Encontro de Saberes Indígenas
28 de abril de 2006Pajés de vários países se reúnem no Xingu e se proclamam irmãos do conhecimento.
Fotos: Leonardo Alves do Prado
Arvol Looking Horse – cacique Lakota – e os taytas colombianos na Casa das Flautas
FMA – Você como branco, como estudioso dos povos indígenas, como você se sentiu ao presenciar e viver um encontro de Pajés como esse?
Júlio – Olha, eu me senti muito feliz e esperançoso diante de tudo o que ocorreu. Logo na abertura, o pajé anfitrião Ysautaku, do povo Waurá, foi dando as boas-vindas dizendo que esse encontro era “uma forma de um dar força ao outro”. E não era para menos, pois a função, a responsabilidade dos pajés é justamente a de promover o equilíbrio entre os seres, realizar as curas e a recriação dos cosmos através dos seus ritos. Mas a verdade é que as múltiplas influências da sociedade ocidental – a medicina e os fármacos, por exemplo – têm minado a importância dos pajés nos sistemas sociais indígenas.
Como conseqüência, estamos assistindo por toda a Amazônia a desvalorização dos saberes médicos tradicionais e a proliferação de doenças com o avanço do alcoolismo, a perda do orgulho étnico e a degradação dos ecossistemas.
O cacique do povo Waurá, Atamai, tem toda razão quando observa que “o pajé já vem de muito tempo, de antes do ‘homem branco’, quando não tinha remédio, enfermeiro, médico. Não tinha nada. Então ele é nosso médico, que fica cuidando de nossa saúde. Por isso a gente não quer que acabe isso”.
FMA – Como nasceu esse Encontro de Pajés?
Júlio – Percebendo essas ameaças às suas culturas, os pajés dos povos Waurá (Brasil) e Inga (Colômbia) resolveram dar início a uma série de intercâmbios com o objetivo geral de fortalecer os saberes tradicionais dos seus povos e os seus praticantes. O primeiro passo nesse sentido foi a visita do tayta (pajé) inga Luciano Mutumbajoy à aldeia Piyulaga, do povo Waurá, em 2004. No ano seguinte, foi a vez dos Waurá irem à Colômbia para conhecer a União de Médicos Indígenas Yageceros da Amazônia Colombiana (UMIYAC), coordenada pelo tayta Luciano.
A UMIYAC tem desempenhado papel fundamental no processo de revalorização da medicina tradicional dos povos indígenas da Amazônia colombiana. Durante essa visita, o cacique e o pajé principal do povo Waurá, Atamai e Ysautaku, e os taytas decidiram realizar um encontro que reunisse sábios indígenas de várias etnias para partilharem suas práticas de cura e para refletirem sobre formas eficazes de proteção e reconhecimento dos seus saberes.
Pajés Participantes
Canadá: Povo Cree (James Lamouche); Povo Mohawk (Dawn Martin Hill); Povo Ojibway (Alexandra Darnay); Povo Onondaga (Raymond Smith); Povo Tuscarora (Karen Hill).
Colômbia: Povo Ingá (Germán Mojomboy, Patrício Jojoa, Luciano Mutumbajoy); Povo Kamzá (Pablo Chindoy); Povo Siona (Juan Yaiguaje).
Brasil: Povo Tiriyo (Siwaun Tiriyo , Diakui Tiriyo).
EUA: Povo Lakota (Arvol Looking Horse).
Suriname: Povo Wayana (Same Ikinaidoe); Povo Tiriyó(Amasina Uremaru).
A pajelança do bem
Taytas colombianos e pajés Waurá diante da Casa das Flautas, que é o espaço público, no centro da aldeia
Tayta Luciano Mutumbajoy é pintado por um dançarino Waurá
FMA – E como era a comunicação entre os pajés participantes?
Júlio – Além do Tiriyó (que é uma língua da família Carib) e do Waurá (da família lingüística Arawak), o português, o espanhol e o inglês foram os idiomas falados durante os cinco dias em que os indígenas estiveram reunidos. Evidente que os símbolos, os gestos e os rituais também estabeleceram a compreensão comum entre os participantes. Mas havia os intérpretes para todas as línguas e não houve nenhuma dificuldade de comunicação.
Talvez os índios tenham dado uma outra lição aos ?sábios brancos? que se reuniram na COP-8 e MOP-3, em Curitiba: os pajés foram mais simples, mais objetivos, mais competentes e mais comunicativos.
FMA – Explique melhor como foi esse encontro de saberes?
Júlio – Foi um encontro de culturas e de línguas onde os presentes puderam participar dos rituais uns dos outros. Vale destacar até a fala do pajé Ysautaku, que fez questão de frisar: “Eu sou pajé como vocês por isso eu sonhei também, sonhei com alguém me dizendo em meu sonho: nosso costume é o mesmo, é tudo igual. Eu queria ver a diferença, agora, que separe todos os grupos para ver diferença que tem”.
FMA – Mas como foi o cerimonial e as atividades do encontro?
