Juntamente com a barragem de Asyut, na parte central do Egito, a primitiva Assuan foi executada para fazer face às necessidades da agricultura irrigada. Em 1934, foi ampliada para acrescentar mais 400 mil hectares de irrigação. Entre 1960 e 1970, foi construída a hidrelétrica de Assuan a 4,8 km a montante da velha barragem, com 114 metros de altura e 3.600 metros de comprimento de crista, o que veio a dar notoriedade ao nome Assuan.
É constituída por um núcleo de argila e concreto. A barragem forma um imenso lago, o lago Nasser, que acumula 157 bilhões de m3 de água, quase cinco vezes o volume de água estocado no lago de Sobradinho, aqui no rio São Francisco, o de maior volume entre os reservatórios artificiais brasileiros.
A inundação provocada por essa barragem implicou o reassentamento de cerca de 90 mil pessoas e a mudança de lugar de alguns tesouros arqueológicos, como por exemplo os templos de Abu-Simbel que foram desfeitos e reconstruídos em um local 60 metros acima da localização original. Além de produzir energia elétrica com uma potência instalada de 2.000mW, Assuan permitiu um grande incremento na irrigação do Egito.

LAGO VICTÓRIA

FMA – Que importância tem o Lago Victoria?
Garrido – O lago Victoria, a 1.130m de altitude, é o maior da África e segundo do mundo em espelho d'água. Vem logo depois do lago Superior entre o Canadá e os Estados Unidos.
 Sua bacia de drenagem, com 184 mil km2, lhe permite acumular 2.750 km3 de água, formando uma superfície livre de 68.800 km2, com 400km de comprimento e 200km de largura. O comprimento das margens do lago é de 3.440km, a sua profundidade máxima é de 84m.
Uma característica importante do lago é de ser formador do rio Nilo. Seu principal afluente é o rio Kagera, procedente de Rwanda e Burundi. A construção de uma grande barragem na saída para o Nilo, a barragem de Owen Falls, leva a que o lago seja considerado um grande reservatório, mas ele se comporta hidrologicamente como um sistema fechado. Na bacia formadora do lago Victória vivem cerca de 25 milhões de pessoas.
Owen Falls foi construída em 1954, mas apenas 30% de sua capacidade geradora, de 200 mW, foi aproveitada desde o início. Em 2000, novas turbinas foram executadas e a potência instalada subiu para 120 mW.

FMA – Quais os usos múltiplos das águas do lago?
Garrido – Além do abastecimento humano, uso prioritário da água, o lago Victoria é usado para a atividade pesqueira. Desde 1978, a pesca anual evoluiu de 100 mil toneladas para cerca de 400 mil toneladas. Muito desse incremento se deve à inserção da perca do Nilo, peixe de águas doces muito comum no rio, pertencente à família dos percídeos e que hoje representa cerca de 60% da população dos cardumes do lago Victoria. Este é, aliás, um dos problemas ambientais do lago, a depredação de outras espécies pela perca do Nilo.
As águas do lago Victoria também são utilizadas para o abastecimento industrial e para a diluição de efluentes, urbanos e industriais. Na região encontram-se cervejarias, curtumes, abatedouros e distintos tipos de fábricas de alimentos, de agroprodutos e de produtos da pesca.