Júlio – A coordenação foi dos anfitriões, os Waurá. Foram os próprios participantes que decidiram quais e como seriam as atividades que ocorreriam durante o seu encontro. Assim, na tarde do primeiro dia do encontro todos se reuniram na Casa das Flautas para decidir qual seria a ordem das “apresentações”.
Todas as reuniões públicas aconteceram na Casa das Flautas, que é o espaço público, no centro da aldeia. As reuniões obedeceram às regras indígenas da conversação, segundo as quais quem fala não deve ser interrompido. Os mais velhos e mais sábios também têm a primazia da fala.
A primeira demonstração compartilhada foi dos próprios Waurá. Depois, foi a vez dos pajés colombianos, seguidos por Amasina, pajé Tiriyó do Suriname.
Os representantes das “Seis Nações” realizaram a demonstração daquela que se tornou, graças a Hollywood, uma das mais conhecidas cerimônias indígenas: a cerimônia do “cachimbo da paz”.
Os pajés Waurá fizeram uma exposição ritual de alguns traços de sua pajelança. O velho pajé Ysautaku, diante de todos os presentes, fumou um enorme charuto de tabaco dando algumas pausas para prender a fumaça dentro do seu corpo. A fumaça do tabaco põe o pajé em contato com o mundo dos espíritos, com os quais partilha certos poderes. Depois disso, demonstrou um dos aspectos da iniciação de um pajé no Alto Xingu. Assoprou a fumaça do seu cigarro em vários pontos do corpo de um aprendiz, Tupanomaká, para proteger-lhe do contato com os espíritos e depois lhe ofereceu um charuto de tabaco. O aprendiz o fumou todo sem vomitar ou desmaiar e foi, assim, aprovado por Ysautaku. Em seguida, foram oferecidos charutos de tabacos aos pajés visitantes.
Houve outros rituais, vários em volta da fogueira armada diante da Casa das Flautas. Durante a cerimônia do yagé (planta também conhecida como caapi ou ayahnasca) por exemplo, os taytas conduziam e curavam a partir dos sentidos: olfato com a fumaça de um incenso natural, audição com os cantos, recitações e a melodia de uma gaita, a visão com as “pintas” provocadas pela bebida yagé.
?Eu sou pajé como vocês por isso eu sonhei também, sonhei com alguém me dizendo em meu sonho: nosso costume é o mesmo, é tudo igual.? Pajé Ysautaku
summary
Meeting of indigenous knowledge
Shamans from several countries met in the Xingu River territory and proclaimed brotherhood in knowledge.
Brazil hosted the Knowledge Meeting. It was an international meeting of traditional cultural practitioners, also known as the Shamans Meeting. Representatives from Canada, Surinam, the United States, Colombia and Brazil met from March 26 to 30 in the Piyulaga Village of the Waurá People in the Upper Xingu River – Mato Grosso State. The meeting arose from the need to establish an exchange among those who are spiritual leaders among their people. In 2002, a Colombian shaman visited the Xingu and during his stay invited other shaman to visit Colombia. In 2005, the Brazilian natives repaid the visit and decided to continue the exchange. From that the idea came about to hold a more inclusive meeting to strengthen ties and exchange cultural information. However, the Knowledge Meeting was more than a cultural exchange, it also promoted spiritual exchange. The Knowledge Meeting was organized by the Tulukai Indigenous Association of the Waurá people with the financial support and logistics of the NGO, Amazon Conservation Team – ACT Brazil. There is no one who can better describe the meeting than the anthropologist and scholar of Indian rituals, Júlio César Borges, who was there as an observer at the invitation of the Tulukai Indigenous Association. Júlio Borges is 28 years old and holds a Masters in Anthropology from Universidade de Brasília-UnB and his Masters thesis is on the rituals of the Krahô Indians.
Júlio Borges – It seemed as though the shamans had been together all their lives, from the way they were so discreetly received. It had been over a year since they has seen each other but it seemed as though they had spent the entire evening together talking, practicing the healing arts together. It was understandable.
According to Tayta [the name the Colombian Indians use to designate the shaman] Luciano Mutumbajoy, coordinator of the Yageceros Indigenous Medicine Men Union of the Colombian Amazon, one of the guests, “the ancestral knowledge has no borders and nothing can contain it.” The words of Luciano set the general tone for the Knowledge Meeting.
It was a meeting of cultures and languages where those present could participate in the ritual of the others. It is worthwhile mentioning the shaman Ysautaku, who made a point of stating: “I am a shaman just like you and therefore I also dreamed, I dreamed that someone told me in my dream that our customs are the same; it is all the same. I wanted to see a difference now which separates all of the groups to see what differences there are.”
Those who witnessed the event under the camp fire light, shamans cured by shamans of other cultures, witnessed the greatest symbol of union, which made up this meeting.
Maybe the indigenous people have taught another lesson to the “wise white men,” who met at the COP-8 and MOP-3 in Curitiba: the shamans were simpler, more objective, more competent and more communicative.