FMA – Daí, evidente, os tristes problemas ambientais…
Garrido – Triste, preocupante e crescente. O Índice de Transparência de Secchi baixou de 5m em 1930 para apenas 1m em 1990.
O lago vem sofrendo uma série de agressões nos últimos 50 anos. Os efluentes urbanos e industriais são descartados no próprio lago e em seus afluentes.
Indústrias poluidoras, como os curtumes, cervejarias, não contam com sistemas de tratamento adequados. Existem pequenas minas de ouro na Tanzânia que descartam mercúrio nos leitos dos rios. Embora o uso de fertilizantes não seja intenso, os nutrientes da agroindústria que vêem com a lixiviação dos solos também contribuem para o agravamento da situação, dando espaço à eutrofização.
A presença de fósforo e nitrogênio fez com que, nos últimos 40 anos, a quantidade de algas fosse quintuplicada. As algas do tipo Blue-Green causaram o estorvamento dos filtros das estações de tratamento de água, onerando o preço da potabilização. O aparecimento do jacinto aquático, que se concentra no norte, na parte de Uganda, constitui outro problema ambiental importante. Essa planta vem, em verdade, pelo rio Kagera, porém os ventos do sul as transporta para a região de Uganda.
Assim, a pesca é ameaçada pela superexploração, combinada com a contaminação .

FMA – E nada tem sido feito para evitar essa catástrofe?
Garrido – Eu sei que a Organização Meteorológica Mundial e o Pnuma fazem, desde 1960, um trabalho de monitoramento da qualidade das águas do lago Victória. Esse trabalho, no entanto, foi interrompido pelas guerras. Existe uma Comissão Permanente Tripartite que inclui entre seus programas e medidas a componente recursos hídricos.
É nesse contexto que vem sendo desenvolvido o Projeto de Gerenciamento Ambiental do Lago Victória, conhecido como LVEMP e financiado pelo GEF/Banco Mundial, desde 1997. Foi concluída apenas a primeira fase. Os objetivos do LVEMP são os de maximizar os benefícios dos usuários do lago e promover a conservação de sua biodiversidade e recursos naturais.

FMA – Ainda na África, o que vale destacar?
Garrido – Vale destacar o lago Tchad, cuja região é cenário de importantes civilizações na Antiguidade, o rio Congo (ou Zaire) que tem 4.371km e está na África central. O rio Niger, que é parcialmente navegável, tem uma extensão de 4.160km e abrange vários países.

 

Os rios da Ásia e da História
São descartados no rio Yang-Tzé mais de 25 bilhões de ton/ano de rejeitos urbanos. A luta pelo crescimento econômico está levando a China a não se preocupar com a questão ambiental.

FMA – Vamos para o continente asiático. Acho que o rio mais importante é o Yang-Tzé…
Garrido – O rio Yang-Tzé é o mais comprido da China. Tem 6.300 km e com uma vazão de 34.000 m3/seg, drenando uma área de 1.808.500 km2. Nesse espaço, para se ter uma idéia, vivem 400 milhões de habitantes, ou seja, o dobro da população brasileira. E tem mais. É no Yang-Tzé que está sendo construída a barragem de Três Gargantas que deverá ter, quando totalmente pronta, em 2009, 18.200 mW de potência instalada. Serão 26 turbinas. Uma vez e meia Itaipu. Três Gargantas terá como finalidades, além da geração hidroelétrica, a prevenção contra enchentes e a melhoria das condições do transporte fluvial.
 
FMA – E quais os principais problemas de gestão do Yang-Tzé?
Garrido – Um dos mais sérios problemas do Yang-Tzé são os efeitos das seculares inundações. Aliás, os registros do governo chinês dão conta de que em 2000 anos, desde a dinastia Han até a dinastia Qing, ocorreram 214 inundações de porte no território chinês, o que corresponde a uma inundação de proporções a cada dez anos ou pouco menos. A região do Yang-Tzé já registra perto de meio milhão de mortes por inundação desde que os registros passaram a ser sistematizados, em princípios do século 20.