O saber feminino
O cacique Arvol Looking Horse comanda o ritual do Cachimbo da Paz das Seis Nações
Cacique Atamai – do povo Waurá – recepciona os pajés que vieram da Amazônia colombiana
FMA – Era um conselho de pajés cantando a paz e a saúde…
Júlio – Isso mesmo. E quem testemunhou, sob a luz da fogueira, pajés sendo curados por pajés de outro país, de outra cultura, testemunhou o símbolo maior da união que se construiu com esse encontro. Uma união espiritual inquebrantável.
Os pajés Waurá, tomando o yagé, e taytas colombianos fumando os charutos de tabaco abriram seus corpos e suas almas uns aos outros em sinal de confiança íntima. Ysautaku deixou uma mensagem de paz e união que foi mais ou menos assim: “Quando tiver doente aqui vou comunicar com vocês para os espíritos de vocês vir aqui na minha aldeia me ajudar, para trabalhar junto, para me ajudar a curar aquela pessoa. E a mesma coisa com vocês: quando vocês tiverem algum parente, tiver um doente que não tem como homem branco curar vocês me comuniquem para meu espírito ir até lá curar junto com vocês aquela pessoa.
Eu acredito que todos vocês vão estar junto comigo, eu acredito. Vocês não viram pessoalmente, vai ser o espírito de vocês que vai vir para me ajudar e a mesma coisa: eu não vou pessoalmente até sua casa para te ajudar a curar, vai ser meu espírito”.
Na manhã de quinta-feira, a aldeia despertou com os cantos de Arvol Looking Horse, grande liderança dos Lakota. Arvol é o herdeiro do cachimbo do Búfalo Branco, que vem sendo passado a 19 gerações e que contém a força ancestral de criação e perpetuação do seu povo.
Em sinal de humildade, generosidade e reciprocidade, ele partilhou com todos a fumaça protetora, que é como se o próprio Búfalo Branco se fizesse presente, os seus cantos e a sua música. Liderando os outros cinco representantes dos indígenas norte-americanos, Arvol saiu de uma das habitações levando em sua cabeça um cocar grandioso, imponente, de penas de águia. Caminhava a passos lentos, cantando e tocando um pequeno tambor em direção à Casa das Flautas. Antes de circulá-la, pararam algumas vezes para se dirigir aos quatro pontos cardeais, de onde emanam os elementos criativos do mundo: a água, o vento, o trovão e o fogo.
FMA – E teve outras mensagens como esta?
Júlio – Teve sim. A generosidade era uma constante. Na tarde de quarta-feira, teve a fala de Amasina, pajé Tiriyó, que viajou milhares de quilômetros desde o Suriname.
Amasina, um dos últimos remanescentes pajés do seu povo, expressou seu contentamento em fazer parte desse encontro dizendo aos presentes: “Somos todos iguais, nós temos que trocar as experiências, os conhecimentos; todos somos índios, não deve ter nenhum impedimento. Eu vi foto de vocês pelo vídeo e eu dizia: esses também são meus os parentes, são iguais a mim. Por isso estou muito feliz, pois agora consegui realizar o meu sonho”.
FMA – E desses saberes, as mulheres índias não participavam?
Júlio – Sim, paralelamente, na casa do cacique Atamai, as parteiras Waurá se reuniram com as indígenas das “Seis Nações” para tratar especificamente dos seus saberes, os saberes sobre o corpo feminino. Justamente nesse dia ocorreu um eclipse solar que, segundo a visão de mundo da comunidade local, representa a menstruação do Sol, cujo sangue desce dos céus para a terra trazendo consigo os espíritos da fertilidade feminina.
FMA – Para você, qual a importância maior do encontro?
Júlio – Além de participar dos rituais uns dos outros, eles também compartilharam preocupações que lhes são comuns sobre a proteção dos seus saberes e do fortalecimento dos seus povos face às histórias de colonização vividas por cada um deles.
Vários tradutores teceram a fina rede da compreensão comum, facilitando o entendimento entre os presentes de que do intercâmbio entre os povos indígenas pode-se construir uma fortaleza contra a expropriação dos seus saberes pelo “homem branco”.
Segundo o tayta Luciano, “cada povo, cada tribo tem uma história de sobrevivência entre a vida e a morte. Se tivéssemos abandonado nossa espiritualidade e os nossos conhecimentos, já teríamos desaparecido”. Daí a importância do Encontro. Foi uma forma de protesto dos povos indígenas contra a longa história de colonização que os tem sujeitado, comprometendo a integridade de suas culturas e de seus territórios.
O Encontro foi a melhor maneira de comemorar o Dia do Índio, pois foi um manifesto ritual pela valorização das identidades indígenas.
“Cada povo, cada tribo tem uma história de sobrevivência entre a vida e a morte. Se tivéssemos abandonado nossa espiritualidade e os nossos conhecimentos, já teríamos desaparecido”. Tayta Luciano Mutumbajoy