FMA – Como está a qualidade dos recursos naturais da bacia?
Garrido – A bacia hidrográfica do Yang-Tzé está bastante degradada pelo desmatamento, pela erosão dos solos, encolhimento e desaparecimento de lagos e pela contaminação da água. No que se refere ao desmatamento, somente para se ter uma idéia, as florestas que, em 1930, cobriam cerca de 30% da bacia, atualmente cobrem menos do que 10%.
Quanto ao encolhimento dos lagos, pelo menos uns 800 desapareceram. A poluição forte acarreta um gasto muito grande no tratamento da água para as cidades em seu trajeto, que são mais de 500.
Estimativas dizem que são descartados no rio, por ano, mais de 25 bilhões de toneladas de rejeitos urbanos. Ou seja, a luta pela sobrevivência, pelo crescimento econômico, está levando a China a não se preocupar com a questão ambiental, pelo menos na medida do razoável.
No passado, muitas pequenas barragens foram construídas sem o mínimo critério de sustentabilidade. Acresce a tudo isto a pesca predatória e praticamente as mesmas agressões ambientais aos seus mais de 700 afluentes.

FMA – Mas a China não se preocupa com esta sustentabilidade?
Garrido – Olha, esta questão do crescimento da China é uma discussão a parte. Como disse o professor Jared Diamond no seu livro Colapso, se a China conseguir alcançar parâmetros de desenvolvimento de Primeiro Mundo, isso vai dobrar o uso humano de recursos naturais. Imagina só o impacto ambiental mundial? É lógico que os problemas da China, hoje e amanhã, vão ser problemas da humanidade. E veja que esse país acaba de chegar à quarta colocação em termos de produção econômica, ficando atrás somente dos Estados Unidos, Japão e Alemanha.

FMA – É o caso da economia em torno do rio Yang-Tzé…
Garrido – Evidente! Imagina que na sua bacia são produzidos quase 70% de todo o arroz da China e ali estão 40% da água doce do país. Enfim, ali se produz 40% do PIB chinês.

FMA – E sua biodiversidade está preservada?
Garrido – Infelizmente não. Mas nos cursos médio e baixo, a bacia ainda abriga cerca de 300 espécies de aves, 360 de peixes e 80 de mamíferos. No curso médio, encontra-se uma grande planície e lagos.
A prioridade dada pelo governo para essa área é a de zelar-se por sua preservação, pois é justamente aí que se amortecem as grandes inundações do Yang-Tzé, principalmente em verões chuvosos, quando os lagos se misturam com os rios.

FMA – Mas como se faz esta gestão do uso da água?
Garrido – Bem, a gestão do uso da água ainda é bastante fragmentada pela ação de quatro autoridades governamentais: uma voltada para a tarefa da conservação, a segunda se ocupando da pesca, a terceira pela navegação e, a quarta, cuidando da preservação e qualidade. E o que complica mais ainda é que tem onze províncias dando palpite, usando e abusando de suas águas. Não há comando único.

FMA – Que outros rios e lagos ainda poderiam ser apresentados e ficaram de fora?
Garrido – Ainda devem ser levados em conta muitos outros rios e lagos, apesar de pouco conhecidos. Como um rio têm muitas nascentes e todas elas são importantes, também todos os corpos d?água são importantes e estratégicos, diante de sua comunidade, das regiões onde se localizam. Vale citar, pela importância regional e pelo tamanho o rio Ob-Irtish, que nasce nas montanhas Altai, na Rússia, e é considerado o quinto maior rio do mundo com 5.797km.
Na própria China tem o rio Amarelo, ou Huang Ho, com 4.667km, e deságua no golfo de Chihli. E o rio Amur, ou Heilong, entre a China e Rússia. São muitos rios importantes, como o próprio rio Mekong, que nasce no Tibet e se estende até o Vietnam, onde está sua foz. O rio Bhramaputra, na Índia. Lagos também têm muitos. A região da Madhya Pradesh, no centro da Índia, é conhecida pelo seus belos lagos. Aliás, como o Lago de Como, na Itália.

FMA – Por falar no Lago de Como, a gente até lembra da bela música. Mas acho que vale destacar, também, os rios e lagos importantes pela História…
Garrido – É verdade. Quem nunca ouviu falar no rio Jordão, de apenas uns 100km, que nasce na encosta do monte Hérmon e deságua no mar Morto? Em termos bíblicos, do Antigo e do Novo Testamento, é o rio mais importante do mundo. Foi onde São João Batista desenvolveu suas pregações, onde Jesus foi batizado e onde hoje funcionam os maiores poços d?água de Israel. Sim, Israel joga água tratada para dentro do rio Jordão.
E o  rio Ganges, ao norte da Índia, onde milhões de fiéis mergulham num ritual de purificação! O Lago de Tiberíades ou mar de Galiléia, com apenas 21km em sua maior dimensão, mas também com sua importância bíblica. Foi onde Jesus caminhou sobre as águas, onde convocou seus apóstolos e onde conseguiu a pesca milagrosa.
O mar Vermelho de tanta importância história, religiosa e econômica… A verdade é que cada rio tem sua importância, sua história e sua cultura atrelada à história de seu povo. Do riacho do Ipiranga ao rio Tietê, em São Paulo. Do rio Sena, em Paris, ao rio Tâmisa, em Londres. Do rio Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, hoje Iraque, ao rio Tibre, em Roma.

FMA – Foi bom terminar entrevista mostrando a importância da água na vida religiosa e cultural e não só na economia de um país…
Garrido – Pura verdade! Temos que dar à água também um significado mais amplo, espiritual, holístico como fonte de vida, de purificação. É importante chamar a atenção de todos para estas questões. Questões éticas que envolvem a relação da água com o ser humano, com todos os seres vegetais e animais. É um dever ficar atento não só à má gestão, como também ao desperdício e à contaminação.
Acho que esta entrevista foi grande, mas foi importante para se conhecer um pouco da realidade hídrica não só do Brasil, mas do mundo. Para valorizar a realidade de cada corpo d?água, dos mananciais, dos grandes rios, dos grandes e pequenos lagos. Foi uma boa forma da Folha do Meio comemorar o Dia Mundial da Água com os seus leitores.

 Glossário

IGARAPÉS – Rios pequenos com características de rios grandes e que são navegáveis. Há duas espécies no gênero: os igarapés maiores, ditos igarapés-açus; e os menores, referidos como igarapés-mirins.
QUASE-ENDORRÊICAS – As bacias ou acumulações endorrêicas são aquelas cujo escoamento de superfície se acumula em lagos ou sumidouros que não se comunicam por uma rede superficial com outros cursos de água da bacia. As quase-endorreicas têm uma comunicação pouco significativa.
DISCO DE SECCHI – Dispositivo com formato de um disco que é levado à profundidade até onde pode ser visto desde a superfície livre da água. Essa profundidade corresponde à transparência da água. O que o experimento mede, em verdade, é até onde a luz penetra em determinada massa d' água. Ao indicar a quantidade de luz que penetra n'água, o disco de Secchi permite uma inferência preliminar sobre sua qualidade e sobre a quantidade de sólido em suspensão na massa líquida. O nome é uma homenagem ao Frei Pietro Ângelo Secci, conselheiro científico do Papa Pio IX, que teve a tarefa de medir a transparência do mar Mediterrâneo, em abril de 1865.
ECLUSA – Diques que se executam em rios, normalmente junto a barragens ou no próprio corpo da barragem, para permitir a descida e subida de embarcações que se tornam necessárias pela diferença de nível das águas. O mesmo que esclusa.
ESPÉCIES ENDÊMICAS – Espécies de vida limitadas a uma área geográfica ou a uma população.
TAIGA – Do russo taigá, é indicativo de florestas boreais de coníferas com predominância do pinus.
VENTOS ALÍSIOS  – Ventos que se originam de anti-ciclones (centros de alta pressão atmosférica em relação a regiões vizinhas) subtropicais em direção ao equador terrestre. No hemisfério norte (e logo acima do equador) predominam os ventos alísios de nordeste e no hemisfério sul (e logo abaixo do equador) predominam os ventos alísios de sudeste.